Edição 453 | 08 Setembro 2014

Liberdade, Igualdade, Solidariedade. Os avanços do Estado Socioambiental de Direito

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Andriolli Costa e Márcia Junges

Tiago Fensterseifer e Ingo Wolfgang Sarlet abordam as peculiaridades que envolvem o princípio da Solidariedade no norteamento da relação homem—ambiente em âmbito constitucional

Enquanto a Liberdade foi o marco normativo que orientou o Estado Liberal de Direito, e a Igualdade o que dirigiu à racionalidade do Estado Social, aquilo que orienta a consolidação de um Estado Socioambiental de Direito não é outro princípio que não o da Solidariedade. Para os juristas Tiago Fensterseifer e Ingo Wolfgang Sarlet, autores de diversas obras sobre Direito Ambiental, este princípio tensiona e problematiza os demais, tendo em vista a promoção da dignidade humana e mesma das futuras gerações.

“O Estado Socioambiental, diferentemente do modelo não intervencionista do Estado Liberal, é encarregado de tutelar e promover os direitos fundamentais, entre eles o direito ao ambiente, cumprindo um papel proativo, comprometido com a implantação de novas políticas públicas para dar conta das novas tarefas ecológicas que lhe foram atribuídas constitucionalmente”, esclarecem. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, os dois juristas exploram o conceito, os avanços e limites de um Estado Socioambiental, os nexos entre desenvolvimento sustentável e direito ambiental e a importância da centralidade das discussões ambientais em um Estado Democrático de Direito.

Ingo Wolfgang Sarlet é doutor em Direito pela Universidade de Munique, com pós-doutorado nas Universidades de Munique, Georgetown e no Instituto Max-Planck de Direito Social Estrangeiro e Internacional. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUCRS, é ainda Professor de Direito Constitucional da Escola Superior da Magistratura do RS (AJURIS) e do Mestrado em Direito Constitucional Europeu na Universidade de Granada. É juiz de Direito de Entrância Final (RS). Autor, junto com Fensterseifer, das obras Direito Constitucional Ambiental (São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014), Direito Ambiental: Introdução, Fundamentos e Teoria Geral (São Paulo: Saraiva, 2014) e Princípios do Direito Ambiental (São Paulo: Saraiva, 2014).

Tiago Fensterseifer é doutorando e mestre em Direito Público pela PUCRS, com pesquisa de doutorado-sanduíche junto ao Instituto Max-Planck de Direito Social e Política Social de Munique, na Alemanha. Associado do Instituto O Direito por um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil, é professor-convidado de diversos Cursos de Especialização em Direito Constitucional e Direito Ambiental. É autor de Direitos Fundamentais e Proteção do Ambiente (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008) e coautor das obras acima citadas juntamente com Ingo Wolfgang Sarlet.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual o marco fundamental do Estado Socioambiental?
Tiago Fensterseifer e Ingo W. Sarlet –
O princípio da solidariedade é marco axiológico-normativo do Estado Socioambiental, tensionando a liberdade e a igualdade (substancial) no sentido de concretizar a dignidade em (e com) todos os seres humanos, inclusive em vista dos interesses (e direitos?) das futuras gerações (e, em alguma medida, até mesmo para além do espectro humano). O princípio da solidariedade (ou da fraternidade) é retomado da Revolução Francesa para transformar-se no novo marco jurídico-constitucional dos direitos fundamentais de terceira dimensão (entre eles, o direito ao ambiente) e do Estado (Socio)Ambiental de Direito contemporâneo.

Os princípios da liberdade e da igualdade, como os marcos normativos, respectivamente, do Estado Liberal (e dos direitos fundamentais de primeira dimensão) e do Estado Social (e dos direitos fundamentais de segunda dimensão), não deram conta sozinhos de contemplar uma vida digna e saudável a todos os integrantes da comunidade humana, deixando para os juristas contemporâneos uma obra normativa ainda inacabada. Com essa perspectiva, objetiva-se continuar na edificação de uma comunidade estatal que teve o seu marco inicial com o Estado Liberal, alicerçando agora novos pilares constitucionais ajustados à nova realidade social e desafios existenciais postos no espaço histórico-temporal contemporâneo em face da crise ecológica que vivenciamos hoje.

