Edição 451 | 25 Agosto 2014

“Cruzamentos felizes”, branqueamento e biopoder

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Andriolli Costa

O historiador Gustavo da Silva Kern resgata o histórico do controle da vida no Brasil a partir das dinâmicas de mestiçagem

Ainda que a dinâmica de mestiçagem tenha sido fundamental para a consolidação da sociedade brasileira como tal, as questões raciais historicamente sempre foram alvo de tensionamento. Por um lado, intelectuais como Gilberto Freyre teciam elogios à miscigenação, descrevendo-a como tendo um “efeito democratizante sobre o equilíbrio de extremos que caracterizou a formação histórico-sociológica do Brasil” — aliada a ideia de uma certa “democracia racial”. Por outro, entusiastas do branqueamento da população brasileira, como João Baptista Lacerda e Oliveira Vianna, enxergavam na mestiçagem a oportunidade de promover uma “arianização do Brasil”.

É o que relata o historiador Gustavo da Silva Kern, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele, o exercício do biopoder no Brasil no que tange às questões raciais pode ser visto em diversos pontos ao longo de nossa historiografia. Um dos mais emblemáticos, talvez, seja ainda durante a Primeira República (1889-1930), quando “o Estado procurou promover o branqueamento da população brasileira, principalmente através do influxo de imigrantes europeus em larga escala”.

Na elaboração desta estratégia biopolítica, ocupa papel de destaque a pesquisa de João Baptista Lacerda, em que previa que “dentro de um século o elemento ameríndio e o elemento negro desapareceriam, dando lugar ao mestiço branqueado que constituiria o elemento por excelência da população, apto ao desenvolvimento e garantidor do progresso nacional”. Ainda segundo Kern, tudo dependeria do sucesso do que outro teórico do branqueamento, Oliveira Vianna, chamou mais tarde de “cruzamentos felizes”. “O Estado trataria de garantir que esse contingente europeu, racialmente superior, se diluísse entre a população de cor, considerada por nossos homens de sciencia como racialmente inferior.”

Gustavo da Silva Kern é licenciado em História pelo Centro Universitário Metodista e especialista em História Africana e Afro-brasileira pela Faculdade Porto-Alegrense (FAPA). Mestre e doutorando em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, é membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Currículo e Pós-modernidade (GEPCPós) do PPGEDU/UFRGS. 

Biopoder e a constituição étnico-racial das populações é o tema da conferência que o pesquisador proferirá na quinta-feira, 28-08-2014, às 17h30min na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Dinâmicas de mestiçagem fazem parte da formação de todo o povo brasileiro. No entanto, as questões raciais sempre foram alvo de tensionamento e enfrentamento, sendo que muitas vezes a “pureza de sangue” era vista como característica de distinção. Como estas questões se atualizam nos dias de hoje? 

Gustavo da Silva Kern – Como já indica a pergunta, a formação da população brasileira aconteceu em um processo histórico de longa duração, caracterizado fundamentalmente pela mestiçagem étnico-racial. De modo que a busca pela pureza de sangue (ou de raça), ao que me parece, não chegou a tornar-se um objetivo relevante desde que a questão racial passou a ser objeto de teorizações científicas e disputas políticas no Brasil, a partir da segunda metade do século XIX. Nina Rodrigues  e Euclides da Cunha  ― teóricos racialistas, bem como precursores das Ciências Sociais em nosso país ― foram céticos quanto à possibilidade da existência de um “tipo nacional único”, característico de um povo homogêneo do ponto de vista étnico-racial. Mesmo os teóricos entusiastas do branqueamento da população brasileira, como João Baptista Lacerda  e Oliveira Vianna , afirmavam ser a correta condução da mestiçagem o mecanismo fundamental para a desejada arianização do Brasil. Desse modo, mesmo esse projeto eugenista de melhoramento racial da população através do branqueamento não buscava empreender uma purificação racial. 

Neste sentido observa-se uma regularidade, na medida em que atualmente, assim como no contexto anteriormente referido, da passagem do século XIX para o XX, inexiste a pretensão do ensejo de uma purificação racial. Naquele contexto histórico, a raça era compreendida como um conceito científico através do qual se poderia não apenas definir o caráter biológico da população brasileira, mas também determinar suas possibilidades de progresso social, cultural, econômico, etc. Ou seja, o estatuto biológico-racial era tomado como elemento determinante em última instância. Do que decorriam posições otimistas e pessimistas acerca do futuro: seria possível alcançar o tão desejado progresso uma vez que a nação era composta por uma população considerada, na sua maior parte, biologicamente degenerada e, portanto, racialmente inferior?

