Edição 451 | 25 Agosto 2014

Os “Brasis” da década de 1920 e a chegada de Vargas ao poder

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Ricardo Machado

Dossiê Vargas: A professora e pesquisadora Marieta de Moraes Ferreira comenta a emergência de Getúlio Vargas a partir das agitações políticas da década que antecedeu sua ascensão presidencial

Semana de Arte Moderna, coluna de insurgentes, antropofagismo. O Brasil que engoliu a si próprio nos anos 1920 fez emergir, na década de 1930, um sujeito que acreditava na industrialização e em um controle mais rígido das federações para o país deixar de ser uma sociedade agrária e predominantemente oligárquica para se transformar em um Estado. A insatisfação política e as demandas que emergiam na década de 1920 foram capitaneadas e levadas a cabo por Getúlio Vargas. “Temos a reação republicana que começa no final de 1921, depois a criação do Partido Comunista, a Semana de Arte Moderna e o Movimento Tenentista no meio do ano. Todos esses eventos são indicativos de que novos ventos estavam soprando e que havia, por parte de diversos segmentos, demandas por mudanças, e a própria cisão das oligarquias permitia a vazão dessas vozes que veiculavam ideias e projetos diferentes”, explica Marieta de Moraes Ferreira, em entrevista por telefone à IHU On-Line.

Quando Vargas assume o poder, no governo provisório, entre 1930 e 1934, com a elaboração da nova constituição, as forças heterogêneas que o acompanhavam desde sua chegada ao poder tornam-se oposição. “(...) Vai havendo uma depuração, e muitas vozes que o apoiavam passam para a oposição, porque começam a discordar dele, uma vez que, de certa maneira, a proposta da Aliança Liberal de criar um sistema político liberal vai se dissolvendo em favor de uma proposta autoritária”, explica Marieta. “Os militares acreditavam que a realização de eleições, a criação de partidos, permitiria um retorno das velhas oligarquias. Então, o projeto que vai se desenhando paulatinamente, e que Vargas é a expressão maior, é um projeto de domesticação das oligarquias; não se trata de ir contra as oligarquias, mas de diminuição do poder delas. Com isso ocorre um fortalecimento do Estado, fortalecimento do Executivo, que vai se mostrar muito em função da própria modernização e expansão do aparelho de Estado”, complementa.

Marieta de Moraes Ferreira é graduada em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF, onde também fez mestrado e doutorado. Realizou pós-doutorado na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales - EHESS, em Paris. Foi, entre outras atividades, diretora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas - CPDOC/FGV, presidente da Associação Brasileira de História Oral - ABHO, além de ter sido presidente da International Oral History Association - IOHA (2000/2002).  Publicou o livro Em busca da Idade do Ouro (Rio de Janeiro: UFRJ, 1994), organizou os livros Rio de Janeiro: uma cidade na História e, em parceria com Janaína Amado, Usos & abusos da História Oral (Rio de Janeiro: FGV, 2000), João Goulart: Entre a Memória e a História (Rio de Janeiro: FGV, 2006), além de outros inúmeros trabalhos na área de História Contemporânea do Brasil, História Oral e Memória e História do Rio de Janeiro.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – De que maneira o tenentismo da década de 1920 também fez emergir a chamada Era Vargas?

Marieta de Moraes Ferreira – O tenentismo, ou melhor, o movimento que passou a ser chamado dessa forma posteriormente, com as revoltas dos tenentes, cuja primeira foi em 1922, no Rio de Janeiro, depois em 1924 e após com a Coluna Prestes , resulta de uma insatisfação do segmento militar que se soma a demandas de outros segmentos da sociedade. Há, inclusive, uma discussão de até que ponto as revoltas dos tenentes tratavam-se de representações da classe média ou de uma vanguarda dos setores médios, reivindicando uma maior participação política. Outras teses questionam esse tipo de interpretação e chamam a atenção para as revoltas dos tenentes, que seriam corporativas e que expressariam insatisfações com relação à organização militar, às políticas de promoção e aos próprios soldos que recebiam. O que percebo, a partir de meus estudos, principalmente com relação à primeira revolta e à reação republicana, em 1922, com a disputa à Presidência da República com a candidatura de Nilo Peçanha , é o momento de dissidência política dentro das próprias oligarquias. Então, a década de 1920 expressa uma série de insatisfações e conflitos, especialmente no ano de 1922. Temos a reação republicana , que começa no final de 1921, depois a criação do Partido Comunista , a Semana de Arte Moderna  e o Movimento Tenentista no meio do ano, com o 18 do Forte . Todos esses eventos são indicativos de que novos ventos estavam soprando e que havia, por parte de diversos segmentos, demandas por mudanças, e a própria cisão das oligarquias permitia a vazão dessas vozes que veiculavam ideias e projetos diferentes. Nesse momento percebemos que na primeira revolta tenentista havia, em alguma medida, certa aliança entre os tenentes e setores das oligarquias, como o grupo do Nilo Peçanha, no RJ, tendo como foco comum a insatisfação. Ainda que tivessem interesses distintos, convergiam em alguns pontos e afinidades, no sentido de questionar a política dominante naquele momento, concretizada na aliança de Minas Gerais e São Paulo. Então a década de 1920 traz essa possibilidade de mudança, onde muitas coisas estão acontecendo do ponto de vista do crescimento industrial, do aumento da urbanização, do crescimento dos setores médios e da própria transformação da sociedade que começava a indicar uma revisão do regime federalista vigente, uma tendência maior à centralização política do poder do Estado.

