Edição 448 | 28 Julho 2014

"O celibato é um grande valor, mas deveria ser opcional”

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Patrícia Fachin

Padre Ney Brasil compartilha as memórias de sua vida espiritual e chama a atenção para o grande desafio contemporâneo da Igreja católica: repensar e reconceitualizar a noção de infalibilidade

Uma vida dedicada ao sacerdócio e à docência. Assim tem sido os últimos 60 anos de padre Ney Brasil Pereira, que percebeu os “sinais de vocação” aos 11 anos, quando ingressou no Seminário Menor de Azambuja, no município de Brusque, em Santa Catarina e, posteriormente, deu continuidade à sua formação teológica e filosófica. Regente do Coral da Catedral de Florianópolis há 40 anos, padre Ney Brasil é responsável pela parte musical das missas dominicais e, ao longo da sua trajetória, vem avaliando e percebendo o desenvolvimento da própria Igreja. 

Com formação anterior ao Concílio Vaticano II, ele acompanhou as reformas feitas em Roma e suas consequências na Igreja brasileira. A mudança mais visível pós-Concílio, pontua, é “a da Liturgia, evidentemente”. Segundo ele, o “abandono do latim, na liturgia e na formação do clero, trouxe como consequência uma liturgia mais espontânea e menos rubricista, e uma teologia também mais espontânea, pensada e ensinada em vernáculo, mais bíblica e indutiva, dando possibilidade à criação e desenvolvimento da teologia da libertação, uma das grandes marcas do Espírito em nosso tempo”. 

Sutil, mas pontual em suas críticas, padre Ney Brasil assinala que “quanto aos inegáveis ‘avanços’, nos primeiros 20 anos após o Concílio, muitos a meu ver não souberam pôr em prática a sábia advertência da 2ª carta de João, v. 9: ‘Todo aquele que avança, e não permanece na doutrina do Cristo, não tem a Deus’, isto é, avançaram demais. Explico-me: é bom ‘avançar’, inclusive obedecendo ao Espírito que nos conduz ‘à plenitude da Verdade’ (Jo 16,13), mas sem deixar de ‘permanecer’, esse verbo tão querido do Discípulo Amado”. E acrescenta: “Quanto aos ‘avanços’ na formação do clero, senti-os exagerados, causando enormes preocupações aos bispos e formadores, naqueles anos em que tudo tinha que ser discutido e aprovado, ‘de baixo’ para cima’”.

Especialista em musicologia, ele avalia as mudanças em relação à música durante a liturgia. “Os Padres Conciliares não podiam imaginar os efeitos, espontâneos, da ‘abertura’ para o vernáculo. Essa ‘abertura’ tornou-se norma. Foi como um dique há muito tempo represado, quatro séculos depois que Lutero já o havia aberto para os seguidores da Reforma. A admissão do violão, da guitarra, foi logo dispensando o órgão de tubos, instrumento nobre, mas caro, e algumas bandas foram incorporando a bateria... É uma evolução, um desenvolvimento que ninguém pôde nem pode impedir, embora se deva, sim, nortear”, ressalta. 

Convidado pela IHU On-Line a conceder a entrevista a seguir, publicada em 24-07-2014 no sítio do IHU e disponível em http://bit.ly/ihu240714, padre Ney Brasil chama a atenção para o “grande desafio” da Igreja católica: repensar e reconceitualizar a noção de “infalibilidade”. “É um dogma do Concílio Vaticano I, o da infalibilidade papal, como é dogma também a inerrância bíblica, portanto, a infalibilidade bíblica, ‘naquilo que Deus quis que fosse escrito em vista de nossa salvação’ (Dei Verbum, n. 11)”. 