Atualmente, a questão racial brasileira tem sido tomada como uma questão, sobretudo, política. Desde meados da década de 1990, com a emergência das políticas de ação afirmativa, essa politização das relações raciais ganhou força, afinal o Estado ― principalmente através da iniciativa do Governo Federal ― vem institucionalizando uma sιrie de polνticas pϊblicas que levam em conta justamente o recorte ιtnico-racial da populaηγo brasileira, reconhecendo oficialmente a existκncia do racismo e a necessidade de mecanismos compensatσrios voltados para a inclusγo social dos grupos ιtnico-raciais historicamente discriminados.     

 

IHU On-Line – Diversos autores, como Gilberto Freyre , promovem certo "elogio da mestiçagem" ao evidenciar o intercâmbio de raças que dão origem ao povo brasileiro. Você acredita que estas perspectivas colaboraram para um outro olhar sobre a questão racial no país?

Gustavo da Silva Kern – Creio que, primeiramente, deve-se reconhecer que Gilberto Freyre é autor incontornável para compreendermos a complexidade do país em que vivemos, difícil entender um pouco sobre o Brasil “sem passar por ele”. De fato, Freyre sofreu duras críticas por todo um grupo de sociólogos ― entre eles Florestan Fernandes  e Fernando Henrique Cardoso  ― por sua tese mais importante, apresentada em Casa Grande & Senzala e posteriormente desenvolvida em seus ensaios subsequentes.

Segundo essa tese, a miscigenação racial teria tido um efeito democratizante sobre o equilíbrio de extremos que caracterizou a formação histórico-sociológica do Brasil. O intercurso entre as três matrizes étnico-raciais da população brasileira ― lusitana, africana e ameríndia ― é visto por Freyre como algo positivo, pois a miscigenação no plano cultural teria sido fundamental para que se cumprisse, com sucesso, a formação de uma “civilização nova” no Brasil. Sem ter cunhado a expressão “democracia racial”, teve seu nome a ela ligado na medida em que sua tese de trabalho de certo modo sustenta a ideia de que no Brasil os preconceitos raciais seriam brandos ou inexistentes, pois as relações raciais seriam algo democráticas. Em 1949, após a traumática experiência da Segunda Guerra, onde o racismo foi levado às últimas consequências pelo regime nazista, a Unesco apresentaria o Brasil ao mundo como um modelo de convivência harmônica entre as raças.  

É importante ter em mente, contudo, que esse “elogio da mestiçagem” é anterior ao trabalho de Freyre, sendo encontrado em autores que lhe precederam, como Sílvio Romero  e o já referido João Baptista Lacerda. Ainda que Freyre tenha proposto que a miscigenação racial teve um efeito democratizante na formação do Brasil, ele não se furtou de demonstrar como nossa radical desigualdade social foi historicamente constituída através de uma série de práticas sociais, brilhantemente descritas e analisadas em páginas densas onde se pode aprender muito sobre o Brasil.

Penso que essa ideia na qual o Brasil figura como um exemplo de “democracia racial” é ainda hegemônica, todavia já foi profundamente questionada. Na Conferência da Unesco de 2001, o Brasil se tornou signatário da Declaração de Durban , reconhecendo oficialmente a existência do fenômeno social racismo e comprometendo-se a promover políticas afirmativas como forma de combate aos seus efeitos. O acontecimento é significativo, na medida em que o Estado rompeu com sua adesão histórica à percepção do Brasil como uma democracia racial. 

A questão racial brasileira é um campo de tensões políticas, de disputa, mas, mesmo que questionemos esse elogio da mestiçagem e a ideia de democracia racial — o que me parece legítimo do ponto de vista político e intelectual —, não podemos dispensar a grandiosa contribuição de Gilberto Freyre para pensar o Brasil.           

 

IHU On-Line – O que implica a percepção da passagem de um discurso de ênfase biológica para um de ênfase política no que tange as questões raciais?

Gustavo da Silva Kern - Hannah Arendt  propôs que a noção de raça se tornou a “chave da história” para toda uma corrente de pensadores do século XIX. Transpondo o conceito biológico para a análise do social, os teóricos racialistas teriam feito um uso ideológico da ciência, valendo-se de determinadas conclusões científicas para fins políticos de caráter racista. Tem-se, portanto, uma ambivalência permanente entre a dimensão biológica e a dimensão política da noção de raça.  

