Edição 203 | 06 Novembro 2006

Foucault e a questão da crítica em torno da biopolítica

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No artigo a seguir, o doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), Alexandre Filordi de Carvalho, afirma que “a arte de não ser governado é o ponto de ancoragem fundamental para uma crítica que, ao indagar pelos limites do direito de governar, no caso da biopolítica, de gerir a vida dos indivíduos na dimensão da população, não somente questiona a base da certitude da autoridade que governo, mas também, face às exigências do governo e da obediência, “se opõe aos direitos universais e irrevogáveis com o qual cada governo – não importando ser, não importando que ele tenha o papel de monarca, magistrado, educador ou pai de família – terá de submeter quem é governado”.

Essas idéias são originárias da comunicação que Filordi apresentou no XII Encontro Nacional de Filosofia da Anpof, em Salvador, em 26-10-2006, sob o título Michel Foucault e a questão da crítica. Graduado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano do Sul (SPS), em Campinas, e em Pedagogia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Filordi é especialista em Psicoterapia  Familiar e de Casal pelo Centro de Formação e Assistência à Saúde (CEFAS) e um dos integrantes do Grupo de Estudos Nietzsche (GEN), ligado ao Departamento de Filosofia da USP.

Em uma conferência realizada por Foucault em 1978, intitulada Qu’est-ce que la critique. Critique e Aufklärung, por sua vez, situada no eixo das pesquisas que privilegiaram, de um modo geral, os aspectos da população e governamentalidade, o filósofo argumenta que, desde os séculos XV e XVI, houve uma explosão da arte de governar o homem . Desde uma série de deslocamentos de fontes religiosas que impeliram os processos de laicização na direção da expansão da sociedade civil até a proliferação da arte de governar cuja culminação pode ser representada pela biopolítica. De fato, cumpre ver que desde então a questão fundamental em como governar perpassou pelo governo de “crianças, exércitos, pobres e mendigos, família, casa, diferentes grupos, cidades, estados” , enfim. Toda série possível atinente às artes de governar se multiplica capilarmente na história do Ocidente.

Sob este cenário, a crítica vai exercer, em primeiríssima mão, uma função interventora de limite diante dos excessos de governo e condução, que atingem amplas esferas da existência, da vida abstraída nos processos massificadores que passam a ser administrados no formato de população, que é a prospecção mais profunda do poder sujeitador. O que acontece toda vez que obedecemos? O que é ativado? O que está em jogo? Diante disso, a crítica, para Foucault, “é necessária, pois tem como papel definir as condições pelas quais o uso da razão é legítimo para determinar o que se pode conhecer, o que é preciso fazer, e o que é permitido esperar” ; mais ainda, é “um instrumento, um meio para um futuro ou uma verdade que ela não saberá e não será, ela é um olhar sobre um domínio no qual quer apresentar os limites, no qual ela não é capaz de se tornar a lei” . Parece-nos que o que está em jogo é a tentativa de se buscar transformar as relações possíveis que são estabelecidas numa perspectiva de poder, pois a crítica torna-se um meio para um futuro, ou seja, dirige-se a um vir-a-ser. Há nela um jogo de forças que pretende transgredir o presente, o tempo já estabelecido, pois se somos governados no presente, e não há como negá-lo, ainda não o somos na totalidade dos acontecimentos que ainda estão por vir, que estão em construção. Como não ser, então, governado em um futuro na mesma perspectiva do que somos neste presente? A indagação, segundo Foucault, é característica própria da força crítica, o que significa dilatar uma espécie de contraforça de ação restritiva: “como não ser governado como isto, por isto, em nome destes princípios, na perspectiva de tais objetivos e por meio de tais métodos, não como isto, não por isto, não por eles” .

É evidente, contudo, que a crítica não visa a uma oposição total e generalizada, um tipo de revolta abstrata contra toda forma de governamentalização, que consiste no efeito da multiplicidade das artes de governar; mesmo porque Michel Foucault se distancia de toda tentativa de universalização de um processo de consciência política. É mais na direção de uma oposição contrapontual, marcada pela força microparticular do indivíduo que se esforça para se despregar da abstração populacional, cada um à sua maneira de mudar, já que nada é mais arrogante do que querer fazer a lei para os outros , que a questão se coloca na dimensão da arte de não ser muito governado, de não querer isto. Atentemo-nos às palavras de Foucault: “contra isto, como contraponto, ou em vez de parceiro ou adversário das artes de governo, como modo de suspeitar delas, de mudá-las, limitá-las, de encontrar suas medidas certas, de transformá-las, de procurar escapar destas artes de governar ou, de qualquer modo, deslocá-las, com uma relutância essencial, mas também ao modo de uma linha de desenvolvimento das artes de governar [...] que eu simplesmente chamaria de a arte de não ser governado, ou a arte de não ser governado como isto, a este preço” .