Para ele, o dogma da Infalibilidade foi definido num contexto de luta da Igreja do século XIX contra o racionalismo. “Mas quantas posições da Igreja no próprio Syllabus de Pio IX estão hoje superadas! Quem não reconhece que, se Deus é infalível, o nosso falar sobre Deus não pode ser infalível, pois então não seria humano! Ora, a linguagem humana, exatamente por ser humana, é falível, perfectível e, por isso, também, mutável. Por que não assumir um outro adjetivo, como o sugeriu Hans Küng em 1968 ou 69: ‘indefectível’?”, sugere. 

Padre Ney Brasil Pereira é mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, licenciado em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma e especialista em Musicologia pela Duquesne University, Pittsburgh. É capelão das Instituições Penais de Florianópolis, regente do Coral “Santa Cecília”, da Catedral Metropolitana de Florianópolis, além de membro da Pontifícia Comissão Bíblica e professor no Instituto Teológico/Faculdade Católica de Santa Catarina.  

Confira a entrevista. 

 

IHU On-Line - Como iniciou sua trajetória na Igreja?

Ney Brasil Pereira - Iniciou pelo nascimento em família católica, em São Francisco do Sul, Santa Catarina, 1930, por sinais de vocação presbiteral desde cedo, ingresso no Seminário Menor de Azambuja, Brusque, Santa Catarina, aos 11 anos, estudos de Filosofia no Seminário Maior de São Leopoldo, Rio Grande do Sul, de Teologia na Universidade Gregoriana em Roma, ordenação presbiteral também em Roma, em 1956. Meu ministério presbiteral, ao longo de quase 60 anos, tem sido o de professor: os primeiros 15 anos, no Seminário Menor da Arquidiocese de Florianópolis, os últimos 40 anos no Instituto Teológico, agora Faculdade Católica de Santa Catarina, também em Florianópolis. Entre esses dois períodos, tive um ano de formação em música, nos Estados Unidos (1962-63), e três anos e meio para o mestrado em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico em Roma (1970-73).

 

IHU On-Line - Como se deu seu trabalho junto às prisões e instituições penais em SC? Nesse sentido, como avalia a atuação da Igreja junto às prisões nos dias de hoje?

Ney Brasil Pereira - Comecei meu trabalho no complexo penal de Florianópolis em 1974, na linha de assistência religiosa semanal em quatro setores, na época: a Penitenciária, o Presídio Masculino (não havia mulheres presas), o Hospital de Custódia, chamado então Manicômio Judiciário, a Colônia Penal agrícola. Acompanhava-me uma Irmã da Divina Providência, muito dedicada, Irmã Maria Uliano. Participei logo de encontros da Pastoral “Penal” do Rio de Janeiro, com Pe. Bruno Trombetta. Pouco a pouco, surgiram encontros nacionais e a criação da Pastoral Carcerária, na década de 80. Em Florianópolis começou a formar-se uma equipe de leigos/as comigo. A Campanha da Fraternidade de 1997 foi um marco decisivo, que deu visibilidade à Pastoral. Começaram os encontros arquidiocesanos (este ano, o 23º), também os encontros regionais (este ano, será o 22º), a maioria dos quais com a minha coordenação. A atuação da Igreja nas prisões, aqui em SC, tem sido modesta, mas está crescendo. Este ano publiquei a 3ª edição de pequena apostila que redigi em 1999. A coordenação estadual, este ano, passou para um ex-aluno meu, Pe. Almir Ramos, de Lages.

 

IHU On-Line – Sobre sua formação em música, quais as composições que mais despertam seu interesse, e por quais razões?

Ney Brasil Pereira - Minha formação musical foi a seminarística, num tempo em que o Seminário Menor cultivava a música coral e instrumental. Tendo aprendido a tocar harmônio, na época, fui o organista do Seminário Menor e, depois, do Maior, gostando muito do canto gregoriano e do canto coral. Cedo comecei a compor e a fazer arranjos corais. 