IHU On-Line - Qual é o nexo fundamental entre desenvolvimento sustentável e direito ambiental?
Tiago Fensterseifer e Ingo W. Sarlet –
O conceito de desenvolvimento sustentável opera a partir de três elementos interdependentes: o social, o econômico e o ambiental. O Direito Ambiental, por sua vez, encarrega-se de absorver os preceitos alinhavados pelo paradigma do desenvolvimento sustentável, estabelecendo um marco normativo (Constituição, legislação infraconstitucional, etc.) com o objetivo de modelar o comportamento dos atores sociais (públicos e privados) em prol da proteção ecológica. O Direito Ambiental objetiva assegurar que, com base nos três eixos do desenvolvimento sustentável, a proteção ecológica não seja subvalorizada frente aos demais elementos (social e econômico). Em outras palavras, o Direito Ambiental opera, com todo o arsenal jurídico de que dispõe (por exemplo, em sede penal, administrativa e cível) para frear práticas econômicas antiecológicas, perpetradas tanto por agentes públicos quanto privados e, portanto, alijadas do conceito de desenvolvimento sustentável.

IHU On-Line - Em que contexto surge a proteção constitucional do ambiente e quais são os principais avanços que ela trouxe?
Tiago Fensterseifer e Ingo W. Sarlet –
O Direito Ambiental brasileiro teve a sua consagração apenas no início da década de 1980, mais precisamente com a edição da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81). Muito embora nós já tivéssemos um movimento ambientalista operante desde o início da década de 1970 (por exemplo, a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural – AGAPAN, como a primeira entidade ecológica brasileira, foi criada em 1971) e algumas legislações de referência a temas ecológicos, foi apenas a partir da Lei 6.938/81 que se passou a conceber um (micro)sistema legislativo de proteção ecológica, com princípios, objetivos e instrumentos próprios.

Ademais, é a partir desse momento que o meio ambiente passa a ser consagrado como um bem jurídico autônomo no nosso sistema jurídico. Não se protegem mais os recursos naturais apenas por uma motivação instrumental, ou seja, por eles trazerem algum benefício para o ser humano (por exemplo, econômico ou mesmo na saúde pública), mas sim por representarem um valor em si. No entanto, a consagração constitucional da proteção ambiental vai além desse passo inicial.

A “constitucionalização” da proteção ambiental diz respeito justamente à centralidade que os valores e direitos ecológicos passaram a ocupar no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro. Isso não é pouco, pois representa uma “virada ecológica” de índole constitucional, ou seja, o pilar central da nossa estrutura legislativa passou a contemplar os valores e direitos ecológicos no seu núcleo normativo-protetivo. A consagração do objetivo e dos deveres de proteção ambiental a cargo do Estado brasileiro (em face de todos os entes federativos: União, Estados e Municípios) e, sobretudo, a atribuição do status jurídico-constitucional de direito fundamental ao direito ao ambiente ecologicamente equilibrado colocam os valores ecológicos no “coração” do nosso sistema jurídico, influenciando todos os ramos jurídicos, inclusive a ponto de limitar outros direitos (fundamentais ou não).

 IHU On-Line - A partir dessa perspectiva, qual é a necessidade e importância da existência de um Estado socioambiental?
Tiago Fensterseifer e Ingo W. Sarlet –
Na configuração constitucional do atual Estado de Direito edificado pela CF/88, de acordo com o que afirmamos anteriormente, a questão ambiental toma um papel central, assumindo o ente estatal a função de resguardar os cidadãos contra novas formas de violação à sua dignidade e aos seus direitos fundamentais por força da crise ecológica, inclusive diante dos novos riscos existenciais provocados pela sociedade de risco contemporânea (como preceitua o sociólogo alemão Ulrich Beck ). O Estado Socioambiental, diferentemente do modelo não intervencionista do Estado Liberal, é encarregado de tutelar e promover os direitos fundamentais, entre eles o direito ao ambiente, cumprindo um papel proativo, comprometido com a implantação de novas políticas públicas para dar conta das novas tarefas ecológicas que lhe foram atribuídas constitucionalmente (art. 225, caput e § 1º, da CF/88).

IHU On-Line - Quais seriam suas principais atribuições, contribuições e, também, limites?
Tiago Fensterseifer e Ingo W. Sarlet –
No tocante ao modelo contemporâneo de Estado de Direito, é possível aderir à ideia da superação do modelo do Estado Social (que, por sua vez, já havia superado o Estado Liberal) — pelo menos na forma assumida após a Segunda Guerra Mundial — por um modelo de Estado Socioambiental, também designado por alguns de Pós-Social, que, em verdade, não abandona as conquistas dos demais modelos de Estado de Direito em termos de salvaguarda da dignidade humana, mas apenas agrega a elas uma dimensão ecológica, comprometendo-se com a estabilização e prevenção do quadro de riscos e degradação ecológica.

