Edição 452 | 01 Setembro 2014

''O carrinho de compras deve ser transformado em carro de combate''

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Gloria Martínez - Periodismo Humano / Tradução: André Langer

"Anualmente, 17 milhões de pessoas morrem em consequência da fome e da desnutrição, ou seja, 40 mil a cada dia. Num dia, gastamos 4 bilhões de dólares em armamentos. Ou seja, para cada pessoa que morre de fome diariamente, usamos 100 mil dólares em armamento. Com o que gastamos por 100 mil euros, poderíamos alimentar essa pessoa durante mais de 200 anos. Estamos loucos? Somos idiotas? Somos simplesmente maus"

A veemência da frase acima é de José Esquinas Alcázar (Ciudad Real, 1945). E o faz com conhecimento de causa: Doutor Engenheiro Agrônomo pela Universidade de Madri e Doutor em Genética e Mestre em Horticultura pela Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. Trabalhou na FAO durante 30 anos em recursos genéticos, biodiversidade agrária, cooperação internacional e ética para a agricultura e a alimentação. Atualmente é professor Titular na Universidade de Madri e diretor da Cátedra de Estudos sobre Fome e Pobreza (CEHAP) na Universidade de Córdoba.

“Por outro lado, há uma série de paradoxos: o número de obesos é, desde 2005, superior ao de famintos e, além disso, ao contrário do que muitos pensam, a fome não é consequência da falta de alimentos. Existem no mundo alimentos, segundo a própria FAO, para alimentar o dobro da humanidade. O problema é o acesso a esses alimentos. Os alimentos estão no mercado, mas não chegam à boca nem à mesa dos que têm fome. A solução passa pela produção local. É preciso fortalecer a soberania alimentar”, prossegue Esquinas.

Apesar dos seus anos de vinculação com a FAO, ou talvez por isso, não mostra reparos em afirmar que “acabar com a fome é um problema de vontade política. Quando se apresentaram pandemias muito menos fortes que a fome, como a febre aviária, a gripe A ou a febre suína, foram investidas quantidades ingentes. O número de mortos pela gripe A durante quatro anos foi de 17 mil pessoas, menos da metade dos que morrem em um só dia de fome, e foram realizados esforços que não foram feitos no caso da fome. Muitas vezes a gente se pergunta se o problema da fome não é devido a ela não ser contagiosa. Mas eu considero uma miopia política não se dar conta de que a fome, mesmo não sendo contagiosa, é tremendamente perigosa. Já não falo de generosidade, falo de egoísmo inteligente”.

“Sem soberania alimentar nunca haverá segurança mundial nem paz”
Um egoísmo inteligente que Esquinas exemplifica com as revoltas produzidas nos últimos anos. “Em 2008, com o aumento dos preços, há revoltas nas ruas em 60 ou 70 países do mundo e a queda de muitos regimes. Em 2011, com um aumento nos preços dos alimentos, os analistas dizem que a causa imediata da Primavera Árabe (que, por outro lado, estou muito contente que ocorra por outras razões) foi o aumento do preço dos alimentos. Na base da violência internacional está a fome e a pobreza. O mesmo vale para a migração ilegal. Ninguém arrisca sua vida em uma embarcação, deixando sua casa, se não é porque, em muitos casos, ficando em sua casa, arrisca muito mais sua vida e a da sua família. Sem soberania alimentar nunca haverá segurança mundial nem paz. Deveria ser uma estratégia global assimilar o conceito de soberania alimentar.”

Mas falar de soberania alimentar não é fácil, sobretudo em organismos internacionais: “Na FAO está ‘proibido’, praticamente em todas as reuniões das Nações Unidas, falar de soberania alimentar. Não é um termo aceito; só se fala de segurança alimentar porque o primeiro vai contra o conceito de livre comércio. Mas é preciso produzi-los localmente para que os que passam fome tenham alimentos, e isso é soberania alimentar. Sem soberania alimentar não há soberania”.

Para Esquinas, um dos exemplos mais claros da importância da soberania alimentar é Benin: “Ali, até 20, 30 anos atrás, não havia problemas de alimentação. Mas diferentes missões internacionais, inclusive o Banco Mundial, o FMI, sugeriram ao governo que produzisse algodão, porque havia grande demanda por parte dos Estados Unidos e da Europa e a produtividade ali era alta. Seguiram o conselho e começaram a produzir muito mais. Os pequenos agricultores venderam suas propriedades e trabalharam como jornaleiros nas grandes plantações de algodão porque ganhavam mais. Todos estavam contentes até 2008, quando se multiplicaram os preços dos alimentos básicos no mercado internacional. Então, com seu salário de jornaleiro já não podiam mais comer. Queriam voltar às suas propriedades, mas já não era possível. Atualmente, no Benin há uma alta porcentagem da população que passa fome. É fundamental ter soberania para não estar à mercê de ninguém”.

