Edição 446 | 16 Junho 2014

Karl Rahner, a vida em busca de Deus

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Márcia Junges e Ricardo Machado | Tradução Walter Schlupp

Professor Herbert Vorgrimler apresenta o pensamento e a obra de Rahner em paralelo com a vida do teólogo alemão

“O tema da busca de Deus e dos problemas de Deus é o tema que permeia e move a vida e o pensamento de Rahner, desde sua juventude teológica até sua morte”, explica o professor doutor Herbert Vorgrimler em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Uma parte substancial do legado conquistado por Rahner é a liberdade de expressão na igreja. Existem diferenças qualitativas entre a teologia nas universidades estatais e a teologia nas instituições de ensino superior puramente eclesiásticas. Em muitos lugares existe um diálogo intensivo, também institucional, entre as ciências naturais e a teologia que é muito importante para a validade da teologia na esfera pública”, argumenta.

A postura hospitaleira de Karl Rahner com relação ao outro, ao diferente, levou-o a uma postura de diálogo, inclusive com os leigos. “Ele [Rahner] atuou em prol do engajamento dos chamados leigos em pé de igualdade na igreja, pela valorização das mulheres, incluindo sua admissão aos ministérios eclesiásticos, por um ecumenismo verdadeiro, particularmente com os cristãos protestantes, incluindo o reconhecimento de seus ministérios, pelo esforço por um conhecimento aprofundado da Sagrada Escritura”, acentua Herbert Vorgrimler. Despido de vaidades eclesiásticas, Rahner pensava o papel do sacerdote a partir de dois eixos: ser servo de Jesus Cristo e servidor de sua palavra. O teólogo alemão considerava “repugnantes exaltações ideológicas da condição de sacerdote do tipo “ser um segundo Cristo”, “tornar Jesus Cristo presente como interlocutor da comunidade”, “atuar no lugar de Jesus Cristo”, porque fazem com que a vida se baseie numa mentira”, recorda Vorgrimler.

Herbert Vorgrimler é teólogo docente na Universidade de Münster, Alemanha, autor de dezenas de obras e conhecido por sua colaboração, em 1965, com Karl Rahner na produção do livro Theological Dictionary (Crossroad Pub Co; 2 edition,1985). 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quais são os principais entrelaçamentos entre vida, obra e pensamento de Karl Rahner?

Herbert Vorgrimler - O mais importante e duradouro entrelaçamento é o tema do mistério incompreensível, infinito que chamamos de “Deus”. Nas palavras do próprio Rahner: “O mistério eterno me envolve e penetra, o mistério infinito, que é completamente diferente dos resquícios juntados do que por enquanto ainda não se sabe e ainda não se experimentou, o mistério que, em sua infinitude e densidade, é o que, ao mesmo tempo, está no mais exterior e no mais íntimo das mil realidades fragmentadas que chamamos de mundo de nossa experiência. Esse mistério está aí, se manifesta ao silenciar; deixa serenamente falar aqueles que declaram que falar dele só produz palavrório sem sentido. No momento em que não se ama, em atitude de adoração, esse mistério que tudo envolve silenciosamente, ele se torna um escândalo”.

O tema da busca de Deus e dos problemas de Deus é o tema que permeia e move a vida e o pensamento de Rahner, desde sua juventude teológica até sua morte. Na citação acima, Rahner fala do amor ‘adorante’ a Deus, o mistério eterno. Esse tema constitui a unidade de sua vida e seu pensamento. Mas e a obra de Karl Rahner? Ele não apresentou uma obra coesa e conexa. Publicações substanciais se ocupam com o tema da oração. O primeiro texto impresso dele, do ano de 1925, tem o título “Por que a oração é necessária para nós”. A uma coletânea de orações de 1937, que teve uma enorme repercussão, ele deu o título “Palavras para dentro do silêncio”. Uma compilação de homilias foi publicada no ano de 1949 sob o título “A necessidade e a bênção da oração”.

O jovem docente Karl Rahner tinha um plano de publicar, junto com companheiros de jornada, uma exposição do conjunto da fé cristã em novas perspectivas que deveria ter o tradicional título “Dogmática”. Quando Hans Urs von Balthasar (1905-1988), depois de um assentimento inicial, desistiu de participar desse projeto, pois tinha problemas com a Ordem dos Jesuítas, da qual fazia parte na época, e quando o jovem e talentoso jesuíta Alfred Delp  (1907-1945) foi executado pelos asseclas de Hitler  porque fizera parte do grupo de conspiradores do 20 de julho de 1944, Rahner suspendeu esse plano. Assim surgiram os 14 volumes de Schriften zur Theologie [Escritos de teologia], uma coletânea de escritos ocasionais que tiveram uma história diversificada. Um grupo de discípulos de Rahner (Karl Lehmann, Johann Baptist Metz, Albert Raffelt , Herbert Vorgrimler, Andreas R. Batlogg  SJ) está editando as Sämtliche Werke [Obras completas] dele, que compreenderão 32 volumes (com previsão de conclusão em 2014).

