Edição 454 | 15 Setembro 2014

A superação da globalização e do crescimento

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Márcia Junges e Luciano Gallas / Tradução: Moisés Sbardelotto

“A realidade é que não estamos mais num período de globalização. Os países e as regiões estão tratando de levantar muros de várias espécies ao seu redor, e estão tratando de reconstruir sistemas bancários pré-globalistas”, avalia John Ralston Saul

“O modelo de crescimento implantado no final do século XVIII perdeu, mais ou menos, sua força. Atualmente nós produzimos mais bens do que necessitamos no mundo. O que necessitamos, portanto, não é de mais crescimento. Precisamos, em vez disso, dar atenção a uma distribuição mais interessante dos bens e a uma passagem gradativa da produção em massa para a produção com qualidade. Por quê? Porque a produção com qualidade produz mais empregos num nível salarial mais alto e, por conseguinte, torna possível vender bens a um preço mais alto. A estratégia globalista tem sido exatamente o contrário disso — reduzir os preços continuamente, tornando, com isso, não só possível, mas essencial pagar cada vez menos às pessoas”, afirma John Ralston Saul.

Conforme enfatiza Ralston, a manutenção de uma economia de excedentes, inevitavelmente, levará a uma baixa dos preços e, consequentemente, a uma redução dos salários pagos. “Na verdade, não há condições de pagar-lhes [os trabalhadores] por empregos de tempo integral ou empregos que tenham benefícios vinculados a eles. Esta é a razão pela qual se vê, em toda a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE, que um número cada vez maior de pessoas está trabalhando em tempo parcial, ou sem seguridade ou benefícios. Tudo isso cria lentamente o tipo de atmosfera social que leva ao populismo e a sentimentos antidemocráticos. O que estamos vivenciando hoje é uma versão mais extrema do tipo de privação econômica e de abismo entre ricos e pobres que levou a fenômenos como o peronismo”, pontua ele.

John Ralston Saul é escritor, ensaísta e filósofo canadense. É presidente da PEN International, associação de escritores fundada em 1921 e que luta pela liberdade de expressão. É autor de vários livros, entre os quais O colapso da globalização e a reinvenção do mundo (El colapso de la globalización y la reinvención del mundo - RBA, 2012). 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – O dinheiro não passa de uma convenção, mas toda a humanidade parece não se dar conta disso. Por quê?

John Ralston Saul - Esse é um problema cíclico. Todo o mundo sabe que o dinheiro não é real, que ele é meramente o lubrificante para as engrenagens da economia, como se dizia no século XVIII. Mas periodicamente ou se torna difícil criar crescimento real, ou então fica simplesmente muito fácil para um grupo pequeno ganhar dinheiro a partir do dinheiro. E neste ponto entramos num daqueles períodos ilusórios de empolgação excessiva com a possibilidade de tratar o dinheiro como algo real. A causa provável disso ao longo dos últimos 40 anos tem sido que as economias industrializadas do Ocidente produziram uma situação em que havia um excedente de bens manufaturados, de modo que não conseguiram manter o crescimento em curva ascendente. Em vez de se fazer algumas perguntas sérias sobre o que fariam em seguida, elas entraram em pânico e recaíram no antigo erro de tratar o dinheiro como um substituto de bens reais. Nesse ponto, o problema realmente passa a ser a ilusão. E quanto mais nos tornamos dependentes da ilusão, tanto mais difícil é admitir que o dinheiro não é real.

 

IHU On-Line - Vivemos uma era de ontologização da economia, isto é, a economia tornou-se uma espécie de deus ao qual a humanidade vem se curvando?

John Ralston Saul - Essa questão tem duas partes. Em primeiro lugar, a iniciativa revolucionária do período globalista (que começa no início da década de 1970) consistiu em promover a ciência econômica à posição superior em todas as explicações da civilização e de como ela funciona. Assim, de um ponto de vista prático, a ciência econômica foi solicitada a substituir Deus, ou um monarca, ou conceitos do Estado. Na verdade, isso jamais foi tentado antes, pela simples razão de que a ciência econômica é realmente uma atividade terciária no que diz respeito às civilizações. É claro que ela é essencial, assim como a economia o é. Mas é apenas uma atividade utilitária, e isso significa que ela não tem a imaginação ou a ética ou outras qualidades necessárias para moldar uma civilização.