A arte de não ser governado é o ponto de ancoragem fundamental para uma crítica que, ao indagar pelos limites do direito de governar, no caso da biopolítica, de gerir a vida dos indivíduos na dimensão da população, não somente questiona a base da certitude da autoridade que governa, mas também, face às exigências do governo e da obediência, “se opõe aos direitos universais e irrevogáveis com o qual cada governo – não importando ser, não importando que ele tenha o papel de monarca, magistrado, educador ou pai de família – terá de submeter”  quem é governado.

Posto isso, não é difícil de entendermos que a crítica deverá se desdobrar numa ação afirmativa, ou positiva, que fará circular nos espaços produzidos pelas estratégias de não querer ser governado em momentos de modificação móveis, inaugurando uma nova experiência com a governamentalização. Trata-se, nesta dimensão, não de um engajamento, mas de um campo de experiência que Foucault nomeia de insubmissão voluntária. Somos quase incitados a vermos uma representação de força que, respeitadas as margens históricas e contextuais dos eixos do poder político, pretende fazer emergir experiências contrárias a de uma servidão voluntária . Talvez esteja nisso a eficácia da biopolítica, ou seja, ao ativar inúmeras forças que contigenciam a vida dos indivíduos, acaba referenciando a norma como proximidade de comportamento e exemplo: distribui “os vivos em um domínio de valor e utilidade”, donde será necessário que as artes de governo se valham de um poder que, se tem por tarefa se encarregar da vida, “terá necessidade de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos” . Assim, as investiduras sobre o corpo, a saúde, as maneiras de se alimentar e de morar, as condições de vida, a sexualidade, enfim, uma série de espaços da existência têm de ser administrado como se aparentemente não o fosse de modo racionalizado, quer dizer, como se todo processo fizesse parte de uma verdade que simplesmente ativa um curso histórico natural.

Insubmissão voluntária e reflexão indócil

Mas se a crítica exerce uma insubmissão voluntária, todo ato e processo de governo, outrora visto como natural, fragmenta-se, pois não é justificado por nenhuma voluntariedade. Valendo-nos da argumentação de Michel Foucault: se a governamentalização é realmente o movimento relacionado à sujeição individual na realidade de uma prática social por mecanismos de poder que apelam para a verdade, eu direi que a crítica é o movimento para o qual o sujeito dá a si mesmo o direito de questionar a verdade concernente aos efeitos de poder e questionar o poder referente aos discursos de poder. Crítica será a arte da insubmissão voluntária, da reflexão indócil .

É preciso notar que o par insubmissão voluntária e reflexão indócil não visa somente aos processos de condução e à administração da vida, evidenciando uma disposição antagônica a qualquer processo de docilização ou domesticação, que tem por base a distribuição de justificativas próprias em elementos racionais, calculados, tecnicamente eficientes. Mas além disso, a crítica, como insubmissão voluntária e reflexão indócil, pretende minar as tecnologias de governo cujas bases se dispõem nos poderes de homogeneidade que, na história do Ocidente, conforme a interpretação de Foucault, valeu-se de um “poder que mostrou seu aspecto ‘pastoral’, as variações de uma atenção constante ao ‘governo de si’, a esta ‘direção da consciência’, que é a ‘arte de governar os homens’” . A biopolítica, sem dúvida, é devedora deste longo percurso que começou a preparar os corpos individuais para receberem bem disciplinarmente, docilmente, as forças dissipadoras capazes de reunir, submeter, ajustar, obrigar, controlar. Neste horizonte, valendo-nos do comentário de Judith Butler , “a crítica tem, portanto, uma dupla tarefa, aquela de mostrar como o saber e o poder trabalham, constituindo uma maneira mais ou menos sistemática de agenciar o mundo”, de governá-lo, acrescentaríamos nós, “segundo as próprias ‘condições de aceitabilidade de um sistema’, mas também uma maneira de ‘seguir as linhas de ruptura que marcam sua emergência’” . Ora, é justamente esta linha de ruptura, interseccionada pela arte de não ser governado, a insubmissão voluntária e a reflexão indócil, que marca a crítica como terceira função, a saber, o que Foucault denominou de atitude crítica.

Ao referir-se “a uma certa maneira de pensar, de falar e de agir, e uma certa relação para o que existe, para o que se sabe, se faz, bem como para uma relação social, cultural” , Foucault está delineando, de modo geral, os contornos da atitude crítica. A reativação desta atitude, sob esta ótica, diz respeito a um permanente modo de ser histórico que se caracteriza como crítica permanente ao nosso ser histórico. Numa interpretação original da questão kantiana da Aufklärung, Michel Foucault ressalta a importância de se problematizar a nossa relação com o presente, com a constituição histórica daquilo que nos tornamos ou somos, a fim de afirmarmos, em suas palavras, o “princípio de uma crítica e de uma criação permanente de nós mesmos em nossa autonomia” . Assim, atitude crítica e criação se interligam na constituição de um campo de forças que atua como estratégia para não sermos governados totalmente e viabilizarmos, de fato, a reflexão indócil e a insubmissão voluntária como formas de nos relacionar com o presente, sem descartar as conseqüências futuras, pois, assim, criticar é criar. Esta força criativa desdobra-se em duas perspectivas que, par e passo, dão azo à atitude crítica. São elas, a atitude limite e a atitude experimental.
Se a biopolítica, consignada ao biopoder, vale-se de uma série de tecnologias para colocar a vida dentro de determinadas fronteiras, quer seja por equivalência, quer seja por distinção, a atitude limite não trata de rejeitar a vida em suas múltiplas possibilidades ou de forçar-se uma escapatória, como alternativa, de um dentro ou fora dos limites estabelecidos. A atitude limite quer abusar das fronteiras; ela mesma se coloca na fronteira do que já é empreendido pelos processos de governamentalização e do que pode vir-a-ser. Quer dizer, atitude aqui é a postura criativa que força a emergência de determinados limites, pois “no que nos é dado como universal, necessário, obrigatório, qual é a parte do que é singular, contingente e que é derivado de constrangimentos arbitrários” , que pode nos levar a outras atitudes em nosso fazer, pensar e dizer? Em outros termos, e na expressão de Foucault, “trata-se em suma de transformar a crítica exercida na forma da limitação necessária em uma crítica prática na forma de uma transposição possível” . Mas se há uma pretensão, por parte da atitude crítica, de se criar uma transposição possível às formas de governamentalidade ou de tecnologias de poder, ela não pode abrir mão de um componente fundamental que foi e é alvo de toda biopolitização: a liberdade. O que Foucault denominou de trabalho indefinido da liberdade encontra o seu sentido na expressão da atitude experimental.

É claro que a biopolítica é forma racionalizada de empregar-se um certo número de tecnologias a fim de contigenciar a vida dos humanos em certos campos experimentais: o que se pode ou não fazer, o que se deve ou não fazer com a saúde, a vida, a família, a sexualidade, a morte, para nos valermos de alguns exemplos. Entretanto, vistos da dimensão da atitude experimental, estes processos de sujeição são deslocados na direção de um eixo cujas experiências se colocam como “prova da realidade e da atualidade, por sua vez, para empreender os pontos onde a mudança é possível e desejável e para determinar a forma precisa em que ocorrerá esta mudança” . Para tanto, Foucault diz que é necessária a elaboração de uma ontologia histórica de nós mesmos, poderíamos dizer, de uma ontologia que se radicaliza contra toda determinação e administração do ser. Trata-se, nesta direção, de nos desviarmos “de todos os projetos que pretendem ser globais e radicais”, ou ainda, dos “programas de conjunto de uma sociedade” ; por evidência, trata-se de nos desviarmos dos limites constritores da biopolitização. Então, a atitude experimental prefere as transformações precisas que, segundo Foucault, podem muito bem ter lugar num certo “número de domínios concernentes ao nosso modo de ser e pensar as relações de autoridade, as relações de sexualidade, o modo pelo qual percebemos a loucura ou a doença” . Enfim, tal atitude, como crítica, interroga os limites que nos são colocados e persegue a prova de como os seus ultrapassamentos são possíveis na criação de processos históricos de dessujeição.

De fato ainda persistimos numa história cuja característica proeminente é a de uma sujeição que não terminou de se completar, aliás, avança-se por intermédio dos refinamentos das técnicas e tecnologias de poder cuja testemunha mais viva e eficaz é a biopolítica. Contudo, cremos que a crítica nas três perspectivas que aqui tentamos desenvolver, como a arte de não ser governado; o par insubmissão voluntária e reflexão indócil; e, finalmente, como questão de atitude, poderá, no mínimo, nos impelir na direção de uma outra história, que também não tem a pretensão de se ver acabada: a história de uma subjetividade criativa e aberta ou dos processos de dessujeição. Afinal, se “a história dos homens é a longa sucessão dos sinônimos de um mesmo vocábulo. Contradizê-la é um dever” .

Referências

BUTLER, Judith. Qu’est-ce que la critique? Essai sur la vertu selon Foucault. In: GRANJON, Marie-Christine (org.). Penser avec Michel Foucault: théorie critique et pratiques politiques. Paris: Karthala, 2005.
DAVIDSON, Arnold. I. Les gouvernement de soi et des autres. In: Michel Foucault. Philosophie antologie. Paris: Gallimard/Folio, 2004.
FIMIANI, Mariapaola. Foucault et Kant. Critique, clinique, éthique. Paris: L’Harmattan, 1998.
FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1999.
-______. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
______. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard Seuil, 2004.
______. Dits et Écrits III. Paris: Gallimard Seuil, 1994.
______. Dits et Écrits IV. Paris: Gallimard Seuil, 1994.
______. What is critique? In: SCHMIDT, James (org.)  What is Enlightenment? Eighteenth-Century answers and Twentieth-Century Questions. California: University of California Press, 1997.

 

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