Edição 447 | 30 Junho 2014

Jornalismo, pós-jornalismo e protojornalismo. Uma imprensa de múltiplas camadas

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Andriolli Costa

Luiz Martins da Silva faz a distinção entre categorias teóricas de compreensão do jornalismo que coexistem, por vezes, até na mesma página

A história da imprensa mostra que o jornalismo, tal qual o conhecemos hoje, não foi sempre assim. Formatos que hoje facilmente seriam atribuídos à imprensa, como a entrevista ou a manchete de primeira página, instituíram-se principalmente a partir do século XIX. O mesmo se pode dizer sobre características como objetividade, factualidade ou isenção. Até meados de 1800, a imprensa nos Estados Unidos era fundamentalmente partidária e parcial. Mais tarde, na chamada penny press, apelava a boatos e ao sensacionalismo para chamar a atenção do público. É notória, por exemplo, a cobertura feita pelo The Sun em 1835 sobre a descoberta de homens-morcego vivendo na lua — além de toda uma vasta fauna digna de clássicos da ficção científica.

Este jornalismo sensacionalista, no entanto, não deixou de existir com a emergência de novos formatos e valores para o fazer jornalístico. Em verdade, ainda hoje encontra espaço no ecossistema midiático, coexistindo com um jornalismo objetivo e factual, ou com aquele que busca o serviço e a contextualização. Por vezes no mesmo jornal, ou mesmo em uma única página. Com isso em vista, o professor e pesquisador Luiz Martins da Silva fundamenta a divisão em três categorias teóricas de compreensão de orientações enunciativas: protojornalismo, jornalismo e pós-jornalismo.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele esclarece que, atualmente, em um universo de informações disponíveis na rede, não basta mais oferecer ao público o factual. “É preciso agregar serviço, utilidade, interpretação, análise, dicas, contatos, seção de ‘para saber mais’, infografias”, entre outros. Para ele, os jornalistas alinhados ao pós-jornalismo arvoram-se “à condição e ao dever de missionário”, fornecendo o contexto necessário para que o cidadão use as informações disponibilizadas como produto básico para gerir o cotidiano. Mas complementa: “na nossa análise, o que mais marca o pós-jornalismo é uma nova forma de engajamento. Se nos primórdios da imprensa havia um engajamento político-partidário, hoje esse engajamento está mais para temas novos e legitimadores, como cidadania, ecologia, sustentabilidade, etc.”.

Luiz Martins da Silva é graduado em Jornalismo pela Universidade de Brasília - UnB, com mestrado em Comunicação e doutorado em Sociologia pela mesma universidade. Desde 1988 é professor da UnB, onde coordena atualmente o Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Silva coordena, ainda, o Grupo de Pesquisa Jornalismo e Sociedade e desenvolveu uma série de projetos de pesquisa com apoio do CNPq, entre eles A ideia do pós-jornalismo (2010-2013). É autor, entre outros livros, de Teorias da Comunicação no século XX (Brasília: Casa das Musas, 2009) e Ética na Comunicação (Brasília: Casa das Musas, 2008).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Você faz uma distinção entre protojornalismo, jornalismo e pós-jornalismo, que conviveriam no mesmo ecossistema midiático. Como você as compreende e como elas se apresentam na imprensa?
Luiz Martins da Silva –
São mais categorias teóricas de compreensão de orientações enunciativas do que propriamente estruturas puras e estanques. Podemos, no entanto, identificá-las por meio de três formas de enunciação: sensação, informação e comunicação. A presença do sensacionalismo no jornalismo marcou toda uma etapa, digamos, de uma fase primitiva do jornalismo, em que a informação era muito mesclada à sensação, a um formato, digamos, de “encantamento” do mundo no que ele tem de mágico, mítico e até de bizarro. A segunda fase corresponde a um momento em que o jornalismo quer se diferenciar desse seu lado próximo ao fantástico (leia-se “conto maravilhoso” ). Trata-se do advento de uma ideologia jornalística, aquela segundo a qual o jornalismo trabalha com fatos e não com ficção ou opinião.

IHU On-Line – Você descreve o pós-jornalismo  como aquele que supera a função informativa para envolver também os contextos e serviços. Neste modelo, os jornalistas “arvoram-se à condição e ao dever de missionário”. Tendo em vista que a imagem do jornalista como watchdog da sociedade e do jornalismo como um quarto poder, que equilibra os demais, se manifesta desde o início do século XX, até que ponto esta proposta ainda não pertence ao modelo tradicional de jornalismo?
Luiz Martins da Silva –
A partir do momento em que o jornalismo procura ultrapassar o fato enquanto valor-notícia e procura se diferenciar em termos de fornecimento de um produto, produto esse que passa a contar com um valor-agregado. Não basta mais oferecer ao público a informação factual. É preciso agregar serviço, utilidade, interpretação, análise, dicas, contatos, seção de “para saber mais”, infografias, contexto e, por vezes, toda uma “tradução” do acontecimento, às vezes meramente geográfica [o típico quadradinho no mapa mundi]. Mas, na nossa análise, o que mais marca o pós-jornalismo é uma nova forma de engajamento. Se nos primórdios da imprensa havia um engajamento político-partidário, hoje esse engajamento está mais para temas novos e legitimadores, como cidadania, ecologia, sustentabilidade, etc.