Em segundo lugar, a linguagem que acompanhou essa deificação da economia tinha muito pouco a ver com o que estava acontecendo efetivamente. Em outras palavras, a linguagem da globalização só falava de um mercado autorregulatório, crescimento perpétuo, que o crescimento maior levaria à riqueza compartilhada, etc. A realidade é que a maior parte da atividade tinha a ver com a promoção do dinheiro a um estado de realidade e com a crescente diminuição da concorrência através do favorecimento de empresas cada vez maiores. Em outras palavras, o período globalista levou ao retorno do mercantilismo, dos oligopólios e até de monopólios. Isso é exatamente o contrário do que estava sendo prometido. Agora que essa estrutura intelectual está estabelecida, não importa quão falha ela seja. As elites foram ensinadas a falar e argumentar de acordo com essa estrutura, e parecem incapazes de lidar com o abismo entre o que elas estão dizendo e o que está realmente acontecendo.

 

IHU On-Line - Que tipo de moral foi aplicada à economia pelo Ocidente?

John Ralston Saul - O interessante é que toda a questão da moralidade e da ética foi colocada de lado. Acho que é importante lidar com a ética e a moralidade separadamente, pois esta última tende a ter toda espécie de tendências românticas e religiosas, ou a ser vinculada a hábitos pessoais/sociais, que diferem de grupo para grupo, de lugar para lugar. De qualquer modo, jamais houve qualquer pretensão real de que a nova ciência econômica ou de que a globalização teriam um núcleo ético ou um núcleo moral. A globalização sempre teve a ver, abertamente, com a redução dos seres humanos ao nível do interesse próprio.

Mais curiosamente ainda, há uma série de referências abraâmicas na linguagem da globalização, mas elas parecem ser usadas sem qualquer percepção consciente do que implicavam. A mais famosa delas foi a ideia da mão invisível, que de alguma maneira assegurava que o mercado seria autorregulatório. Isso sempre é apresentado como um aspecto central da filosofia de Adam Smith , o que não era o caso. Na verdade, ele fez apenas um comentário muito rápido sobre a mão invisível ao fazer referência a uma situação específica dos mercados locais. Outra das características curiosas dos defensores da ciência econômica como o principal mecanismo da civilização é de que eles não parecem ler muito. Eles sequer parecem ter lido Adam Smith, a não ser em resumos. Assim, entenderam de modo tremendamente equivocado o que ele estava dizendo.

Adoção da austeridade

De qualquer modo, eles parecem imaginar que dentro de sua teoria econômica havia uma capacidade para uma partilha natural da riqueza, o que, por sua vez, tornaria as pessoas felizes. Como sabemos, estamos agora num período de divisões inauditas e crescentes entre os ricos e os pobres. E o próprio fato de que países como a Espanha ou Portugal, ou a Irlanda e a Grécia, estão sendo obrigados a adotar a austeridade quando já estão numa espiral  econômica demonstra quão ausente o conceito de ética ou moralidade tem estado da liderança econômica.

Não há, na história, exemplo de que a austeridade leve à prosperidade. A única finalidade da austeridade é servir de tratamento de choque quando se está sofrendo de uma inflação grave. E esse não é o problema atualmente. Na Espanha, mais de 50% dos jovens estão desempregados e a cada dia 500 pessoas estão sendo despejadas de suas casas. Ainda assim, o governo está aquiescendo às exigências de austeridade da União Europeia. Isso é profundamente não ético e imoral.

 

IHU On-Line – No contexto da globalização, qual deve ser o papel do sistema bancário?

John Ralston Saul - A realidade é que não estamos mais num período de globalização. Os países e as regiões estão tratando de levantar muros de várias espécies ao seu redor, e estão tratando de reconstruir sistemas bancários pré-globalistas. Por exemplo, países que permitiram a combinação de bancos de depósitos com bancos de investimentos estão tentando separá-los de novo.

