Edição 447 | 30 Junho 2014

Midiático por natureza - A construção do ciberacontecimento

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Andriolli Costa

Ronaldo Henn aborda os acontecimentos no âmbito digital que, ao serem articulados em redes públicas, carregam a potencialidade do compartilhamento sem a necessidade de uma mediação a priori do jornalismo

Em jornalismo, a noção de notícia é frequentemente vinculada com a de fato, de acontecimento. Um eixo no qual o repórter se baseia para a construção noticiosa. Especialmente no modelo ocidental de jornalismo, que possui grande influência de paradigmas norte-americanos de objetividade e factualidade, a relação do acontecimento com o “Real” — no sentido de concreto e palpável — é ainda mais forte. No entanto, como compreender a lógica de acontecimentos organizados, articulados e executados em âmbito digital? Ainda existe razão, afinal, para pensar uma dicotomia entre real e virtual?

Para responder a estas inquietações, o professor e pesquisador Ronaldo Henn propõe o conceito de ciberacontecimento. Salienta, no entanto, que este não se diferencia do acontecimento tradicional apenas pelo ambiente em que se desenrola, mas nas lógicas constitutivas: “são acontecimentos que, por se articularem em redes, que são públicas, já são potencialmente compartilhados publicamente, sem uma necessária mediação, a priori, do jornalismo”. São, desta forma, midiáticos por natureza.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-line, Henn esclarece sua visão sobre ciberacontecimento, discute a emergência cada vez maior de uma crise sistêmica no jornalismo e reflete sobre o papel da imprensa na contemporaneidade. Diante de um universo ruidoso de intensas informações, o pesquisado acredita que “o jornalismo ainda teria o que ofertar como instituição que age na produção de sentidos, mas já trazendo dentro de si os tensionamentos e disputas, ampliando as possibilidades desses sentidos”.

Ronaldo Henn é graduado em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo pela Unisinos, com mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unisinos, coordena o projeto de pesquisa A produção do acontecimento nas redes sociais: a emergência do ciberacontecimento. Henn é autor de Os fluxos da notícia (São Leopoldo: Unisinos, 2002) e Pauta e notícia, uma abordagem semiótica (Canoas: Ulbra, 1996).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que consiste um ciberacontecimento? É apenas no ambiente no qual se desenrola que está sua diferença do acontecimento tradicional?
Ronaldo Henn –
O ciberacontecimento é um conceito que estamos propondo a partir de pesquisa que investiga a produção de acontecimentos jornalísticos nas redes sociais digitais . Desde 2009, com a eclosão de um protesto no Irã, fruto de uma provável fraude na eleição daquele país — todo ele tramado e difundido através de apropriações dos dispositivos móveis e dos sites de redes sociais na internet — e com uma série de pautas que começaram a ocupar os portais de notícia, também na área do entretenimento, comecei a compreender que já havia um modo constitutivo de acontecimentos jornalísticos que trazem fortes marcas da cultura digital em construção no mundo contemporâneo. A diferença não está apenas no ambiente, mas nas lógicas constitutivas: são acontecimentos que, por se articularem em redes, que são públicas, já são potencialmente compartilhados publicamente, sem uma necessária mediação, a priori, do jornalismo. São midiáticos, por natureza, e produzem narrativas específicas que, dependendo do grau de conectividade e compartilhamento que geram, transformam-se em pautas para o jornalismo.

IHU On-Line - A construção da notícia a partir de um ciberacontecimento ocorre da mesma forma que aquela a partir de um acontecimento tradicional? Ou os processos (apuração, checagem, etc.) são menos rígidos?
Ronaldo Henn –
Essa é uma questão bem importante para aquilo que o jornalismo ainda tem a oferecer como legado de uma instituição que se coloca na condição de um mediador social fundamental no processo de construção de uma realidade pública: a credibilidade fundada num esforço de apuração e precisão. A eclosão de acontecimentos que fogem de uma lógica até então conhecida e razoavelmente dominada traz uma série de dificuldades exatamente no quesito da confiabilidade. Por conta disso, uma série de supostos acontecimentos que se proliferam pelas redes digitais são narrados sem a necessária apuração, gerando o que chamamos, no jargão jornalístico, de barrigas, ou seja, notícias falsas, fruto, muitas vezes, de trollagem . A diferença é que, quando isso acontece, rapidamente o erro é apontado, porque a repercussão é instantânea: o ciberacontecimento está dentro dessa nova lógica. Nesse sentido, há algo nele de autocorretivo, por conta da participação mais ativa dos públicos.

