Edição 203 | 06 Novembro 2006

Nacionalizar para globalizar: a construção de um Brasil exótico na moda de vestir nacional

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O IHU Idéias desta semana, marcado para 09-11-2006, tem como tema a palestra Nacionalizar para globalizar: a construção de um Brasil exótico na moda de vestir nacional. A palestrante é a antropóloga MS Débora Krischke Leitão, doutoranda em Antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O assunto é parte da pesquisa desenvolvida por Débora no doutorado com a tese Brasilidades à moda da casa, e a respeito dele a pesquisadora concedeu a entrevista que segue, avaliando a influência da corrente francesa na moda brasileira. Débora constata que, a partir da segunda metade do século XX, aconteceu uma modificação nesse aspecto, “não só pela emergência desses novos centros produtores, mas igualmente pelo nascimento do desejo de criar uma moda nacional”.

Uma moda com cara de Brasil

Débora é graduada e mestre em Antropologia pela UFRGS. É pesquisadora associada do Institut d’Histoire du temps Présent (CNRS, Paris) e do NUCE, da UFRGS e autora de Antropologia & Consumo: diálogos entre Brasil e Argentina. Porto Alegre: AGE, 2006, que foi lançado e autografado em 04-11-2006 na Feira do Livro, em Porto Alegre. Débora também tem sua pesquisa publicada no Cadernos IHU Idéias n° 16 com o tema Mudança de Significado da Tatuagem Contemporânea.

IHU On-Line - Quais são as peculiaridades da moda de vestir brasileira? Antropologicamente haveria uma relação entre a formação social brasileira e o vestuário aqui desenvolvido?

Débora Krischke Leitão
- Nossa moda de vestir, historicamente, esteve muito influenciada pela França. Ao longo do século XX, essas influências aparecem de formas diversas, pendendo algumas vezes mais para as imitações, outras para adaptações. Até Gilberto Freyre , em seu livro Modos de Homem e Modas de Mulher. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997 comenta sobre a (às vezes excessivamente) fiel inspiração francesa dos hábitos de vestir brasileiros. Ainda que após a Segunda Guerra Mundial tenha acontecido uma descentralização no campo da moda, e a França tenha perdido um pouco de sua hegemonia, com o surgimento de novos centros produtores como Milão e Nova Iorque, a influência francesa é inegável. E ela é visível, por exemplo, nos francesismos utilizados no cotidiano, assim como na imprensa de moda, para o campo semântico relacionado à roupa: tipos de tecidos, cores, tendências de moda, ou mesmo situações sociais que envolvem o vestuário. E não é apenas na área da moda que a influência cultural francesa infiltra-se por aqui, sendo igualmente forte no campo das artes e mesmo em nosso pensamento social. Vale lembrar que muito disso tem início com a “missão artística francesa” trazida ao Rio de Janeiro por Dom João VI, supostamente civilizadora e pedagógica. Não resta dúvida de que, a partir da metade do século XX, essa influência foi modificada, não só pela emergência desses novos centros produtores, mas igualmente pelo nascimento do desejo de criar uma moda nacional.

IHU On-Line - Há um tipo autenticamente brasileiro de vestir? Como se apresentam as diferenças regionais nesse aspecto e como o elemento exótico se mostra presente nas criações nacionais?

Débora Krischke Leitão
- Autenticidade é uma palavra um tanto controversa aos olhos da Antropologia. O que procuro compreender em meu trabalho é justamente a utilização que se faz, contemporaneamente e através de nossa moda de vestir, dos estereótipos sobre o Brasil, sobre os tipos regionais, e o que é definido (sempre de forma arbitrária) pelo discurso da moda, e da alta moda em particular, como “brasileiro” e “autêntico”. Como meu trabalho está centrado na produção e no consumo dessa moda contemporânea, procuro desconstruir, historicizar e contextualizar esses discursos de autenticidade, muito mais do que endossá-los.