Entretanto, há um aspecto central que precisa ser ressaltado. Disseram-nos, durante toda a era da globalização, que a nova tecnologia da comunicação nunca é desligada e que está rodando incessantemente, 24 horas por dia, no mundo inteiro. Por isso, os mercados monetários não poderiam mais ser regulados. Foi esse ato de fechar os olhos para a regulamentação que levou ao colapso financeiro há poucos anos.

A realidade é exatamente o contrário. Pela primeira vez, há tecnologia que liga todos os mercados do mundo e funciona 24 horas por dia. Por isso, jamais foi tão fácil regular e gerir os sistemas bancários e financeiros. Os governos estão começando a entender isso agora, e é isso que está começando a acontecer.

 

IHU On-Line - Em que aspectos a globalização representa retrocessos em termos de economia e justiça social?

John Ralston Saul - Veja bem, não há nada de errado com o comércio internacional. As economias sempre precisaram ter um aspecto internacional importante. Entretanto, não é útil dizer que as relações econômicas internacionais superam o interesse e a vida dos cidadãos que vivem dentro dos países. Quase todos os programas sociais que ajudam as pessoas a viver — como a educação, por exemplo — são nacionais ou regionais; 99% dos sistemas judiciários são nacionais ou regionais. Se você priva o estado nacional de seu poder, em nome da economia internacional, você solapa necessariamente o estado de bem-estar social e de justiça dentro dos países. Além disso, já que a teoria da globalização levou diretamente a um aumento do abismo entre ricos e pobres, temos condições de ver até que ponto essa inversão no equilíbrio entre os interesses do povo e os interesses das forças econômicas internacionais está se tornando cada vez mais negativa.

 

IHU On-Line - Até quando será possível sustentar o crescimento insuflado pelo capitalismo? 

John Ralston Saul - É difícil dizer isso em países onde a industrialização só agora está levando a certos níveis de prosperidade para aqueles que foram muito pobres. Entretanto, o modelo de crescimento implantado no final do século XVIII perdeu, mais ou menos, sua força. Perdeu sua força porque, como eu disse antes, atingimos um estado de produção de excedentes. Certamente não os estamos distribuindo de maneira justa. Mas continua sendo verdade que atualmente nós produzimos mais bens do que necessitamos no mundo. O que necessitamos, portanto, não é de mais crescimento. Precisamos, em vez disso, dar atenção a uma distribuição mais interessante dos bens e a uma passagem gradativa da produção em massa para a produção com qualidade. Por quê? Porque a produção com qualidade produz mais empregos num nível salarial mais alto e, por conseguinte, torna possível vender bens a um preço mais alto. A estratégia globalista tem sido exatamente o contrário disso — reduzir os preços continuamente, tornando, com isso, não só possível, mas essencial pagar cada vez menos às pessoas.

 

IHU On-Line - Quais são os riscos dessa “religião do crescimento” para a democracia?

John Ralston Saul - O maior risco é a espiral declinante que acabo de descrever. Se se mantém uma economia de excedentes, inevitavelmente se fará com que os preços baixem. E quanto mais os preços baixam, tanto menos se tem condições de pagar às pessoas pelo que fazem em seu emprego. Na verdade, não há condições de pagar-lhes por empregos de tempo integral ou empregos que tenham benefícios vinculados a eles. Esta é a razão pela qual se vê, em toda a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE,  que um número cada vez maior de pessoas está trabalhando em tempo parcial, ou sem seguridade ou benefícios. Tudo isso cria lentamente o tipo de atmosfera social que leva ao populismo e a sentimentos antidemocráticos. O que estamos vivenciando hoje é uma versão mais extrema do tipo de privação econômica e de abismo entre ricos e pobres que levou a fenômenos como o peronismo.

 

IHU On-Line - De certa forma, seu livro O colapso da globalização e a reinvenção do mundo previu a atual crise econômica mundial. É possível apontar as possíveis rotas a serem tomadas pela economia daqui para frente?