 

IHU On-Line – Como podemos compreender a perspectiva histórica que sustenta que a chegada de Vargas ao poder em 1930 foi resultado não de uma revolução, mas de uma articulação de diversos grupos heterogêneos?

Marieta de Moraes Ferreira – Penso que o movimento de 1929, a criação da Aliança Liberal  e as próprias eleições em 1930, com a derrota de Vargas na disputa eleitoral, que leva depois ao movimento armado, expressam uma insatisfação com aquele status quo dominante da Primeira República , com o domínio dos grupos oligárquicos, com determinados vícios do sistema político que inibia uma maior participação, com a problemática eleitoral e a grande margem de fraudes, sem voto secreto, sem justiça eleitoral, etc. Além disso, havia todas as questões relacionadas com a modernização do aparelho de Estado e a necessidade de uma presença maior da União na vida econômica e social. Vargas, apesar de sua candidatura na Aliança Liberal, reunia em torno de si a efervescência de muitas vozes. Quando finalmente ele assume o poder, o governo provisório, no período de 1930 a 1934, já com a elaboração da nova Constituição, vai havendo uma depuração, e muitas vozes que o apoiavam passam para a oposição, porque começam a discordar dele, uma vez que, de certa maneira, a proposta da Aliança Liberal de criar um sistema político liberal vai se dissolvendo em favor de uma proposta autoritária. 

O que junta Vargas e os tenentes, nos primeiros anos da década de 1930? É justamente o projeto autoritário. Os militares acreditavam que a realização de eleições, a criação de partidos, permitiria um retorno das velhas oligarquias. Então o projeto que vai se desenhando paulatinamente, e que Vargas é a expressão maior, é um projeto de domesticação das oligarquias; não se trata de ir contra as oligarquias, mas de diminuição do poder delas. Com isso ocorre um fortalecimento do Estado, fortalecimento do Executivo, que vai se mostrar muito em função da própria modernização e expansão do aparelho de Estado. Por exemplo, a criação do Ministério da Educação e do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, que são duas áreas fundamentais. De um lado o Ministério do Trabalho, onde vai ser implementada a legislação trabalhista, que será um elemento-chave desta nova ordem; de outro, as reformas educacionais, preocupadas em modernizar e ampliar a educação no Brasil. Há nesse projeto esta ideia de que o país precisava, para que a expansão capitalista pudesse continuar, ter um Estado moderno, com uma máquina bem engrenada e uma presença maior na economia.

 

IHU On-Line – Por que a primeira fase de Getúlio Vargas no poder — do governo provisório ao Estado Novo — é melhor compreendida quando levamos em conta toda movimentação política da década de 1920?

Marieta de Moraes Ferreira – Há uma questão muito importante para compreender a década, pois durante muito tempo se teve uma ideia de que a chegada de Vargas ao poder é o marco de onde se inicia todo o processo de transformação vindouro. Entretanto, olhar para a década de 1920 é relativizar um pouco isso. Não se trata de minimizar o papel de Vargas ou o que foi feito na década de 1930, mas entender que muitas das propostas e das iniciativas que vão ser tomadas com Vargas já vêm sendo gestadas na década de 1920. Por exemplo, toda a discussão trabalhista é uma discussão que vem ocorrendo com a criação do Ministério do Trabalho, em 1930, e com a implementação da lei trabalhista, cujas demandas são captadas por Vargas e operacionalizadas por ele de modo que sejam eficazes. O fortalecimento do Estado é algo que já se percebe anos antes da chegada de Vargas ao poder, e percebemos várias vezes a crítica ao federalismo, a demanda por protagonismo do Estado — o texto de Oliveira Viana , em 1922, O Idealismo da Constituição (Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1932), já critica o federalismo da Primeira República, colocando em pauta a necessidade de fortalecimento do Estado, etc. Vargas será, novamente, o personagem que vai pegar essas demandas e implementá-las na década de 1930.