Em 1962-63, através de uma Bolsa do governo americano, matriculei-me na Faculdade de música da Universidade Duquesne, em Pittsburgh, nos Estados Unidos, onde fiz todos os cursos possíveis de graduação e pós-graduação em dois semestres, aprendizado que muito me ajudou para o trabalho sucessivo aqui no Brasil, quando de repente os músicos foram chamados a compor para a nova liturgia em vernáculo. A partir de 1965, participei dos cursos anuais de canto pastoral no Rio e em São Paulo, como compositor convidado. Atualmente sou membro do grupo de reflexão de Música Litúrgica da CNBB. 

Quanto às composições que mais despertam meu interesse, são, naturalmente, as composições corais e, também, as do canto litúrgico da assembleia. Tive a alegria de ter 15 composições minhas gravadas num excelente CD das Paulinas, “Com Maria, Mãe de Jesus” e mais um outro, a ser lançado ainda este ano pela Paulus, além de composições avulsas.

 

IHU On-Line - Que relações percebe entre religião e música? Quais as músicas sacras mais relevantes e quais conseguem expressar e captar melhor o sentido do cristianismo?

Ney Brasil Pereira - “Tudo a ver”, entre religião e música, desde as culturas primitivas. Como a poesia, o canto enriquece a expressão da palavra. Certamente um dos pontos mais desafiadores da reforma litúrgica está na música: que tipo de música, para esta ou aquela assembleia... Há muito esforço, mas, às vezes, deficiente formação musical e litúrgica. Quanto às “músicas sacras mais relevantes” é uma pergunta muito abrangente. Para mim, as três grandes missas e o Te Deum de Bruckner , o “Messias” de Händel , a “Criação” de Haydn , a IX Sinfonia de Beethoven , o Réquiem de Lloyd Weber ... A lista não tem fim! Das minhas composições, o gregorianizante Onde o amor e a caridade, o jubiloso O Senhor ressurgiu, e um “Santo” em mi, que me parece transmitir à assembleia a experiência da santidade divina, segundo a visão de Isaías, 6...

 

IHU On-Line - A Sacrosanctum Concilium, documento do Vaticano II para a liturgia, afirma que a música ordinária da celebração litúrgica é o canto sustentado por órgão (de tubos). No entanto, o Concílio é invocado para justificar inovações nesse campo da Igreja. O que dizer do uso de bandas nas igrejas, a atuação dos carismáticos durante a liturgia e, em contrapartida, o esquecimento dos corais e organistas?

Ney Brasil Pereira - A Sacrosanctum fala também que o canto oficial da liturgia romana é o gregoriano, que é um canto em latim... Os Padres Conciliares não podiam imaginar os efeitos, espontâneos, da “abertura” para o vernáculo. Essa “abertura” tornou-se norma. Foi como um dique há muito tempo represado, quatro séculos depois que Lutero já o havia aberto para os  seguidores da Reforma. A admissão do violão, da guitarra, foi logo dispensando o órgão de tubos, instrumento nobre, mas caro, e algumas bandas foram incorporando a bateria... É uma evolução, um desenvolvimento que ninguém pôde nem pode impedir, embora se deva, sim, nortear. É o que falei acima da necessária formação, tanto musical quanto litúrgica, para que essa “nova música” seja digna de tão rica tradição. 

Quanto ao esquecimento dos corais e organistas, é uma perda a lamentar, embora os próprios corais, nas igrejas, tenham de adaptar-se à sua função ministerial. Não são, não devem ser, corais de concerto. A propósito, costumo fazer a distinção entre música “sacra” e música “litúrgica”: esta, a música/canto litúrgicos, adaptando-se ao tempo, momento, texto litúrgico, assembleia celebrante; aquela, a “sacra”, muitas vezes não mais “litúrgica”, pelo fato de não permitir a participação da assembleia, embora integrando a riquíssima tradição musical em latim, que abrange o gregoriano, a “ars nova”, a polifonia, o barroco, o romantismo, a música moderna... Pessoalmente, há 40 anos rejo o Coral da Catedral de Florianópolis, sempre acompanhado do nosso órgão de tubos, animando uma das missas de domingo, cada semana, exceto no período das férias de verão: o Coral canta com o povo o canto de entrada, o refrão do salmo responsorial, e o canto da comunhão, encarregando-se das outras partes cantadas.