A compreensão da historicidade da questão racial brasileira, acredito eu, deve passar pela análise de como se articularam as dimensões biológica e política da noção de raça nos discursos acerca das relações no Brasil. Sugeri, em pesquisa já concluída, a hipótese de que teria havido a passagem de uma ênfase biológica para uma ênfase política da questão racial no Brasil. 

Entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX, a raça é reconhecida fundamentalmente como conceito científico, através do qual seria possível conhecer verdadeiramente a população brasileira, suas possibilidades de futuro diante da intransponível determinação biológico-racial em última instância. A obra de Gilberto Freyre ― que, como afirmei anteriormente, foi um importante sustentáculo para a percepção do Brasil como uma “democracia racial” ― marca uma inflexão importante, que se dá a partir de meados do século XX. A noção de raça surge adjetivando o conceito político de democracia. Tendencialmente, no transcorrer da segunda metade do século XX, a politização da noção de raça se afirmou principalmente no debate crítico acerca da ideia de democracia racial. Importantes trabalhos de Florestan Fernandes empreenderam tal crítica, dando a linha central dos argumentos das organizações vinculadas ao movimento negro, como o Movimento Negro Unificado, que definem a raça como uma construção política, qualificando positivamente a ideia da existência de uma raça negra.

Desse modo, compreender esse deslocamento da ênfase biológica para a ênfase política da noção da questão racial implica reconhecer a complexa historicidade do tema. Parece-me que o processo histórico no qual se deu a politização da raça e das relações raciais está intimamente ligado à emergência das políticas afirmativas, e pode lançar luz sobre o controverso debate em torno de sua aplicação.      

 

IHU On-Line – De que formas o biopoder é constituído nas relações do brasileiro com as instituições e com o outro? 

Gustavo da Silva Kern - Na acepção que lhe conferiu Michel Foucault , o biopoder é o poder exercido sobre a vida. Um tipo de poder caracteristicamente moderno, que ao tomar por objeto a vida de uma coletividade humana, mais propriamente de uma população, toma a forma de biopolítica. Um exemplo limite do exercício desta biopolítica foi a política de eugenização racial levada a cabo pelo regime nazista, definida como a expressão mais dramática do que o filósofo francês chamou de “racismo de Estado”. Ainda de acordo com Foucault, seria importante perceber que dificilmente um Estado moderno poderia governar o “corpo múltiplo” que é a população ― base da nação, ou seja, o povo nação ― abstendo-se de praticar alguma forma de racismo. 

Valendo-se de exemplo histórico, é possível observar o exercício do biopoder no Brasil no que se refere ao modo como, durante a Primeira República (1889-1930), o Estado procurou promover o branqueamento da população brasileira, principalmente através do influxo de imigrantes europeus em larga escala. Na elaboração desta estratégia biopolítica que tinha por fim o melhoramento racial da população, através da correta condução da mestiçagem, é emblemática a tese que João Baptista Lacerda apresentou ao Congresso Universal das Raças, realizado em Londres no ano de 1911. Então diretor do Museu Nacional, que na época era uma das principais instituições científicas do país, Lacerda foi o representante oficial do Brasil no Congresso. Em sua conferência, intitulada “Sobre os mestiços no Brasil”, o antropólogo fez o elogio da política imigrantista em curso, prevendo que dentro de um século o elemento ameríndio e o elemento negro desapareceriam, dando lugar ao mestiço branqueado que constituiria o elemento por excelência da população, apto ao desenvolvimento e garantidor do progresso nacional. Tudo dependeria do sucesso do que outro teórico do branqueamento, Oliveira Vianna, chamou mais tarde de “cruzamentos felizes”. O Estado trataria de garantir que esse contingente europeu, racialmente superior, se diluísse entre a população de cor, considerada por nossos homens de sciencia como racialmente inferior. A multiplicação de “cruzamentos felizes” produziria uma arianização generalizada, que segundo Lacerda e Vianna já se constituíra em tendência estatisticamente observável durante as primeiras décadas do século XX.   

