Edição 451 | 25 Agosto 2014

A condição colonial da Amazônia

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Ricardo Machado e Andriolli Costa

Jornalista e ativista, Rogério Almeida afirma que a visão mecanicista da região como provedora de matérias-primas para atender demandas externas é reatualizada constantemente pelos próprios planos de governo

A mineração é uma atividade de grande representatividade para a economia brasileira, especialmente nos estados do norte do país, o que gera grandes empecilhos para a revisão de políticas públicas que afetem o setor. Promulgado em 1967, o atual Código de Mineração retrata a conjuntura política e econômica de sua época. No entanto, para o jornalista e ativista Rogério Almeida, a proposta de novo código (PL 5.807/13), que está em análise na Câmara dos Deputados, pouco faz para realmente mudar o status quo do setor.

“Na queda de braço desigual entre as grandes corporações e as populações ancestrais existem inúmeros lobbys para a configuração de medidas normativas em favor do capital. Em azeitar o sistema e fragilizar ainda mais a condição das populações ancestrais”, expõe. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele critica o modo como a Amazônia ainda hoje é vista pelo Capital como provedora de matérias-primas para atender demandas externas. Mais do que isso, esta visão seria reatualizada pelos próprios planos de governo, em que “a natureza e as populações nativas são tratadas como um empecilho aos projetos de ‘desenvolvimento’, uma representação do atraso, e que por conta disso devem ser superadas e subjugadas à lógica e racionalidade do capital”.

Rogério Almeida é graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA, com especialização em Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento da Amazônia e mestrado em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Jornalista, professor e assessor de ONGs e movimentos sociais, é autor de Araguaia-Tocantins: fios de uma História camponesa (São Luís: Fórum Carajás, 2006) e Pororoca Pequena: Marolinhas sobre a(s) Amazônia(s) de Cá (Belém, 2012). Mais informações sobre o autor podem ser lidas em seu blog pessoal, em http://bit.ly/ofuroblog. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – De que maneira os projetos de Belo Monte  e Belo Sun  redefinem a geografia e os modos de vivência das comunidades tradicionais da Amazônia Brasileira?

Rogério Almeida – Os projetos citados fazem parte de uma política de integração e desenvolvimento que privilegiam grandes empresas, que contam com o apoio do Estado como financiador ou facilitador/regulador no setor normativo. Eles estão sob o guarda-chuva da Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana (IIRSA) , mobilizada pelo Banco Mundial e que tem a anuência do Estado Brasileiro. Grandes projetos na Amazônia (brasileira ou não) que possuem como protagonistas megacorporações do grande capital, com financiamento do BNDES, tendem a redefinir os territórios já estabelecidos ou em luta para reconhecimento das populações ancestrais da região. Eles desorganizam as formas de produção, laços de amizade, solidariedade. Provocam a expropriação pela força, pela cooptação,  pela judicialização e outros mecanismos. No conjunto de passivos, provocam impactos nas dimensões econômicas, sociais e culturais. Um dos graves problemas é o reassentamento, que, via de regra, nunca garante as mesmas condições de reprodução econômica, social e cultural. Ele ameaça a segurança alimentar, detona com a possibilidade de pesquisa de fauna e flora ainda não conhecidas. 

 

IHU On-Line – Podemos considerar que tais projetos neodesenvolvimentistas recolocam em prática uma dinâmica secular de expropriação e exploração das comunidades locais?

Rogério Almeida – Condição colonial provedora de matérias-primas para atender demandas externas tem sido o papel conferido à Amazônia. Não tem ocorrido distensão nesse sentido. Os recortes sobre as várias realidades existentes na Amazônia, desde os anos coloniais, são reatualizados pelos planos de governo. Neles a natureza e as populações nativas são tratadas como um empecilho aos projetos de “desenvolvimento”, uma representação do atraso, e que por conta disso devem ser superadas e subjugadas à lógica e à racionalidade do capital. 