 

IHU On-Line - Que apontamentos faz sobre o movimento e o estudo bíblico no Brasil e o conhecimento bíblico entre os católicos brasileiros?

Ney Brasil Pereira - O “movimento bíblico” é de antes do Concílio, aliás, um dos fatores que tornaram possível o Concílio. Data importantíssima é o ano de 1943, ano da publicação de encíclica Divino Afflante de Pio XII , que libertou a exegese católica admitindo, no texto bíblico, o reconhecimento dos gêneros literários e levando à frente o caminho iniciado pela Providentíssimus de Leão XIII , de 1893. De importância decisiva foi a criação do Pontifício Instituto Bíblico por Pio X  em Roma, em 1909, formando inúmeros exegetas católicos. 

No Brasil, a Liga de Estudos Bíblicos, criada em 1947, com as primeiras Semanas Bíblicas; o lançamento da Bíblia da Ave Maria, traduzindo em português a Bíblia de Maredsous, tradução francesa dos originais; os Salmos de Gelineau; os círculos bíblicos de Frei Carlos Mesters , o qual criou também o Centro de Estudos Bíblicos - CEBI, priorizando a leitura popular da Bíblia; o lançamento integral da Bíblia de Jerusalém em português, em 1981; a Bíblia Pastoral da Paulus, lançada em 1990 e, neste ano de 2014, refeita como a Nova Bíblia Pastoral, a Tradução Ecumênica da Bíblia, traduzida do francês pela Loyola em 1994; a Bíblia da CNBB em 2001, etc., é uma bela história que, naturalmente, deve continuar. 

O conhecimento bíblico entre os católicos brasileiros tem melhorado, mas deixa ainda muito a desejar. Não há outro meio de progredir senão pelo estudo, o estudo da Bíblia, inclusive incentivando os leigos a cursarem nossos Institutos e Faculdades de Teologia. Nesse campo, nossos irmãos evangélicos, em certos pontos, estão à nossa frente, inclusive com publicações preciosas em suas editoras.

 

IHU On-Line - Quais as suas lembranças sobre a atuação de Dom Joaquim Domingues de Oliveira? Quais suas principais atuações na Igreja de Santa Catarina?

Ney Brasil Pereira - Dom Joaquim foi o segundo Bispo de Florianópolis, tornada diocese em 1908. Ele iniciou seu ministério em 1914, quando a diocese abrangia todo o Estado. Ele tornou-se o primeiro Arcebispo em 1927, quando foram criadas as dioceses de Joinville e de Lages. No mesmo ano, auxiliado pelo Pe. Jaime Câmara (futuro Cardeal do Rio de Janeiro), Dom Joaquim fundou o Seminário Menor de Azambuja, em Brusque. Pessoalmente, devo a ele meus estudos de Teologia em Roma, de 1952 a 1956. Ele chegou a celebrar o Jubileu de Ouro de sua ordenação episcopal, em 1964, tendo podido participar da primeira sessão do Concílio Vaticano II em 1962. Formado em Direito Canônico, foi um Bispo do seu tempo, gozando de incontestável autoridade entre seu clero e respeitado pelas autoridades e pelo povo. Famoso pelas visitas pastorais feitas com zelo e pelos sermões na Catedral, preparados por escrito, deixou a seu sucessor a implementação das reformas do Concílio Vaticano II. 

 

IHU On-Line - E em relação à atuação de Dom Afonso Niehues à frente da Igreja de Florianópolis, quais as suas lembranças?