“Seleciona-se na diversidade; na uniformidade não há seleção possível”

José Esquinas recorda que quando era pequeno encontrava no mercado até 40 variedades de maçãs e como seu pai lhe dizia que quando dava uma boa colheita, conservava-se a semente. “Eles não sabiam que estavam fazendo uma melhora genética, nem eu. Não sabiam, mas foi o que os agricultores fizeram ao longo de 10 mil anos de agricultura. E fruto dessa melhora é a variedade que cada um tinha”, comenta Esquinas.

Filho e neto de agricultores, José Esquinas afirma que é um erro limitar-se a falar de diversidade biológica marginalizando a agrícola: “A maior parte daqueles que falam de biodiversidade está falando do urso panda, da baleia ou do rinoceronte. Está muito bem, é preciso preservá-los, temos a obrigação moral e jurídica de fazê-lo, mas não são os que nos alimentam. É mais sexy que a biodiversidade biológica do arroz, do trigo ou do milho, mas não nos alimenta. Devemos falar da biodiversidade biológica agrícola”.

Para este engenheiro agrônomo de reconhecimento internacional, um dos problemas é que grande parte das espécies alimentares está sendo infrautilizada porque se encontram em zonas rurais dos países em desenvolvimento, nos chamados cultivos dos pobres. “Ninguém quer investir para dar de comer a quem não tem com que pagar, mas o potencial que esses cultivos têm é enorme. Nós desconhecemos muitos milhares de cultivos e isso é uma causa da perda de biodiversidade”, sentencia este morador da Cidade Real.

Ele expõe números que evidenciam a perda de um dos recursos naturais, a biodiversidade: “O ser humano ao longo da história utilizou entre 8 milhões e 10 milhões diferentes de espécies. Hoje cultivamos 150, e apenas 12 contribuem para 70% da alimentação calórica humana e apenas quatro espécies vegetais (o trigo, o arroz, o milho e a batata) representam 60% da alimentação calórica humana. Reduzimos drasticamente a base biológica da nossa alimentação. Tudo em consequência do choque de civilizações, nos quais foram se marginalizando cultivos como a quinoa, a cañihua, o amaranto, porque pertencem a culturas ou civilizações que foram preteridas”.

E prossegue: “Perdendo biodiversidade agrícola, perdemos a nossa capacidade de selecionar e, portanto, de nos adaptarmos às mudanças imprevisíveis do meio ambiente. Seleciona-se na diversidade; na uniformidade não há seleção possível e o mundo está muito mais vulnerável. A perda de biodiversidade genética coloca em perigo o futuro da humanidade”.

“Isso não quer dizer que vamos parar o progresso, a produção de novas variedades comerciais e uniformes, mas hoje é imprescindível conservar a pouca biodiversidade que nos resta em bancos de geoplasma, em campos de agricultores ou em parques naturais. A diversidade é um valor em si mesmo, não apenas a diversidade biológica. Temos de estar conscientes de que os nossos recursos genéticos são fruto do trabalho dos agricultores durante milênios, que fazem parte da identidade cultural dos povos, assim como é a língua ou uma catedral.”

“Não existe nenhum país do mundo que seja autossuficiente”
A defesa dos mais pobres, a consciência da fome no mundo e a segurança alimentar são seus eixos vitais. Por isso, José Esquinas dedicou quase toda a sua carreira profissional a impulsionar o Tratado Internacional sobre os Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura (TIRFAA): “A maior parte das variedades foi coletada nos países em desenvolvimento, mas os bancos de germoplasma encontravam-se nos países desenvolvidos. A quem pertencia então esse material? Caso não se estabelecesse um acordo que dissesse o contrário, esses recursos pertenceriam ao país que os conservava, o que era uma barbaridade”.

Um tratado que se conseguiu aprovar em 2001, após 28 anos de negociações, fruto da necessidade da cooperação internacional para compensar a interdependência entre recursos genéticos: “Não existe nenhum país do mundo que seja autossuficiente; a média de interdependência é de mais de 70%. A Espanha depende em 83-84% dos recursos genéticos procedentes do exterior cada vez que há um problema em nossa própria agricultura. Além disso, há uma característica muito interessante, que em matéria de agrodiversidade e recursos genéticos, os chamados países ricos são os mais pobres com respeito aos recursos genéticos e vice-versa. A interdependência não é linear; o Norte depende do Sul muito mais que o Sul do Norte”.