O texto da conferência de Lacerda ― que não foi um intelectual qualquer, e que naquele contexto representava a posição oficial do Estado brasileiro quanto à questão racial ― marca a emergência de um discurso eugenista local, que ganharia livre curso em seu empenho de propor estratégias para melhorar as qualidades raciais da população brasileira. A vida, determinada em última instância pela raça, deveria tornar-se objeto da política. Por isso Giuseppe Cocco  e Antonio Negri  propuseram, na trilha das teorizações de Foucault, que o exercício do biopoder no Brasil se caracteriza por constituir uma forma de condução biopolítica da mestiçagem racial.      

 

IHU On-Line – Recentemente, o jogador de futebol Daniel Alves comeu uma banana lançada contra ele em campo. Após o ocorrido, Veja publicou em sua capa que Alves havia “quebrado a cara do preconceito – talvez para sempre”. É possível, apenas por uma postura pessoal, superar um preconceito socialmente instituído? 

Gustavo da Silva Kern – Ainda que os exemplos sejam importantes, é evidente que atitudes isoladas não são suficientes para modificar algo que é de ordem estrutural. Poucos dias após Daniel Alves ter ironizado a atitude racista da torcida adversária, outras situações do mesmo tipo se repetiram nos estádios da Europa. Infelizmente, por outro lado, o acontecido foi muito mais midiático que politizado, o que dificulta que façamos uma apreciação séria de suas possíveis repercussões. No que tange ao combate do racismo, o mundo contemporâneo conheceu um exemplo singular no recentemente falecido Nelson Mandela . Mesmo tendo liderado com sucesso a transição política ao fim do apartheid e conduzido a África do Sul ao status de nação chave no cenário político e econômico internacional, seu exemplo não foi suficiente para suprimir o fenômeno social do racismo naquele país, afinal o regime segregacionista impôs para a posteridade resquícios de suas estruturas racistas.      

 

IHU On-Line – Envolvido recentemente em polêmicas com o movimento negro, vereador de Rio Grande - RS  afirmou ser contra as cotas, por negros e brancos já terem direitos iguais no Brasil. A quem interessa o discurso do “fim do racismo”?  

Gustavo da Silva Kern – Apesar de a igualdade de direitos e deveres, garantida pela Constituição Federal de 1988, constituir-se em uma conquista fundamental, principalmente em um país que viveu quase 400 anos de sua história sob a égide de um regime escravista, devemos reconhecer que essa garantia tem se reduzido a uma abstração teórica. Os estudos estatísticos que o vereador Kanelão admite desconhecer são acachapantes no sentido de apontar a permanência de um racismo estrutural. No Brasil atual seus efeitos negativos funcionam principalmente no sentido da discriminação estruturalmente compulsória da população negra. Em contrapartida, o racismo não é propriedade de um grupo étnico-racial particular que teria o privilégio de seu exercício. O racismo é culturalmente partilhado e, portanto, deve ser tomado como um fenômeno social. Parece-me um equívoco a tentativa de reduzir o racismo a um problema moral, de dimensão individual. Concordo com Florestan Fernandes no sentido de que o combate ao racismo interessa primeiramente aos grupos étnico-raciais discriminados, todavia creio que seria muito importante que a sociedade brasileira contribuísse para o desenvolvimento de relações étnico-raciais mais equitativas.    

 

IHU On-Line – De que formas os discursos da meritocracia e contrário ao “paternalismo” eclipsam o racialismo e o darwinismo social?

Gustavo da Silva Kern – Algo a ser levado em conta é que racialismo e darwinismo social, por um lado, e meritocracia neoliberal, por outro lado, se afirmam sobre condições epistemológicas absolutamente distintas. O primeiro na ordem do discurso cientificista do século XIX, o segundo na ordem do discurso da economia política neoliberal. Sem dúvida ambos se relacionam no sentido de justificar a desigualdade social pela eventual capacidade dos indivíduos frente aos desafios impostos por uma sociedade competitiva. Todavia, o darwinismo social, de saída, definia aqueles que não eram capazes de obter sucesso na competição (entendida como seleção natural), os elementos biologicamente degenerados e racialmente inferiores. Diferentemente, o discurso neoliberal da meritocracia prega que em uma sociedade composta por iguais (argumento que não se sustenta empiricamente), cabe a cada um desenvolver suas capacidades, conforme seus próprios méritos. Desse modo, ambos os discursos, característicos de momentos históricos diversos, partindo de arcabouços epistemológicos absolutamente diferentes, atuam, cada qual por seu turno, como discursos de verdade, compondo o campo de lutas onde se constituem as relações de poder. 

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