O processo de afirmação histórica dos direitos fundamentais, sob a perspectiva das suas diferentes dimensões (liberal, social e ecológica), reforça a caracterização constitucional do Estado Socioambiental, em superação aos modelos de Estado Liberal e Social. O marco jurídico-constitucional socioambiental ajusta-se à necessidade da tutela e promoção — integrada e interdependente — dos direitos sociais e dos direitos ambientais num mesmo projeto jurídico-político para o desenvolvimento humano em padrões sustentáveis, inclusive pela perspectiva da noção ampliada e integrada dos direitos fundamentais socioambientais ou direitos fundamentais econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA).

Em vista de tais reflexões, é possível destacar o surgimento de um constitucionalismo socioambiental (ou ecológico, como preferem alguns) — ou, pelo menos, da necessidade de se construir tal noção —, avançando em relação ao modelo do constitucionalismo social, designadamente para corrigir o quadro de desigualdade e degradação humana em termos de acesso às condições mínimas de bem-estar. Em face de tal cenário, não é possível tolerar extremismos (fundamentalismos) ecológicos ou mesmo compreensões “autistas” e maniqueístas do fenômeno ambiental, de modo a não se admitir uma tutela ecológica que desconsidere as mazelas sociais que estão, conforme já se assinalou anteriormente, na base de qualquer projeto político-econômico-jurídico que mereça a qualificação de sustentável.

IHU On-Line – Se o surgimento de um Estado Socioambiental é reflexo de uma preocupação com a proteção do meio ambiente, esta preocupação já não deveria ser contemplada pelo nosso Estado Democrático de Direito?
Tiago Fensterseifer e Ingo W. Sarlet –
O Estado Socioambiental é, na sua essência, o atual Estado Democrático de Direito, mas reservando maior ênfase à proteção ecológica. A título de exemplo, o Relatório de Desenvolvimento Humano (2007/2008) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), intitulado Combatendo a mudança climática: solidariedade humana num mundo dividido, revela um quadro preocupante e injusto no horizonte humano, com um mundo cada vez mais dividido entre nações ricas altamente poluidoras e países pobres. Segundo o estudo em questão, não obstante os países pobres contribuírem de forma pouco significativa para o aquecimento global, são eles que mais sofrerão os resultados imediatos das mudanças climáticas.

O mesmo raciocínio, trazido para o âmbito interno dos Estados nacionais, permite concluir que tal quadro de desigualdade e injustiça — de cunho social e ambiental — também se registra entre pessoas pobres e ricas que integram determinada comunidade estatal. No caso do Brasil, que registra um dos maiores índices de concentração de renda do mundo, de modo a reproduzir um quadro de profunda desigualdade e miséria social, o fato de algumas pessoas disporem de alto padrão de consumo — e, portanto, serem grandes poluidoras —, ao passo que outras tantas muito pouco ou nada consomem, também deve ser considerado para aferir sobre quem deve recair o ônus social e ambiental dos danos ocasionados pela degradação ambiental em geral. Esse cenário, por sua vez, coloca em pauta a questão da justiça ambiental e da equidade no acesso aos recursos naturais.

IHU On-Line - Os dispositivos jurídicos para a salvaguarda do patrimônio ambiental são muitas vezes bastante avançados. No entanto, a aplicação efetiva da repressão legal encontra dificuldades na infraestrutura (física e tecnológica), nas manobras jurídicas e acordos econômicos. Mais do que dar a ver um sistema jurídico com vistas às discussões ambientais, não é preciso ainda dar suporte estrutural e político para sua devida efetividade?
Tiago Fensterseifer e Ingo W. Sarlet –
É correta a afirmação de que o maior problema que temos em relação à proteção ambiental não está na falta ou deficiência da legislação ambiental brasileira, mas sim na sua aplicação e efetividade. O Estado Socioambiental de Direito, nesse novo cenário constitucional, tem por missão e dever constitucional atender ao comando normativo emanado do art. 225 da CF/88, considerando, inclusive, o extenso rol exemplificativo de deveres de proteção ambiental elencado no seu § 1º, sob pena de, não o fazendo, tanto sob a ótica da sua ação quanto da sua omissão, incorrer em práticas inconstitucionais ou antijurídicas autorizadoras da sua responsabilização por danos causados a terceiros — além do dano causado ao meio ambiente em si.