IHU On-Line – Os movimentos de junho passado surpreenderam por terem deixado a alçada do virtual para “ir pra rua”. Antes deles, mobilizações exclusivamente virtuais, como a campanha “Guarani-Kaiowa” no Facebook, eram bastante desdenhadas pela falta desta materialidade das ações. Faz sentido pensar ainda na distinção entre “real” e “virtual”? Ações de natureza simbólica também não teriam efeito de concreto?
Ronaldo Henn –
Penso que hoje não faz mais muito sentido pensar o real e o virtual como coisas que se opõem, ou o virtual como algo falso, fantasioso. Do ponto de vista semiótico, então, essa distinção é mais problemática na medida em que as linguagens, nas suas diversas configurações, estão entranhadas desde sempre nas nossas vidas e constituem uma dimensão significativa daquilo que entendemos como realidade.

No que diz respeito especificamente à cultura digital, as coisas que acontecem em rede hoje são de uma concretude incontestável e as mobilizações são prova contundente disso. O que as jornadas de junho reiteram no Brasil, na sequência de movimentos como o Occupy Wall Street , os Indignados  da Espanha, a Primavera Árabe  e outras mobilizações de textura global, é a integração do espaço público com as conexões online. Esses movimentos reafirmam a praça pública como espaço simbólico de ocupação de demandas e, consequentemente, de confrontos. Isso não quer dizer que as mobilizações que se dão exclusivamente pelas redes digitais não tenham potência para gerar transformações. O ambiente digital também é um espaço de apropriações e ocupações, basta ver as questões que são colocadas hoje, como o marco civil da internet (recentemente aprovado no Congresso e sancionado pela presidente da República), por sinal, uma vitória dos ciberativistas brasileiros atentos a esses problemas.

IHU On-Line - Existe uma crise do jornalismo ou uma crise do modelo de negócios do jornalismo?
Ronaldo Henn –
Defendo que existe uma crise nos fundamentos do jornalismo, como sistema semiótico de representação da realidade social, que está colada à crise como modelo de negócios. Acredito que os grandes conglomerados de mídia saberão encontrar encaminhamentos para que o jornalismo continue sendo um negócio viável, mesmo que muitos dos seus processos se transformem.

Quanto à crise sistêmica, da qual falo, ela não é necessariamente uma coisa ruim, muito pelo contrário. Ela permite que se aflorem questões fulcrais do jornalismo que não eram devidamente enfrentadas publicamente, como a autoridade e legitimidade do jornalista, os aspectos construcionistas que fazem parte da narrativa jornalística, a falta de visibilidade, silenciamentos ou visibilidades enviesadas que o jornalismo historicamente impôs a diversos segmentos segregados da sociedade. Enfim, há um conjunto de temas que vem à tona nesse ambiente crítico. E isso que estamos chamando de ciberacontecimento é um agente ativo desse processo na medida em que, potencialmente, sua inserção no sistema jornalístico aumenta a pluralidade de vozes e de visibilidades.

IHU On-Line – Qual o papel do jornalismo neste contexto pós-industrial?
Ronaldo Henn –
O jornalismo vai ter que incorporar nas suas dinâmicas essas transformações, não apenas como estratégia para dialogar com seus públicos ou fidelizá-los, mas de forma mais radical, assumindo suas precariedades e vulnerabilidades. Em contrapartida, penso que o jornalismo pode se fortalecer exatamente naquilo que é da sua natureza: a construção de narrativas fundadas na apuração, na checagem. Diante de um universo ruidoso de intensas informações, o jornalismo ainda teria o que ofertar como instituição que age na produção de sentidos, mas já trazendo dentro de si os tensionamentos e disputas, ampliando as possibilidades desses sentidos. Também é necessário um investimento acentuado em base de dados, tanto na perspectiva de geração de narrativas mais inventivas, efetivamente interativas, como no tratamento de informações armazenadas em diversas bases que podem se converter em notícias importantes.