 

IHU On-Line - Qual é o seu itinerário intelectual até chegar à obra “Escritos de Teologia”?

Herbert Vorgrimler - Esse itinerário está marcado por seu ingresso, aos 18 anos, na “Companhia de Jesus”, a Ordem dos Jesuítas. Rahner entrou deliberadamente nessa ordem — e não na dos beneditinos — e permaneceu jesuíta de modo consciente e fiel até sua morte em 1984.

 

IHU On-Line - Como era a Teologia à época em que Rahner ingressou na Companhia de Jesus? O que mudou de lá para cá?

Herbert Vorgrimler - Ao passo que as disciplinas históricas tinham grande liberdade na igreja, as sistemáticas, especialmente a dogmática e a teologia moral, encontravam-se sob a mais rigorosa supervisão do magistério do Vaticano. O que estava em vigor era a “teologia escolástica” em forma de teses e distinções, e estava em vigor com a aprovação da igreja oficial. As medidas tomadas pela Cúria romana contra teólogos se tornaram muito mais raras desde o Concílio Vaticano II .

 

IHU On-Line - A partir do legado desse teólogo, qual é o lugar da Teologia em nosso tempo?

Herbert Vorgrimler - Uma parte substancial do legado conquistado por Rahner é a liberdade de expressão na igreja. Existem diferenças qualitativas entre a teologia nas universidades estatais e a teologia nas instituições de ensino superior puramente eclesiásticas. Em muitos lugares existe um diálogo intensivo, também institucional, entre as ciências naturais e a teologia que é muito importante para a validade da teologia na esfera pública.

 

IHU On-Line - Qual é a peculiaridade do projeto teológico de Rahner como um todo?

Herbert Vorgrimler - Correspondendo ao interesse dos ouvintes e leitores, Rahner partia das experiências das pessoas, em que buscava vestígios das experiências de Deus. Sempre que possível, abria mão do jargão da teologia acadêmica. Ele não queria dizer coisas novas, mas também não dizer coisas antigas de maneira antiga, e sim dizer o antigo de maneira nova. Para ele, os escritos espirituais eram mais importantes do que seus tratados teológicos.

 

IHU On-Line - Em que medida se apresenta a sua consciência de responsabilidade teológica frente às necessidades religiosas do tempo?

Herbert Vorgrimler - Rahner queria ajudar toda pessoa a descobrir o mistério (mistagogia) que vive nela cheio de amor; por isso, encontrava-se com toda pessoa com o máximo de respeito e tolerância, sem condenação. Como teólogo, ensinou a “vontade salvífica universal de Deus”. Ele estava convencido de que Deus não perde nenhuma pessoa. Voltarei a esta questão na penúltima resposta.

 

IHU On-Line - Por outro lado, como se manifesta a preocupação genuinamente pastoral e querigmática de sua teologia?

Herbert Vorgrimler - Rahner estava sempre disposto a travar “conversas espirituais”, que as pessoas esperam de curas d’alma. Na “Companhia de Jesus”, foi ordenado sacerdote da Igreja Católica. Para ele, ser sacerdote tinha dois focos: ser servo de Jesus Cristo e servidor de sua palavra. Ele achava profundamente repugnantes exaltações ideológicas da condição de sacerdote do tipo “ser um segundo Cristo”, “tornar Jesus Cristo presente como interlocutor da comunidade”, “atuar no lugar de Jesus Cristo”, porque fazem com que a vida se baseie numa mentira. Ele pregou e interpretou o evangelho inúmeras vezes. Particularmente importantes para seu serviço pastoral e querigmático eram, para ele, os exercícios inacianos. Durante sua vida, ele deu esses exercícios para outras pessoas mais de 50 vezes. Via neles uma excelente fonte da teologia. Ele buscava especialmente o diálogo com jovens, e há dois livros que documentam sua correspondência com eles. Tinha relações especiais com um lar dos jesuítas para jovens em Viena, em que viviam jovens que tinham se envolvido com a criminalidade em diversos níveis e, por isso, também tinham estado na prisão, bem como jovens dependentes de drogas. Mas ele também se preocupava muito com a “cura do corpo”, com as necessidades materiais das pessoas. Como religioso pobre, ele próprio não tinha dinheiro, mas podia estimular outras pessoas a dar e ajudar. Na última palestra de sua vida, aos 80 anos, pediu aos ouvintes doações para a aquisição de uma motocicleta para um missionário atuante na África.

 

IHU On-Line - Qual é a contribuição de Rahner para a abertura das ideias surgidas a partir do Concílio Vaticano II?