Nesse contexto, a CF/88 delineou a competência administrativa (art. 23), em sintonia com os deveres de proteção ambiental, de todos os entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) na seara ambiental, de modo que incumbe a todos a tarefa — e responsabilidade solidária — de “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (inciso VI)” e “preservar as florestas, a fauna e a flora (inciso VII)”. A partir de tal entendimento, a não atuação (quando lhe é imposto juridicamente agir) ou a atuação insuficiente (de modo a não proteger o direito fundamental de modo adequado e suficiente), no tocante a medidas legislativas e administrativas voltadas ao combate às causas geradoras da degradação do ambiente, pode ensejar, em alguns casos, até mesmo a intervenção e o controle judicial, inclusive no tocante às políticas públicas levadas a cabo pelos entes federativos em matéria socioambiental. Nessa perspectiva, deve-se considerar não apenas um papel determinante do Poder Judiciário, mas também das instituições públicas voltadas à tutela dos direitos socioambientais e que dispõem de legitimidade para a adoção de medidas extrajudiciais e judiciais — por exemplo, do termo de ajustamento de conduta e da ação civil pública — para a resolução de tais conflitos, como é o caso do Ministério Público e da Defensoria Pública, além, é claro, das associações civis de proteção ambiental e do próprio cidadão, este último através do manuseio da ação popular.

IHU On-Line - Em que medida o desenvolvimento sustentável é plausível numa sociedade em que há um consumo ilimitado de bens e uma quantidade limitada de recursos?
Tiago Fensterseifer e Ingo W. Sarlet –
A ordem econômica estabelecida no art. 170 da CF/88, somados os objetivos fundamentais da República elencados no artigo 3º da CF/88, expressa a opção por um capitalismo ambiental ou socioambiental (ou economia ambiental ou socioambiental de mercado) capaz de compatibilizar a livre iniciativa, a autonomia e a propriedade privada com a proteção ambiental e a justiça social, com o propósito de “assegurar a todos existência digna”. O consumo sustentável está intrinsecamente relacionado à participação pública em matéria ambiental, pois as práticas de consumo de bens e serviços levadas a efeito pelo indivíduo também conformam um espaço de atuação política, e não tem, portanto, um propósito exclusivamente econômico. O comportamento do consumidor ajustado a um padrão ecologicamente sustentável dos produtos e serviços no âmbito das suas práticas de consumo é um forte instrumento de controle individual e social das práticas produtivas e comerciais de fornecedores de bens e serviços.

IHU On-Line - Em que aspectos o debate que reside no cerne do direito ambiental discute, em última instância, a dignidade da pessoa humana e a manutenção da vida na Terra, como um todo?
Tiago Fensterseifer e Ingo W. Sarlet –
Não há dúvida de que a manutenção da vida na terra está em jogo em face da atual crise ecológica (conforme refere, aliás, o filósofo alemão Vittorio Hösle ). Isso conduz, em grande medida, a vinculação dos valores ecológicos à própria concepção contemporânea de dignidade da pessoa humana. O princípio da dignidade da pessoa humana tem o seu conteúdo e espectro de proteção ampliados para assegurar um padrão de qualidade, equilíbrio e segurança ambiental (e não apenas no sentido da garantia da existência ou sobrevivência biológica), considerando-se, inclusive, que, nas questões ecológicas, muitas vezes esteja em causa a própria existência (e, portanto, sobrevivência) natural da espécie humana, para além mesmo da garantia de um nível de vida com qualidade ambiental.

Não por outra razão, tem-se o reconhecimento de uma dimensão ecológica inerente à proteção da dignidade da pessoa humana, o que se dá em razão do reconhecimento do direito ao ambiente como direito fundamental de terceira dimensão (ou geração) pelo nosso ordenamento jurídico constitucional (art. 225 da CF/88). As dimensões (ou, como preferem alguns autores, as gerações) de direitos fundamentais — e o mesmo se aplica aos direitos humanos na perspectiva internacional —, na sua essência, materializam os diferentes conteúdos normativos que conformam o princípio da dignidade da pessoa humana, reclamando uma compreensão integrada, desde logo incompatível com um sistema de preferências no que diz com a prevalência, em tese, de determinados direitos em relação a outros. Em outras palavras, o direito fundamental ao ambiente passa a integrar o mesmo núcleo normativo de proteção da pessoa também ocupado pelos direitos fundamentais liberais (de primeira dimensão) e pelos direitos fundamentais sociais (de segunda dimensão).

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