IHU On-Line – Frente ao ambiente de crise, quais fatores colaboram para tensionar o próprio jornalismo aos seus limites?
Ronaldo Henn –
A grande questão hoje é que os limites do jornalismo ficaram, de forma muito interessante, bastante porosos. Tudo é muito instantaneamente e intensamente compartilhado: a narrativa do jornalismo expandiu-se, dentro de uma lógica próxima daquilo que Henry Jenkins , junto a outros autores, chama de Spreadable Media. Ou seja, existe hoje uma espécie de transnarrativa jornalística que escapa dos portais de notícias e é agregada pelos compartilhamentos e comentários nas redes sociais digitais que também se agregam ao que é construído nos portais. Estamos diante de uma “narratividade espraiada” corroborada com acontecimentos que já possuem natureza narrativa: entendo que esse seja o grande foco de tensão do jornalismo. Os movimentos de ocupação, como os protestos de junho, formam instâncias em que essas tensões ficam à flor da pele. Por isso os considero configurações importantes para o desenho dessa crise.

IHU On-Line – Deste tensionamento, como você vislumbra a emergência de um pós-jornalismo, que resulte de uma resolução destes tensionamentos (sendo o “pós” não necessariamente algo melhor)?
Ronaldo Henn –
Não sei se dá para falar de um pós-jornalismo. Já fui um entusiasta dessa designação, mas acho que passamos da fase “pós”: estamos em fase de construção de coisas novas no mundo, imbuídas de identidades próprias e não necessariamente coladas como refração ou desdobramentos de ruptura com modelos anteriores. E isso não quer dizer que esses modelos anteriores desconstruíram-se por completo. A concentração de riqueza, por exemplo, que é a marca do capitalismo desde sempre, continua firme e forte. Mas acredito que os ambientes culturais contemporâneos, fortemente conectados ou integrados à cultura digital, no qual o jornalismo se insere, são, em grande medida, inaugurais, não são mais pós. Mas, ao mesmo tempo, reiteram problemas atávicos da humanidade.

Outra questão:

Existe um nó de conexão emblemático nas formas de expressão em redes sociais digitais com as narrativas jornalísticas que está na fronteira entre o que é da ordem do radicalmente privado com o que é público. No livro que recentemente finalizei e que deverá sair ainda este ano (El ciberacontecimiento: producción y semiosis, Editora da UOC, Universidad Oberta da Catalunya), cheguei a seis categorias de ciberacontecimentos: mobilizações globais, protestos virtuais, exercícios de cidadania, afirmações culturais, entretenimentos e subjetividades. Desse conjunto de categorias, a que diz respeito às subjetividades é a que mais me intriga. Como no caso de Betty Simpson, uma senhora estadunidense de 80 anos que luta contra um câncer no pulmão. Seu neto decidiu registrar aqueles que podem ser os últimos dias da avó, postando fotos no Instagram. Ela aparece bem humorada nas imagens, fazendo caretas e sem sinais aparentes de sofrimento. A iniciativa transformou-se em hit na internet e a conta criada para Betty bombou. O apelo mimético das imagens esparramou-se por várias plataformas da rede, com direito a um vídeo no Youtube que, em uma semana, já batia na casa dos 25 mil acessos. A situação que o caso desenha é absolutamente do âmbito privado: uma família às voltas com a avó portadora de um câncer terminal. No momento em que esse périplo é compartilhado, o que é privado ganha dimensão pública, mas não só isso. Aquilo que é vivido no privado tem grande potencial de afetação: de fazer parte da experiência do outro. Os modos de subjetivação contemporâneos, tecidos na textura das redes digitais, são todos, potencialmente, acontecimentos públicos, e isso dinamiza a cultura, transformando-a: o jornalismo precisa dar conta disso, com narratividades que tocam delicadamente aquilo que eu entendo como campo do sensível. E saber narrar o outro, com toda a complexidade que isso comporta, é, para mim, um dos principais desafios do jornalismo, em qualquer modalidade.

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