Ney Brasil Pereira - Dom Afonso foi ordenado Bispo em 1959, assumindo como Bispo-coadjutor de Lages até 1965, quando a Santa Sé o devolveu à sua diocese de origem, agora como Arcebispo-coadjutor “sede plena” e Arcebispo Metropolitano desde 1967, com o falecimento de Dom Joaquim. A atuação de Dom Afonso em Florianópolis, de 1965 até 1991, foi marcada pela implementação das reformas do Concílio Vaticano II, de cujas quatro sessões ele participou ativamente. Foi também um dos delegados da CNBB para a III Conferência Geral do episcopado latino-americano em Puebla, em 1979. A obra talvez mais importante do seu episcopado, pelo menos em termos institucionais, foi, junto com os outros bispos de Santa Catarina, a criação do ITESC, Instituto Teológico de Santa Catarina, no qual já se formaram mais de 500 presbíteros de todas as dioceses do Estado e também de algumas do Paraná. Fiel aos sinais dos tempos, Dom Afonso exerceu a autoridade com diálogo, sem perder a firmeza. Percorreu a arquidiocese várias vezes em visitas pastorais e incentivou a Pastoral de Conjunto. Tornando-se emérito em 1991, aos 77 anos de idade, retirou-se discretamente para o Seminário Menor de Azambuja, do qual fora um dos primeiros alunos em 1927, e ao qual retornara como professor em 1940, tornando-se reitor em 1947, até sua eleição para o episcopado no início de 1959. Faleceu no meio dos seus padres durante um retiro do Clero, do qual estava participando, em setembro de 1993. Como Dom Joaquim, está sepultado na Catedral de Florianópolis.

 

IHU On-Line - Que mudanças destaca na Igreja, no Brasil e no exterior, após o Vaticano II? Quais os avanços e retrocessos, 50 anos depois?

Ney Brasil Pereira - Mudança mais visível, a da Liturgia, evidentemente. O abandono do latim, na liturgia e na formação do clero, trouxe como consequência uma liturgia mais espontânea e menos rubricista, e uma teologia também mais espontânea, pensada e ensinada em vernáculo, mais bíblica e indutiva, dando possibilidade à criação e desenvolvimento da teologia da libertação, uma das grandes marcas do Espírito em nosso tempo. Quanto aos inegáveis “avanços”, nos primeiros 20 anos após o Concílio, muitos a meu ver não souberam pôr em prática a sábia advertência da 2ª carta de João, v. 9: “Todo aquele que avança, e não permanece na doutrina do Cristo, não tem a Deus”, isto é, avançaram demais. Explico-me:  é bom “avançar”, inclusive obedecendo ao Espírito que nos conduz “à plenitude da Verdade” (Jo 16,13), mas sem deixar de “permanecer”, esse verbo tão querido do Discípulo Amado. Eu tive a graça de viver tranquilamente essa passagem, por ter sido formado de modo relativamente rígido, antes do Concílio, e tendo vivido meus primeiros oito anos de padre ainda celebrando de costas, em latim, e usando sempre a batina, etc. Mas tive a graça, também, de iniciar meus estudos bíblicos, em Roma, cinco anos depois do encerramento do Concílio, com professores do porte de Alonso-Schökel , Ignace De La Potterie , Vogt, Zerwick, Vanhoye , Martini . 

Quanto aos “avanços” na formação do clero, senti-os exagerados, causando enormes preocupações aos bispos e formadores, naqueles anos em que tudo tinha que ser discutido e aprovado, “de baixo” para cima, o que senti especialmente nos primeiros tempos do ITESC, de cuja história faço parte desde seus inícios em 1973. Pouco a pouco, as coisas foram-se estabilizando, a partir de João Paulo II  e da promulgação do novo Código de Direito Canônico em 1983 e, mais ainda, com a publicação do Catecismo da Igreja Católica em 1992.  Senti, na “Dominus Jesus”, do ano 2000, um estreitamento da visão ecumênica e do diálogo inter-religioso do Vaticano II na “Nostra Aetate”. Com Bento XVI  vi um retrocesso na readmissão do Missal e do rito de São Pio V, e não entendi, em tão grande teólogo, o gosto pelos paramentos antigos e a insistência na comunhão na boca, embora apreciasse as suas belas homilias e a sabedoria de suas entrevistas.