IHU On-Line - Nossa moda ajuda a consolidar uma imagem de Brasil no exterior? Por quê? Que imagem seria essa?

Débora Krischke Leitão
- Sim, a promoção de nossa moda no exterior colabora para divulgar imagens do Brasil lá fora. A moda, compreendida como indústria cultural, é lugar privilegiado de produção e de veiculação de sentidos, idéias e valores. E, fazendo ela também parte do cotidiano, do dia-a-dia, essa sua capacidade de promover idéias é ainda mais forte. O caso que estudei foi justamente a divulgação de nossa moda na França, lugar que historicamente tem sido visto como legítimo e hegemônico nesse campo. Como estamos trabalhando com representações presentes no mercado e no consumo, essa imagem é freqüentemente positivada. No caso por mim analisado, ela é exotizada. Convém lembrar que o exotismo, ao contrário do racismo, é uma forma de relação com o outro que confere a esse outro qualidades e traços positivos. Ele mantém, entretanto, a relação de alteridade e de distância. Se o Brasil divulgado lá fora mostra uma produção valorizada, bonita e consumível, ele também é visto como um outro distante, exótico, por vezes primitivo. Além da alteridade, também se mantém a hierarquia. Ao que parece essa estratégia, no campo da moda, funciona bem nesse momento, mas ela mantém certos estereótipos que nem sempre podem ser bons, úteis ou justos no que diz respeito a uma imagem mais geral do Brasil.

IHU On-Line - Como a moda brasileira se apresenta no mercado internacional? Quais são os nichos que permanecem inexplorados e quais são aqueles em que já temos presença marcante?

Débora Krischke Leitão
– Quantitativamente, nossas exportações no setor têxtil não são tão expressivas quanto parecem. Parece ter acontecido, há alguns (poucos) anos, uma opção por parte dos produtores e distribuidores de moda no País de investir menos em quantidade (e conseqüentemente preço baixo) e mais em qualidade, marca, design, agregando valor aos produtos divulgados no exterior. Essa mudança nos tira do lugar de concorrência com outros produtores, por exemplo, os asiáticos, cujos preços não podíamos alcançar. Assim, há o investimento em divulgação de produtos de luxo, de nossa alta moda, que se torna interessante lá fora não pelo preço baixo, e sim pelo fato de ser brasileira. A procedência brasileira, colada às imagens de exotismo, originalidade, sensualidade, por exemplo, passa a ser sublinhada e publicizada como estratégia de venda. Divulgamos nossa moda principalmente para a Europa, mas também para os Estados Unidos. Na Europa, essas qualidades que são atualmente atribuídas à moda brasileira funcionam muito bem, pois encontram respaldo em algumas tendências e valores mais gerais, como as modas étnicas e éticas.

IHU On-Line - Em linhas gerais, como se apresenta a indústria de vestuário nacional? Quais foram seus principais avanços nos últimos anos?

Débora Krischke Leitão
- Em meados dos anos 1980, na moda brasileira, iniciou-se um momento de busca por profissionalização e por independência. Até bem pouco tempo, entretanto, essa busca deu-se pelo esforço em internacionalizar nossa moda. Investimos em produção autoral, independente, e brasileira, mas tudo isso procurando ao máximo neutralizar qualquer conteúdo que remetesse ao nacional, ao Brasil. Ainda que produzida no Brasil, ela procurava deixar de lado a adjetivação concernente à origem, mostrando-se o mais internacional e moderna possível. Nos últimos anos há uma modificação nessa postura. Passa-se a utilizar, em nossa moda, conteúdos e inspirações claramente nacionais. Nos grandes eventos de moda que aconteceram em 2004 e 2005, por mim observados, quando de minha pesquisa de campo, há uma presença hiperbólica de Brasil nas coleções apresentadas. Nas revistas especializadas, essa presença é reforçada, uma vez que as imagens e os discursos escolhidos para figurar como emblemáticos da nossa produção de moda daquele momento são justamente os mais expressivos quanto ao nacional.