Herbert Vorgrimler - Para Rahner era decisiva a ideia de que a igreja tinha de voltar a uma amplitude de coração e de espírito que era característica de seus primórdios. Assim, ele atuou em prol do engajamento dos chamados leigos em pé de igualdade na igreja, pela valorização das mulheres, incluindo sua admissão aos ministérios eclesiásticos, por um ecumenismo verdadeiro, particularmente com os cristãos protestantes, incluindo o reconhecimento de seus ministérios, pelo esforço por um conhecimento aprofundado da Sagrada Escritura. Ele se preocupava especialmente com as relações do cristianismo com o judaísmo e o islã.

 

IHU On-Line - Qual é a influência da filosofia de Heidegger  no pensamento de Rahner?

Herbert Vorgrimler - Rahner não se contava entre os discípulos de Heidegger na filosofia e também não queria que se falasse da existência de uma “escola católica de Heidegger”. Por ocasião do 70º aniversário de Heidegger, ele escreveu o seguinte: “Mas ele nos ensinou uma coisa: que em tudo podemos e devemos buscar aquele mistério indizível que dispõe de nós, mesmo que quase não o possamos nomear com palavras.”

 

IHU On-Line - Por outro lado, como se deu a busca de diálogo entre Rahner e a filosofia moderna como a kantiana, por exemplo?

Herbert Vorgrimler - Nos anos 1930, Rahner se ocupou intensivamente com a filosofia de Kant, por inspiração de Joseph Maréchal SJ (1878-1944), da Bélgica. Desde a década de 1950 até sua morte, ele participou ativamente dos diálogos de uma entidade chamada “Paulus-Gesellschaft”, que reunia cientistas naturais, em grande parte agnósticos, e teólogos. Apoiou os esforços feitos por essa entidade junto ao papa para obter a reabilitação do cientista Galileu Galilei  (1564-1641), porque sua condenação pelo Vaticano tinha causado um trauma duradouro entre muitos cientistas naturais. O cardeal König , arcebispo de Viena e amigo de Rahner, apoiou esse projeto. Em 1992, após a morte de Rahner, o papa atendeu esse desejo. No marco da mesma entidade ocorreram também diálogos intensivos entre marxistas e teólogos, dos quais Rahner participou intensivamente. Ele publicou livros em conjunto com o – na época – comunista Roger Garaudy  (1913-2012), da Academia Francesa das Ciências em Paris. Pouco antes da morte de Rahner, em 1984, ocorreu um grande evento científico de marxistas – também da Academia das Ciências em Moscou – e teólogos, bem como representantes do Vaticano, em Budapeste, em que Rahner fez a palestra introdutória.

 

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Herbert Vorgrimler - A “abordagem” de Rahner tem, em ternos filosóficos, um caráter muito fortemente transcendental. Não obstante, não se deve esquecer que ela também tem uma dimensão histórica. Para Rahner, isso significa que a percepção do mistério infinito como “realização do ser humano” não só é, a partir de Deus, o dom de uma realização radical do ser humano na história de sua liberdade, mas que essa proposta ou oferta divina é um acontecimento histórico que, a partir de Deus, é irreversível e “palpável”. A fé cristã encontra esse acontecimento histórico em Jesus Cristo. Muitas vezes, ao mencionar esse nome, Rahner acrescentava: “o crucificado e ressurreto”. Em sua unidade com Deus e em sua solidariedade incondicional com todos os seres humanos, Jesus é o acontecimento da proximidade não mais anulável de Deus para com o mundo. Ele manteve essa proximidade na queda para dentro do vazio e da impotência da morte e foi vivenciado como aquele que, em sua entrega completa ao mistério, chegou com toda a sua existência até Deus. Junto com o pai de sua Ordem, Inácio de Loyola , Rahner fala da escuridão, de uma escuridão que se estabelece principalmente no coração humano, na sensação de uma distância de Deus, de uma experiência de Deus na sensação de um silêncio inexorável, de um Deus vivenciado por meio do padecimento, da solidão, da frustração. Certa vez ele perguntou: “Não é verdade que, a rigor, Deus habita e pode ser encontrado antes na terra inóspita, desprovida de contornos e nebulosa da vaidade [no sentido daquilo que é vão]?” Rahner menciona, como exemplos concretos dessa situação de experiência de Deus pelo caminho do padecimento, “o amor que, muito frequentemente, se encontra sob o signo da frustração, fidelidade absoluta à consciência moral, cumprimento do dever com a sensação candente da autonegação, poder perdoar sem retribuição, abrir mão sem agradecimento, sem reconhecimento e sem satisfação interior, experiência do fracasso radical do próprio projeto de vida, o despedaçamento do próprio mundo intelectual, a percepção da própria banalidade e aleatoriedade”. A fé de Rahner não era sempre um “por causa de” (porque Deus é tão bondoso e a vida é tão bela), mas muitas vezes uma fé do “apesar de” (embora ele não dê uma realização maravilhosa).

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