Padre Ney Brasil Certamente, a Igreja está atenta. Só que essa realidade é tão dinâmica, que é difícil acompanhá-la e, mais uma vez, “avançar, sim, mas permanecendo...” (cf 2Jo 9). Os desafios são sobre-humanos: só mesmo com a graça de Deus e a docilidade aos apelos do Espírito e aos sinais dos tempos. É um milagre que haja ainda jovens dispostos ao ministério presbiteral celibatário nestes tempos de família em crise, de casais com um ou dois filhos, neste ambiente permissivo que transpira sexo, nesta sociedade consumista, etc. Não há dúvida de que o celibato é um grande valor, um tesouro da Igreja, um notável testemunho, mas deveria, penso que quanto antes, ser opcional. E a Igreja deveria ordenar os “viri probati”, assim como restaurou o diaconato permanente: em nossa arquidiocese, os diáconos permanentes, casados, são mais numerosos que os presbíteros celibatários, e não há dificuldade nenhuma de convivência mútua e de aceitação por parte do povo de Deus. A própria formação no Seminário Teológico, quem sabe não precisaria ser, nos quatro anos, em forma de internato, mas deveria possibilitar o trabalho e o sustento pessoal como o fazem os outros jovens. Isto, sem prejuízo de uma formação espiritual aprimorada.

 

IHU On-Line - Como avalia o pontificado do Papa Francisco? Quais as questões mais urgentes a serem tratadas por ele?

Ney Brasil Pereira - A eleição de Francisco foi a grande surpresa de Deus à sua Igreja em março de 2013, graças à inesperada, mas humilde e sábia renúncia do Papa Bento XVI, em 28-02. Concordo plenamente com o que a maioria da opinião pública, na Igreja e no mundo, anda dizendo a respeito dele. Tive a oportunidade de passar uma semana convivendo com ele na Casa de Santa Marta, em abril do mesmo ano, quando lá me hospedei com os outros membros da Pontifícia Comissão Bíblica: presença muito simples, despretensiosa, no mesmo refeitório, mesmos corredores. Na breve troca de palavras, após a audiência oficial que nos concedeu, o seu pedido, que ele constantemente repete: “Reze por mim!”.

Evidentemente, ele não é um super-homem, e tem e terá as suas limitações. Mas a Evangelii Gaudium, como programa do pontificado, é extraordinária. Seu senso de humanidade, por exemplo, para com os presos, me toca muito. Seu método de trabalho colegiado, sua troca do Palácio Apostólico (!) pela Casa Santa Marta, sua insistência na misericórdia de Deus e na misericórdia da Igreja e na preocupação com os pobres e com a paz... Quanto às “questões mais urgentes”, creio que elas estão aflorando por si, e ele demonstra estar atento a elas.

 

IHU On-Line - Como vê a questão da ordenação de mulheres, agora vindo à tona com a decisão da Igreja da Inglaterra em admiti-las até ao episcopado? Essa questão tem relevância?

Ney Brasil Pereira - Sem dúvida alguma tem relevância, após um século de movimento irreversível de ascensão da mulher a todos os postos na sociedade. É um inequívoco sinal dos tempos. E a Igreja, feita de homens e de mulheres, não pode continuar a ser dirigida só por homens. Sinto algo estranho no fato de, numa liturgia solene, numa catedral, a abside ser ocupada só por homens... É claro que, além do peso da tradição, temos o argumento bíblico de que Jesus escolheu só homens como seus 12 apóstolos. Mas temos também a novidade bíblica enunciada por Paulo de que, “doravante, não há mais homem nem mulher (literalmente, nem macho nem fêmea), mas todos sois um só no Cristo Jesus” (Gl 3,28). Penso que a Igreja da Inglaterra deu um passo corajoso e, acredito, absolutamente não leviano. As razões expressas pelo Arcebispo de Canterbury  são de fato ponderáveis. Esse gesto atrapalhará a caminhada ecumênica? Havendo humildade e amor mútuo, não atrapalhará.