 

IHU On-Line – Qual foi o papel da Coluna Prestes, a partir de 1925, dentro do contexto político da época? Como seu enfraquecimento nos anos 1930 abriu espaço político para Getúlio Vargas?

Marieta de Moraes Ferreira – Na minha concepção, a Coluna Prestes se dissolve antes de 1930. O movimento é resultado da confluência desses grupos de tenentes que a partir de 1924 saem pelo país, liderados por Prestes, passando por vários estados e percorrendo uma enormidade de quilômetros, no intuito de conhecer a realidade do país e promover certa conscientização da realidade brasileira da época. Porém, há um momento em que a Coluna Prestes não tem mais possibilidade de existência, ela se esgota em si mesma. Não há a possibilidade de se fazer uma revolução e virar o jogo dos grupos oligárquicos, porque existe uma recomposição depois do governo de Artur Bernardes , quando teremos a escolha de um novo presidente da República, que vai resultar na eleição de Washington Luís , e as oligarquias que tinham cindido em 1922 já estão novamente aliadas. Como a repressão havia sido intensa, expurgando das Forças Armadas aqueles setores de maior contestação, a Coluna se dissolve e, então, Prestes e outros membros vão se exilar em países vizinhos como a Bolívia e a Argentina, quando o movimento deixa de ter relevância. A importância que ela teve foi muito mais de denúncia da realidade brasileira, de como viviam as populações do interior e também o fato de que a Coluna catapultou muito a figura de Prestes. Ele se transforma em uma grande liderança política e um grande personagem da história, mas, na verdade, não sei se isso tem relação direta com a chegada de Vargas ao poder. É claro que muitos desses membros da Coluna Prestes estarão com Getúlio em 1930 e durante o governo provisório. 

 

IHU On-Line – Como Getúlio Vargas sobrevive ainda hoje em nossa política nacional? O que do projeto democrático de Brasil da década de 1920 até hoje não foi realizado?

Marieta de Moraes Ferreira – Em um artigo que escrevi por ocasião dos 50 anos da morte de Getúlio Vargas, intitulado Getúlio Vargas e as comemorações , faço um resgate do que correspondem, a cada década, as comemorações, de 1974 a 2004, pesquisando basicamente o Jornal do Brasil, pois o periódico, todos os anos, fazia matérias em torno da morte de Vargas. A partir disso conseguimos intuir porque Vargas continua sendo um personagem tão importante na memória política brasileira. É interessante ver como essa imagem se altera ao longo do tempo: em agosto de 1964, logo depois do Golpe, as comemorações e as lembranças ficam extremamente minimizadas, exatamente porque o golpe foi feito contra alguns seguidores, como Jango , Brizola , etc. Em 1974, o que vai ser lembrado de Getúlio é o Estado Novo, a crítica à ditadura, pois estamos vivendo, à época, o auge da repressão do regime militar instaurado no Brasil havia 10 anos. Em 1984, estamos em um momento de redemocratização, e a lembrança de Vargas é importante e intensa, pois as grandes personalidades da história brasileira naquele momento vão a São Borja e ao túmulo de Getúlio Vargas para homenageá-lo — como Brizola, que havia ficado anos exilado e recém havia fundado o Partido Democrático Trabalhista – PDT, e Tancredo Neves , uma antiga figura do então Partido Social Democrático – PSD, que estava se articulando como candidato à Presidência da República —, e todos exaltam o seu papel e seu governo para destacar a importância desta herança varguista. 

Depois, em 1994, novamente a presença de Getúlio fica eclipsada, pois estamos na época de Fernando Henrique , cuja palavra de ordem foi “a Era Vargas acabou”. Vivíamos um momento em que se questionava a ideia de um Estado intervencionista, de um Estado desenvolvimentista, pois se tratava de um momento da defesa das grandes privatizações de empresas estatais e públicas criadas por Vargas, e ainda tinha a flexibilização do trabalho. Todo o legado que havia sido deixado estava em causa e sugerindo uma superação. Finalmente, quando chegamos em 2004, com o governo Lula, novamente a herança de Vargas volta com grande valorização porque, de novo, busca-se valorizar as grandes empresas públicas, a permanência da legislação trabalhista. Mas qual Vargas será lembrado nesse momento? Obviamente o Vargas do segundo governo; o personagem autoritário do Governo Provisório e do Estado Novo não aparece nessas rememorações. Exalta-se o Vargas democrata, o Vargas da Petrobras, do Banco Nacional do Desenvolvimento – BNDES, do Conselho Nacional de Pesquisa – CNPQ, etc. Essa herança de Vargas como político modernizador do Estado brasileiro, uma das grandes figuras do nacional desenvolvimentismo, da industrialização e da legislação trabalhista é muito presente. E muitas vezes o Vargas do Estado Novo fica mais silenciado em um plano secundarizado.

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