IHU On-Line - Qual sua opinião a respeito da importância de eventos como o São Paulo Fashion Week? Nessa mesma linha, que eventos de menor porte seriam importantes para a consolidação da moda de vestir nacional?

Débora Krischke Leitão
- Acredito que no Brasil o gosto do público geral pela moda vem crescendo. Muito dele é herdeiro de um momento particular que vivemos, nos anos 1970, quando a multinacional francesa Rhodia organizava e patrocinava no País grandes espetáculos-desfiles de moda que eram pela primeira vez abertos, com a participação do público. Antes disso os eventos de moda eram verdadeiros chás de senhoras endinheiradas, fechados, reservados para uma elite, e acontecendo em hotéis e clubes de luxo. Atualmente os grandes eventos como o SPFW mobilizam multidões. As pessoas brigam por um convite, infiltram, fazem de tudo para estar ali e fazer parte daquele mundo. Isso se dá muito, porque, a exemplo desses eventos dos anos 1970 que citei, os atuais optam por convidar muitas celebridades midiáticas, que fazem parte do imaginário da população em geral, para desfilar ou assistir. Muito disso acontece também porque tais eventos têm grande visibilidade na imprensa: jornais, rádios, televisão, todos falam disso o tempo todo na época do SPFW ou do Fashion Rio. Um pouco a la Hollywood, o mundo da moda promove-se como mundo dos sonhos, estratégia mais do que eficaz quando se trata de construir desejos de consumo. Fazer parte, mesmo que por um breve momento, ou acompanhar a cobertura da mídia, possibilita um prazer imaginativo que se completa no consumo do produto originário daquele mundo de sonhos, ou mesmo de sua cópia nem sempre tão fiel. Por sua vez, além de sua repercussão no público em geral, tais eventos possibilitam a profissionalização do campo. Divulgados aqui no Brasil ou no exterior, a existência deles consolida a imagem do País como produtor de modas.

IHU On-Line - O que a senhora pensa sobre a moda ecologicamente ética? Quais são as perspectivas desse tipo de moda no mercado? Qual é a aceitação do público?

Débora Krischke Leitão
- Esse é um dos nichos de mercado que a produção de moda e vestuário brasileira vem buscando atualmente. Com a ênfase no artesanal e no natural/orgânico, tentamos colar nossa produção a esse setor de consumo. Contemporaneamente o consumo ético/ecológico, assim como social e economicamente engajado, adquire valência positiva no mercado da moda, e vira tendência. O artesanal, o tradicional, o orgânico e o reciclado surgem como tendência moderna. Uma vez que o imaginário que existe no exterior e, sobretudo na França, a respeito de nosso país está ligado a essas representações de tradição, de artesanato, de forte vínculo com a natureza, o filão de mercado do consumo ético funciona muito bem para nós. Algumas empresas especializadas em produtos brasileiros adotam claramente essa postura. Um bom exemplo é a fabricante dos tênis Veja. Ainda que de origem francesa, essa empresa produz no Brasil, e com matéria-prima ecológica: borracha vegetal da Amazônia e algodão “bio”. Praticamente desconhecida aqui no Brasil, essa marca de sapatos esportivos, na Europa, é divulgada como produtora dos “tênis autenticamente brasileiros”. Outro exemplo é a empresa brasileira Tudo Bom, que confecciona roupas feitas com algodão biológico e, na França, divulga seu produto como economicamente justo, dizendo oferecer remuneração adequada as mulheres brasileiras responsáveis por sua produção. Dessa forma, outros produtos brasileiros, ainda que não oficialmente engajados nesse tipo de mercado, acabam sendo divulgados e consumidos pela divulgação indireta que recebem com a moda ética, que muito agrada o consumidor europeu.

 

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