Desta forma, a feição autoritária do Estado tem se mantido ao longo dos séculos na definição de políticas sobre a região; estas, orientadas para a conquista dos territórios e as riquezas existentes e motivadas a partir das demandas dos interesses dos países centrais. A experiência do megaempresário Henry Ford , no Pará no começo do século passado, com a tentativa de cultivo da borracha em larga escala, ladeada pela exploração mineral de Daniel Ludwig  no Amapá nos anos 1950, são considerados casos emblemáticos da expansão capitalista do século XX na Amazônia. 

 

IHU On-Line – Considerando o processo de mineração do ouro, uso de produtos tóxicos, assoreamento e barramento da corrente do Rio Xingu, quais são os impactos ambientais para as comunidades ribeirinhas? 

Rogério Almeida – Ambos os projetos vão impactar a região conhecida como Volta Grande do Xingu, onde está sendo realizado o barramento do rio, que terá uma redução em pelo menos 80% de sua vazão. É o mesmo perímetro de ação da mineradora canadense Belo Sun. Os impactos são cumulativos. Não se conhece ainda a dimensão exata dos impactos da barragem, e já se tem outro projeto de grande dimensão, que usará explosivos e produtos químicos para a extração do ouro. Os moradores das localidades da Vila da Ressaca e da Ilha da Fazenda e as populações indígenas possuem um futuro incerto. Ou como prefere a professora Sônia Magalhães , o Estado está fomentando um genocídio de dimensões históricas contra os povos indígenas da região. Os projetos afetam em profundidade a economia dos moradores, acesso a fontes de proteína, com a proibição, pelas empresas, de acesso a áreas públicas apropriadas indevidamente, poluição dos recursos hídricos, redução da pesca, alteração da paisagem, incidência de doenças, apenas para citar algumas. As mesmas reconhecidas pelos próprios documentos das empresas.   

 

IHU On-Line – Há algum programa de prevenção de acidentes ambientais? Como se dá o diálogo entre a mineradora e os habitantes locais?

Rogério Almeida – Não sei responder com exatidão sobre a situação acerca da prevenção de acidentes. No entanto, em visita no fim do ano passado aos locais da Volta Grande do Xingu, o quadro verificado é de grande tensão com relação ao futuro dos moradores da Vila da Ressaca e da Ilha da Fazenda. Em particular na Ilha da Fazenda, que nem o Consórcio Belo Monte, nem a Canadense Belo Sun reconhecem que impactam ou irão impactar o local, que não possui energia elétrica e sofre com o abastecimento de água potável.     

 

IHU On-Line – Do total de R$ 500 milhões estimados em arrecadação de impostos ao longo de 12 anos que estão previstos na concessão à Belo Sun, qual a previsão de aporte de recursos às populações impactadas pela exploração? Há algum programa de investimento específico para os afetados?

Rogério Almeida – No campo normativo existe uma série de medidas no sentido de minorar o saque das riquezas locais. Porém, tudo fica no campo normativo. O consórcio Belo Monte não cumpre as condicionantes do licenciamento ambiental. Das 23 condicionantes, somente 3 ou 4 são atendidas. Vamos analisar os 30 anos da mineração em Carajás, no sudeste do Pará, qual o saldo? Os seminários realizados pelas populações locais em parceria com alguns setores das universidades evidenciam um cipoal de externalidades negativas: desmatamento, violência de diferentes matizes contra as populações locais, trabalho escravo e por aí vai. Há uma situação de duplo saque: o Estado, que mantém uma feição autoritária com relação às políticas de desenvolvimento para a região, além de financiar a partir do BNDES, ainda renuncia fiscalmente com a adoção da Lei Kandir.   

 

IHU On-Line – O novo Código de Mineração tende a corrigir os problemas de desoneração fiscal das mineradoras, a chamada Lei Kandir , ou tende a reforçar esta lógica?