John Ralston Saul - Isso é inteiramente uma questão de opção. Se continuarmos a agir como se o dinheiro fosse real e, por isso, entender que as dívidas impagáveis devem ser pagas, mesmo que isso destrua o bem-estar dos cidadãos, então a economia simplesmente vai continuar a piorar. E quaisquer recuperações serão obtidas disfarçando os problemas fundamentais. Creio firmemente que precisamos eliminar grande parte das dívidas que atualmente bloqueiam o crescimento dos países. Precisamos recomeçar da estaca zero. Se perdermos alguns bancos ao longo do caminho, isso realmente não importa. Há mais bancos atualmente do que jamais houve, e a quantidade de dinheiro que está se esparramando não tem precedentes. Na verdade é bem engraçado que os neoconservadores, que defenderam o monetarismo a partir da década de 1970, estejam agora se esforçando tanto para proteger uma situação monetária completamente inflacionária. A história é muito clara nesse sentido. Os países inteligentes suprimem as dívidas quando elas se tornam inviáveis.

 

IHU On-Line - Em que medida o conceito de Felicidade Interna Bruta (FIB) é mais realista do que o de Produto Interno Bruto (PIB)?

John Ralston Saul - O PIB não tem sido uma medição acurada da realidade há muito tempo. Ele sempre implicou uma medição muito mínima do que está acontecendo. Sempre se baseou na separação de elementos financeiros, em vez de juntá-los. Foi o tipo de abordagem do PIB que nos levou a crer que se poderia, por exemplo, comer uma maçã proveniente da Nova Zelândia a um preço barato na América do Sul ou na Europa. Isso só era possível porque ninguém estava medindo os custos totais daquela maçã. A Felicidade Interna Bruta é um conceito maravilhosamente irônico inventado pelo ex-rei do Butão  para fazer troça das medições erradas e falhas do PIB. O que ele realmente estava dizendo é que precisamos adotar uma abordagem inclusiva se quisermos entender como as economias funcionam dentro das sociedades. Poder-se-ia dizer que ele estava dando a resposta última às pessoas que creem que a ciência econômica deveria dirigir a sociedade.

Lembrem-se de que a palavra “felicidade” realmente significa “o bem público” ou “o bem-estar das pessoas”. Ela era muito usada nos séculos XVIII, XIX e no início do século XX, e seu significado, em todos esses casos, é “o bem-estar do povo”. Na verdade, é só com o advento de coisas como a televisão, que instituem uma visão muito romântica da felicidade, que a palavra muda de sentido para se tornar uma representação da autocomplacência fora do contexto da sociedade. A ideia butanesa da Felicidade Interna Bruta se situa na tradição do bem-estar do povo existente no século XVIII, e nesse sentido ela é extremamente realista.

 

IHU On-Line – É possível que felicidade e economia andem lado a lado?

John Ralston Saul - Disso se segue que a ciência econômica vai funcionar melhor se formos honestos em relação ao que ela é. A ciência econômica deve servir à sociedade. Sempre houve alguma forma de setor privado, capitalista ou não. Sempre haverá alguma forma de setor privado. Isso não é uma coisa ruim. Mas ele não significa substituir o bem público ou o interesse público ou o poder de governos escolhidos pelo povo. As sociedades funcionam melhor quando admitem alguma forma de equilíbrio entre os diferentes elementos. Acho que deveríamos parar de nos preocupar com a globalização. Ela já passou. Já fracassou. A dificuldade agora é que, na média, o mundo está em crise, e, se não tomarmos cuidado, entraremos numa era de protecionismo, violência e formas repulsivas de nacionalismo à moda antiga. Tudo isso pode ser evitado se formos simplesmente sensatos em relação ao papel da ciência econômica e ao papel de liderança bem mais fundamental que tem de ser assumido pelos cidadãos. Temos de cair fora do romantismo do globalismo à moda antiga, ao estilo do século XIX, e agir sensatamente, usando o poder que têm os cidadãos.

Leia mais...

- “Não há razão para salvar os bancos”, afirma filósofo canadense. Entrevista com John Ralston Saul publicada no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 06-02-2013.

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