 

IHU On-Line - Quais os grandes desafios da Igreja hoje?

Ney Brasil Pereira - O primeiro, fundamental, é o de a Igreja (e nela me incluo) dar efetivamente atenção ao que o profeta Oseias 6,6 diz quanto àquilo que Deus quer de nós: “É a misericórdia que eu quero, e não o sacrifício ritual (literalmente, “animais degolados”); o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos (literalmente, “animais queimados”)”. Em seu confronto com os representantes da religião no seu tempo, Jesus cita essa passagem por duas vezes. É porque, desde sempre, ao longo de toda a história humana, as religiões têm valorizado mais o rito, o dogma, do que a ética. Ora, se o rito é de certo modo necessário para a expressão comunitária da fé, ele é secundário em relação à ética.

E nós continuamos a celebrar belas liturgias — e elas são necessárias, sem dúvida — e não enxergamos os pobres! No Brasil, somos um país nominalmente cristão, de batizados, católicos ou evangélicos, e convivemos com a injustiça, a corrupção, o consumismo, a violência... Não é esse o maior desafio da Igreja, das Igrejas?

Infalibilidade da Igreja

Outro grande desafio da Igreja católica é o repensamento da Infalibilidade. É um dogma do Concílio Vaticano I, o da infalibilidade papal, como é dogma também a inerrância bíblica, portanto, a infalibilidade bíblica, “naquilo que Deus quis que fosse escrito em vista de nossa salvação” (Dei Verbum, n. 11). Falei em “repensamento”, “reconceituação”, na linha do que João XXIII apontou como um dos objetivos do Vaticano II: reformular em linguagem nova as verdades antigas da fé. O dogma da Infalibilidade foi definido num contexto de luta da Igreja do século XIX contra o racionalismo. Mas quantas posições da Igreja no próprio Syllabus de Pio IX estão hoje superadas! Quem não reconhece que, se Deus é infalível, o nosso falar sobre Deus não pode ser infalível, pois então não seria humano! Ora, a linguagem humana, exatamente por ser humana, é falível, perfectível e, por isso, também, mutável. Por que não assumir um outro adjetivo, como o sugeriu Hans Küng  em 1968 ou 69: “indefectível”? A Igreja, mesmo falível, por ser humana, é, porém, por dom divino, indefectível, como o prometeu o Senhor Jesus em Mt 16,18 (“não prevalecerão”) e em Mt 28,20 (“Eu estou convosco...”). “Indefectível”, por graça de Deus, mas não “infalível”, pois é humana.

Ainda outro desafio, na linha do precedente, é o do “alargamento” do conceito da Inspiração bíblica. Toquei no assunto num artigo sobre “a palavra de Deus no Vaticano II” . Penso que, apesar da posição contrária expressa na “Dominus Jesus”, não podemos deixar de reconhecer a ação do Espírito — a Inspiração! — também nos livros sagrados de outras religiões e culturas, mesmo em tudo o que o espírito humano, claro que por dom de Deus, escreveu de bom. Inclusive por autores até agnósticos ou mesmo ateus. Pois “todo dom precioso e toda dádiva perfeita — onde quer que se encontrem — vêm do alto, descendo do Pai das luzes” (Tg 1,17). Isso nada tira da Inspiração por excelência, reconhecida nos livros canônicos. Mesmo esta, porém, humildemente sujeita às limitações da escrita humana.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição