Edição 203 | 06 Novembro 2006

As contribuições de Foucault à educação

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IHU Online

Professor da Faculdade de Educação, no Departamento de Filosofia e História da Educação na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o filósofo Sílvio Gallo afirmou na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line que Foucault pode nos auxiliar “a pensar a educação e a escola pelo menos em três dimensões: a construção do saber pedagógico na dimensão científica; as relações de poder no espaço escolar, permeado pelo disciplinamento e pelo controle; as relações do sujeito consigo mesmo, numa dimensão ética”. E completa: “Aplicar os conceitos foucaultianos ao campo educacional é produzir uma espécie de estranhamento, de deslocamento dos discursos e teorias com os quais estamos acostumados. Esse estranhamento faz a educação repensar-se, na medida em que suas bases já não podem ser sustentadas”.

Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), Gallo é mestre em Educação pela Unicamp com a dissertação Educação anarquista: por uma pedagogia do risco, e doutor na mesma área com a tese Autoridade e a construção da liberdade: o paradigma anarquista em educação. No momento, coordena os projetos de pesquisa Filosofias da diferença e educação: suas interfaces, suas implicações, suas interferências e A Filosofia no Ensino Médio Brasileiro: aspectos conceituais e didáticos, levantamento, catalogação e análise de fontes. Organizou as obras Educação do Preconceito - ensaios sobre poder e resistência. Campinas: Editora Alínea, 2004 e A Formação de Professores na Sociedade do Conhecimento. Bauru: EDUSC, 2004 e escreveu Pedagogia do risco. Experiências anarquistas em educação. Campinas: Papirus, 1995; Educação anarquista: um paradigma para hoje. Piracicaba: Unimpe, 1995; Anarquismo: uma introdução filosófica e política. Rio de Janeiro: Achiamé, 2000.

IHU On-Line - O que é uma educação anarquista? Como Foucault auxilia a fundamentar essa concepção?

Sílvio Gallo
- As propostas em torno de uma educação anarquista, também conhecida como pedagogia libertária, começaram a surgir em meados do século XIX, no contexto do movimento operário europeu. Os socialistas, de forma geral, e particularmente os anarquistas, denunciavam as precárias condições de formação e ensino dos trabalhadores e de seus filhos. Denunciavam que os sistemas públicos de ensino, financiados pelos impostos pagos por toda a população, eram tomados pelos governos como instrumentos ideológicos, oferecendo uma escola para os ricos e uma outra escola para os pobres, mantendo-os em condições subumanas. E passaram então a fazer propostas de construção de escolas que operassem com um processo educativo voltado para a formação ampla e digna dos trabalhadores, como instrumento de sua emancipação. Neste contexto, foi criado o conceito de “educação integral”, por Paul Robin , que o colocaria em prática no Orfanato Prévost, em Cempuis, França, durante os 14 anos que o dirigiu (1880-1894). Depois de Robin, várias experiências anarquistas foram feitas no campo da educação e o conceito foi se firmando, assim como as práticas pedagógicas libertárias.

Já na segunda metade do século XX, Foucault nos ajudou a desvendar os mecanismos de conformação da escola moderna, como instituição disciplinar. Com base no referencial foucaultiano, podemos perceber as críticas anarquistas do século XIX como críticas a essa escola moderna, produzida, sustentada e disseminada pelo sistema capitalista. E podemos ler as experiências libertárias como tentativas de construção de uma outra escola, de outras práticas pedagógicas.

IHU On-Line - De que forma a filosofia de Foucault pode nos auxiliar a repensar os rumos da educação brasileira?

Sílvio Gallo
- Foucault nos ajuda a pensar a educação e a escola pelo menos em três dimensões: a construção do saber pedagógico na dimensão científica; as relações de poder no espaço escolar, permeado pelo disciplinamento e pelo controle; as relações do sujeito consigo mesmo, numa dimensão ética. Aplicar os conceitos foucaultianos ao campo educacional é produzir uma espécie de estranhamento, de deslocamento dos discursos e teorias com os quais estamos acostumados. Esse estranhamento faz a educação repensar-se, na medida em que suas bases já não podem ser sustentadas.

IHU On-Line - Como definiria a filosofia da diferença e de que forma essa filosofia em Foucault, especificamente, pode servir como base para uma educação libertadora e que respeita a alteridade?

Sílvio Gallo
- Definir, em filosofia, é sempre um empreendimento complicado. Dar definições que sejam simples, rápidas e claras, então, nem se diga. O que posso dizer sobre a “filosofia da diferença”? Talvez que seja um empreendimento filosófico do século XX, desenvolvido sob a inspiração de Nietzsche. No ramo francês, com pensadores como Deleuze , Derrida e Foucault, trata-se de uma filosofia que procura se desenvolver fora da dimensão platonista do pensamento ocidental, focando a multiplicidade e não a unidade. Assim, a diferença é tematizada em si mesma e não como uma diferença em relação ao outro, que no final das contas remete sempre ao mesmo.

Falar em educação libertadora e respeito à alteridade, a partir de Foucault, parece-me difícil. Se a escola moderna é uma instituição disciplinar e normalizadora, ela é um processo de subjetivação; como falar, então, em libertação? Isso só pode ser pensado num processo de trabalho do sujeito sobre si mesmo, numa espécie de “educação de si” da qual já falava Nietzsche e que Foucault reencontra em seus últimos escritos, quanto foca o tema do cuidado de si nos textos antigos, gregos e latinos. Mas uma tal “libertação” não tem como ser absoluta, posto que não há um sujeito universal. Se o sujeito é sempre construído no contexto social e histórico, uma tal “libertação” dá-se de forma situada, num determinado contexto, com base no qual o sujeito pode educar-se a si mesmo. A pergunta é: a escola pode ser espaço para isso? Eis um dos desafios que nos deixa Foucault. Quanto à alteridade, ela não está para ser “respeitada”. A alteridade está aí, é uma das constituidoras da diferença e o que podemos tentar construir, em educação, são práticas de convívio no dissenso, na diferença, em meio aos outros. Qualquer forma de “respeito” ao outro desliza para uma espécie de “tolerância”, que nada tem de vivência na e da diferença...

IHU On-Line - Poderia explicar como realiza a aproximação de Nietzsche a Foucault e Deleuze e quais são suas contribuições desses pensadores para o campo educacional, tanto na prática do ensino quanto na formação de educadores?

Sílvio Gallo
- Foucault e Deleuze foram muito influenciados por Nietzsche, e penso não ser um exagero afirmar que os dois franceses foram, cada um à sua maneira, os continuadores das provocações nietzscheanas; ou melhor, que eles tomaram a sério essas provocações, procurando equacioná-las. O filósofo alemão insistia, no século dezenove, na produção de um conhecimento “encarnado”, um pensamento produzido pelo corpo, um saber alegre e capaz de dançar, para além da suposta sisudez científica; investia em processos de autoformação, defendendo uma “educação de si”, para além de todo o ensino massificado das escolas oficiais; desafiava os filósofos a atentarem para a multiplicidade, para a produção de um saber perspectivo; traçava a genealogia dos valores, mostrando que eles são historicamente produzidos, e que toda moral é terrena. Ora, cada um, à sua maneira, Deleuze e Foucault são continuadores dessas provocações e desafios, tentando levá-los adiante.

No campo da educação, os três têm muito a contribuir, seja para a crítica da educação moderna, que se construiu como processo de subjetivação massificante e serializado, seja para pensar as possibilidades de processos educativos singulares, outras práticas de ensinar e de aprender que nos possibilitem a construção de uma outra escola, ou mesmo a prática de ações pedagógicas para além de qualquer escola. Apenas para dar um exemplo, Deleuze separa os atos de ensino dos atos de aprendizagem, afirmando ser possível controlar os primeiros, mas jamais os últimos (ver Diferença e Repetição); isso joga por terra todo o aparato de controle que são os processos avaliativos numa escola tomada como instituição disciplinar. Possui, portanto, um caráter altamente revolucionário para a educação do presente.

IHU On-Line - Como o conceito de exclusão permeia o ensino de nossos dias?

Sílvio Gallo
- Penso que, no Brasil, hoje, o que permeia o ensino é muito mais o conceito de inclusão que o de exclusão, posto que a inclusão tem sido a tônica das políticas públicas para a educação na última década. Entretanto, a exclusão continua presente, não como conceito, mas como prática. Nossa educação continua altamente excludente, quando garante o acesso de muito mais gente à escola, mas não consegue alfabetizar, de fato, um grande contingente. Nietzsche já fez essa crítica ao ensino alemão de seu tempo, quando a democratização do acesso à escola significava uma espécie de “diluição” da formação cultural. O desafio é poder disponibilizar a todos um ensino de qualidade. Enquanto não formos capazes disso, continuaremos tendo uma escola excludente. O mesmo diz respeito às diversas políticas inclusivas: para negros e índios, para pobres, para os chamados “portadores de necessidades especiais”. Na maioria das vezes, as políticas inclusivas significam mais exclusão; mas esse é um tema complexo demais para tratar em poucas linhas.

IHU On-Line - Acredita que os dispositivos disciplinares e a produção do discurso nas escolas e universidades têm se esmaecido ou apenas mudaram a roupagem?

Sílvio Gallo
- Penso que não esmaeceram. Na maioria dos casos, o que temos visto é uma adaptação a outros tempos e a outras necessidades. Durante o regime militar, nossas escolas foram fortemente disciplinadoras; acho natural que, no processo de redemocratização, tenhamos tido uma espécie de “afrouxamento” daquele tipo de disciplina mais visivelmente autoritária, embora outros métodos fossem florescendo. Por sua vez, Foucault afirmava que transitávamos das sociedades disciplinares para sociedades em que se tornava hegemônica uma outra tecnologia de poder, o biopoder, mais voltada para o controle dos grupos e populações do que para o disciplinamento dos corpos dos indivíduos. Deleuze chamou-as de “sociedades de controle”.

As escolas com sistemas internos de televisão, ou mesmo aquelas em que os pais podem, através da Internet, visualizar a sala de aula de seus filhos, são exemplos dessa nova realidade, que deverá consolidar-se nos próximos anos. Numa outra direção, estão as políticas públicas para a educação, que traçam diretrizes e rumos, controlando os macroprocessos, em lugar de voltar-se para a disciplina física.

IHU On-Line - Em que medida é possível aproximar a vontade de verdade como sistema de exclusão ao conjunto de práticas pedagógicas?

Sílvio Gallo
- A vontade de verdade constitui-se num jogo de poder, na medida em que a aceitação social de uma certa “verdade” significa a exclusão, a negação de outras. Ser detentor de uma verdade é ser detentor de um poder, portanto. No campo educacional, essa vontade de verdade fundamenta um processo educativo disciplinar, no qual os alunos devem submeter-se ao professor, como aquele que possui a verdade em torno do ensinar e do aprender. E o professor faz esse jogo, tendo como instrumento os processos avaliativos, por meio dos quais ele pode tanto classificar os estudantes, separando os que aprendem mais, os que aprendem menos, os que não aprendem, usando da punição como forma de manter o controle disciplinar sobre cada aluno e sobre todo o grupo. É essa vontade de verdade que exclui da escola aquele que supostamente não sabe, porque não quis ou não pôde entrar no jogo.

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