IHU On-Line – Se o jornalismo é fruto da modernidade nos séculos XVII–XVIII, de que maneira o pós-jornalismo dialoga com a pós-modernidade?
Luiz Martins da Silva –
No sentido da hibridização de gêneros — profissionais e redacionais — e no sentido da própria embalagem do produto jornalístico: mix de linguagens e de suportes, hipermidiáticos, hipertextuais, etc. E também uma hibridização entre informação, educação e diversão. O radiojornalismo, por exemplo, mescla-se, hoje, com outros suportes e linguagens. A TV, por sua vez, espera que o telespectador interaja, que obtenha mais detalhes no site da emissora e até vote em favor de algum tipo de preferência.

IHU On-Line - Dentro desta lógica (do pós), para que serve e a quem serve o jornalismo?
Luiz Martins da Silva –
Para que a informação seja o produto básico a partir do qual o consumidor e o cidadão poderá mais facilmente gerir o seu cotidiano: clima, impostos, trânsito, finanças, concursos públicos e todo um tipo de assessoramento, por exemplo, de saúde. Há, hoje, um fenômeno que já foi denominado de mídia consultório. A informação factual, sozinha, ficou ainda mais descartável. A parte de serviço serve mais à gestão do cotidiano (conscientização em torno de participação, direitos e deveres). A segmentação dos temas funciona também como um cardápio: da política aos esportes, passando por ciência, tecnologia e, claro, toda a herança antiga que ainda sobrevive (crimes, sexo, fofocas, etc.).

IHU On-Line – Como você percebe a influência das novas mídias, tecnologias e redes sociais no modo de fazer jornalismo?
Luiz Martins da Silva –
O jornalismo, enquanto profissão, prossegue sendo uma atividade própria e apropriada, com relação aos jornalistas. Lidar com a informação e com a circulação da informação, local, nacional e globalmente, há muito deixou de ser um monopólio dos jornalistas e dos aparatos jornalísticos. O jornalista não é mais o senhor e o principal protagonista dos cenários midiáticos. Em algumas circunstâncias, diria, os indivíduos e os coletivos até são mais profícuos em termos de criação e difusão de acontecimentos midiáticos e de fatos (impregnados de valor-notícia).

IHU On-Line – Qual o papel a ser assumido pelo jornalista, que deixa de ser o gatekeeper  em um contexto de ranço contra as grandes organizações midiáticas, do surgimento de iniciativas de mídia independente e da proliferação de múltiplas vozes pela internet? 
Luiz Martins da Silva –
Eu diria que o papel de gatekeeper até ficou mais fortalecido, pois os editores continuam como peritos institucionais na seleção e na hierarquização dos acontecimentos midiáticos e dos fatos jornalísticos. A comunicação à base do few to many já não é predominante, mas a comunicação à base do many to many ainda é muito caótica. Os jornalistas ainda mantêm muito da sua competência, enquanto experts, não só temáticos, mas na embalagem da informação jornalística. O seu lastro institucional, do passado e do presente, contribui, é claro, com maior credibilidade, quando a narrativa é procedente de uma fonte jornalística profissional e empresarial, embora se saiba de grandes barrigas desse jornalismo juramentado e de megatendências políticas, nacionais e internacionais.

IHU On-Line – No contexto das redes, onde as fronteiras entre emissor e receptor são borradas, a notícia escapa aos meios jornalísticos? Ou para ser notícia é preciso que o fato seja interpretado por um profissional de imprensa?
Luiz Martins da Silva –
Há toda uma apropriação mútua, mas eu diria que a maior apropriação ainda se dá dos fatos a partir, digamos, da chamada “grande imprensa”. Os fatos originalmente carimbados como “jornalísticos” passam por todo um reaproveitamento por parte das redes sociais. A própria mídia não vive, hoje, sem essa sua extensão, que são as redes sociais. Ultimamente, no entanto, há toda uma guerra de tendências de opinião e militância nas redes sociais. Sabe-se que em Brasília, por exemplo, há equipe de “profissionais” de comunicação trabalhando a serviço de candidatos, cuja tarefa básica consiste em fazer “bombar” o que há de positivo em torno de um candidato e “queimar” o filme do concorrente.

IHU On-Line – Em 1690, Tobias Peucer  escreve Os Relatos Jornalísticos, texto considerado seminal para a Teoria do Jornalismo. Nele, aponta ainda no surgimento da imprensa características presentes como: atualidade, novidade, utilidade, as pressões econômicas do negócio e a necessidade de satisfazer a curiosidade humana. É possível compreender as mudanças estruturais no jornalismo mais como atualizações do que como novidades? 
Luiz Martins da Silva –
Tobias Peucer continua atual e necessário, pois falar de jornalismo e de produtos jornalísticos é, ao mesmo tempo, discorrer ainda sobre categorias de informação: desde as últimas novidades até as novidades últimas (o necrológio ). Desde as informações descartáveis ou imediatamente perecíveis até o colunismo que se esmera em ser o oráculo de Delfos. Há, portanto, o jornalismo que se ocupa do que já foi noticiado. Coisas do tipo: “às dez horas da noite você já está informado, mas precisa saber mais”. Há de se perguntar sobre que tipo de iluminismo faz com que os jornalistas sejam capazes de dar explicações adicionais sobre a ‘realidade dos fatos’. É uma espécie de metajornalismo, jornalismo sobre jornalismo, metalinguagem jornalística.

IHU On-Line – Deseja acrescentar mais alguma coisa?
Luiz Martins da Silva –
O jornalismo, os jornalistas e o negócio jornalístico nunca passaram por mudanças estruturais tão radicais, tão próximas e tão impactantes. O jornalismo, no entanto, é uma categoria social, tanto quanto a arte, a literatura, o folclore. E é por isso que ele sobrevive e sobreviverá. O cotidiano precisa de uma representação de si próprio, ainda que na aldeia todos já saibam o que aconteceu. A representação midiática é tão importante para a compreensão da realidade quanto a própria.

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