Rogério Almeida – Na queda de braço desigual entre as grandes corporações e as populações ancestrais existem inúmeros lobbys para a configuração de medidas normativas em favor do capital. Em azeitar o sistema e fragilizar ainda mais a condição das populações ancestrais. Aí estão o Código Mineral e o Florestal, medidas de permissão em acessar os territórios considerados tradicionais. Aqui apanho um fragmento do manifesto da frente contra a mineração, que diz: “A proposta tornou o projeto ainda mais desequilibrado, colocando a mineração como uma prioridade absoluta, acima de todos os outros usos do território. Chega ao absurdo de propor que a criação de unidade de conservação ambiental, demarcação de terra indígena, assentamentos rurais e definição de comunidades quilombolas dependerão de anuência prévia da Agência Nacional de Mineração - ANM. Ou seja, subjuga a proteção de nossa biodiversidade, belezas cênicas e dos territórios de uso tradicional de povos indígenas e quilombolas aos interesses das empresas mineradoras”. E tem ainda o agravante de o relator do projeto ser financiado pelas mineradoras. Não existe isenção.     

 

IHU On-Line – Qual a situação dos garimpeiros da região que tiveram que suspender suas atividades por conta da concessão à Belo Sun Mining Corp? O número de empregos aberto pela companhia foi suficiente para atender a demanda local?

Rogério Almeida – Era o garimpo artesanal que movia a economia da Vila da Ressaca e da Ilha da Fazenda desde os anos 1940. Os territórios são áreas da União. Parte da Vila da Ressaca é um projeto de assentamento da reforma agrária do INCRA. Com a presença da empresa ocorreu uma desagregação, incerteza e esvaziamento dos locais há uns 12 meses. A Vila da Ressaca tem um aspecto de cidade fantasma. Com relação ao número de geração de empregos, os documentos da Belo Sun anunciam que o empreendimento vai gerar perto de 2 mil empregos. A situação é que a cultura da população é de trabalho autônomo, a garimpagem, que segundo eles rendia até 5 mil por mês.  

 

IHU On-Line – Que mecanismos legais existem no sentido de garantir uma distribuição dos recursos das jazidas de modo mais equitativo às populações afetadas pela extração de ouro? 

Rogério Almeida – A regra que configura essa modalidade de projeto é a expropriação das populações locais. As empresas fazem perfumaria, marketing de responsabilidade social. Reformam a escola, colocam caixa d´água, bancam festival disso ou daquilo e capitalizam como responsabilidade social e ambiental. O modelo de desenvolvimento estabelecido para a Amazônia consagra o saque.  

 

IHU On-Line – Diante do contexto atual vivido nesta região do Pará, que desafios estão postos ao Novo Código de Mineração? Que tipos de medidas são viáveis para garantir mais qualidade de vida às populações da região?

Rogério Almeida – Como falei acima. O Novo Código faz parte de medidas que azeitam o acesso à terra e aos recursos locais pelas grandes corporações. Acredito nas mobilizações das inúmeras frentes populares que buscam ampliar e garantir direitos destas populações, entre elas: Justiça nos Trilhos , que acompanha as situações em Carajás, o Movimento Xingu Vivo , a mobilização de alguns setores na região do Tapajós. 

 

IHU On-Line – O atual projeto de desenvolvimento nacional, predominantemente baseado no crescimento do PIB, tornou-se um beco sem saída às populações tradicionais? Que alternativas seriam viáveis a este modelo neodesenvolvimentista?

Rogério Almeida – O modelo privilegia o grande capital. Não resta dúvida. Mas as populações ancestrais, detentores de conhecimento milenar, conflitam no sentido de garantir seus territórios e pela efetivação de seus direitos. Em certa medida existem vitórias, como o reconhecimento de reservas extrativistas, definição de alguns territórios como projetos de assentamentos e outras modalidades, quilombolas e indígenas. O processo é lento. Os financiamentos, as pesquisas, os currículos, as práticas e tecnologias em sua ampla maioria tendem a privilegiar o grande capital. Para não falar no perfil conservador e oligárquico do Congresso Nacional, onde a principal bancada é a ruralista.   

 

Leia mais...

- Exploração de minério: o surgimento de um novo Carajazão. Entrevista com Rogério Almeida publicada no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, de 17-12-2013; 

- Mineração no Xingu, a batalha entre a canadense Belo Sun e os garimpeiros da Ressaca. Artigo de Rogério Almeida publicado no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU de 04-12-2013.

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