Os objetivos do tratado são três: a conservação dos recursos genéticos para as gerações futuras é uma obrigação jurídica para todos os países; a utilização sustentável dos mesmos, incluindo uma variedade mais ampla das variedades pouco utilizadas; e a distribuição justa e equitativa dos benefícios derivados do uso desses recursos.

Dentro do tratado, Esquinas destaca dois elementos. O primeiro, o art. 9, que reconhece os direitos do agricultor sobre o material genético. O segundo, os artigos 10 a 13, nos quais se estabelece um sistema multilateral de acesso ao recurso e de distribuição equitativa dos benefícios derivados do mesmo.

“Este sistema aplica-se aos 64 cultivos mais importantes para a segurança alimentar mundial. Os usuários podem ter acesso livremente a eles, mas isto os obriga a não patenteá-los. Se há material derivado e sua comercialização produz benefícios monetários, uma pequena porcentagem (entre 0,5 e 1,1%) será destinada para financiar projetos e atividades nos países em desenvolvimento e suas comunidades agrícolas. Uma espécie de Taxa Tobin que se aplica sobre transações de geoplasma”, explica este homem comprometido com a Terra e com todos os seus habitantes.

Mas, apesar de que este tratado seja ratificado por mais de 130 países, inclusive pela Espanha, é aplicado apenas em parte. É por isso que Esquinas insiste na necessidade de que a sociedade civil pressione os governos para que o cumpram e “para que o tratado não fique inoperante”.

“O futuro é muito importante para ser deixado nas mãos de políticos ou cientistas”
José Esquinas está convencido de que a atual crise é uma crise de ética, de valores, que confunde o conceito de desenvolvimento com o de crescimento econômico. “Em 1999, o Butão fez uma proposta em Nova York: que em vez de medir o desenvolvimento pelo PIB, fosse substituído pelo FIB (Felicidade Interna Bruta). Anos mais tarde, foram aplicados indicadores seguindo esta proposta e viu-se que o Butão era um dos países mais desenvolvidos. Isto produziu alarma em setores econômicos e financeiros e foi engavetado”.
Esquinas sustenta que é um grande erro pensar que o cidadão não pode fazer nada. Defende que “o futuro é muito importante para ser deixado nas mãos de políticos ou cientistas. Recordemos o lema do Rio: ‘Pensar globalmente, agir localmente’. Façamo-lo através da internet, da nossa profissão, do nosso voto, do nosso consumo. Escolhendo o que queremos consumir, como, que seja limpo, justo, ético... Forcemos o mercado nessa direção. Transformar o carrinho de compras em um tanque de combate”.

Transmite seu contundente discurso com firmeza, mas com tranquilidade. Mostra interesse por saber se seus interlocutores o entendem. Nesta ocasião, dirige-se aos participantes da Jornada “Biodiversidade e Soberania Alimentar”, organizada pela Escola de Agroecologia para a Paz, pela Cooperação e o Desenvolvimento Rural Adolfo Pérez Esquivel de CERAI e pela Plataforma pela Soberania Alimentar do País Valencià, em colaboração com o SEAE. Incentiva-os para que atuem, para que marquem objetivos utópicos, para que sonhem: “É preciso sonhar. Saiamos da realidade que nos prende para ver o tipo de mundo que podemos ter e lutemos por isso. A crise está nos dizendo que se continuarmos assim, isto se acabará. Mercado, democracia... são instrumentos para uma sociedade melhor e os estamos convertendo em deuses infalíveis, o que é um grande erro. Se não quisermos que esta geração seja a última, temos que assumir a responsabilidade”.

Confessa que algumas vezes teme ser repetitivo em suas afirmações, com seus exemplos, mas que seu empenho é para que seu discurso faça reagir cada vez a mais pessoas: “Desde o momento em que conhecemos os tremendos números da fome já não podemos esquivar-nos da responsabilidade. O pior que podemos fazer é não fazer nada pensando que não podemos produzir um impacto. Quem pensa que é tão pequeno na sociedade que não pode produzir um impacto é porque nunca dormiu com um pernilongo no quarto. Não sejamos pernilongos, mas moscas importunadoras”.

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