Edição 445 | 09 Junho 2014

“A pós-modernidade é um Renascimento ressignificado”

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Ricardo Machado e Andriolli Costa / Tradução: André Langer

O filólogo da Universidade de Leipzig Alfonso de Toro elenca as características da pós-modernidade, destacando o que ela conserva e supera na compreensão do humano e da sociedade contemporânea

Da ciência à política, das artes à filosofia, todo um conjunto de pensamentos colaborou para a emergência do Renascimento europeu. Para o filólogo da Universidade de Leipzig Alfonso de Toro, ao retomar perspectivas da cultura greco-latina, houve uma reinvenção do sujeito, trazendo o humano como centralidade do sistema. Neste ponto, o pesquisador enxerga similaridade com a própria pós-modernidade. “Ela se volta para trás – para a nossa cultura, a nossa civilização — e a coloca em questão, elimina uma série de tabus, de bases que são obsoletas, que são falácias, para abrir esta sociedade e coloca novamente o indivíduo no centro desse sistema”. E defende: “A pós-modernidade é um renascimento ressignificado”.

De Toro esteve na Unisinos participando do Ciclo de Estudos ‘Questão Pós’ nas Ciências Humanas - Pós-Estruturalismo, Pós-modernidade e Pós-colonialidade, organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da universidade. Na ocasião, concedeu entrevista pessoalmente à IHU On-Line, em que aponta quatro características fundamentais que caracterizam a pós-modernidade: a superação dos conceitos de logos e de origem, a compreensão dos metadiscursos como construções, o descentramento do sujeito e a hibridez. O pesquisador aborda ainda a diferença entre pós-humanismo e pós-modernismo, a relação do sujeito pós-moderno com a democracia e os limites para a paralogia — isto é, para a aceitação de várias lógicas, de várias verdades como sendo igualmente válidas.

“Quando se analisam processos, eventos históricos — que são todos interpretáveis —, nessa liberdade há, para mim, um limite, que é o da imposição do imperativo do fato”, destaca. “Há campos na vida, momentos em que o fato mesmo é tão forte, tão dominante, que não deixa lugar para a paralogia”. Um exemplo, para o pesquisador, seriam os campos de concentração nazista ou a ditadura militar no Brasil. “Isso não se discute. Não se pode discutir.”

Alfonso de Toro é master of arts e doutor pela Universidade de Munique, Alemanha. Atualmente é professor de Filologia Românica na Universidade de Leipzig, na Alemanha, onde dirige o Centro de Pesquisa Francófona. Atua ainda como diretor e fundador do Centro de Pesquisa Ibero-americana no Instituto de Romanística. É autor, entre outros livros, de Epistémologies “Le Maghreb” (Paris: L'harmattan, 2009) e Borges infinito. Borgesvirtual: Pensamiento y saber de los siglos XX y XXI (HIldesheim: Georg Olms Verlag, 2008). Atua principalmente nas áreas de semiótica, teoria da literatura, teoria da cultura e teatro.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as características da pós-modernidade que você considera fundamentais? Como se conceitua hoje, no âmbito das ciências e das artes, esta pós-modernidade?
Alfonso de Toro -
Uma das características fundamentais da pós-modernidade é a sua radical pluralidade. É o desenvolvimento, o fomento e a promoção da multiplicidade. Isso tem a ver com três ou quatro fatores fundamentais que, para mim, são os fatores que constituem a pós-modernidade como pensamento, como sistema, como estrutura.

Um desses fatores fundamentais é que a pós-modernidade — e isso tem muito a ver com Derrida  — supera o conceito de logos e de origem, que é característico para o pensamento ocidental em toda a sua história. Parece-me que isso é fundamental, porque o problema do logos e da origem foi um problema, um fenômeno, uma ideia que causou inúmeros conflitos. Tem a ver com um tipo de discurso nacionalista, genético, relativo à pureza da raça e que se impôs ao longo da história como autoridade, como um discurso, uma ideia, um pensamento irrefutável e universal que transcende as épocas, as culturas e as regiões.

Parece-me que o trabalho de Derrida é fundamental para mostrar que não existe um logos, que não há um interesse, senão que quando temos uma ideia, essa ideia se refere a outras ideias. Há muitas ideias antes, e quando alguém acredita ter chegado a um ponto de partida, este ponto de partida leva a outro ponto de partida e assim consequentemente.

Derrida nos mostra que temos uma espécie de cadeia de pensamentos, o que ele chamará de “dissémination”, isto é, não teremos uma construção de sentidos fixos, mas uma produção de grandes diversidades de sentidos e de significações que vão deixando uma marca. Ou seja, uma ideia, um conceito, uma norma estão condicionados por conceitos e normas anteriores e posteriores. É um sistema dinâmico, um sistema que supera o linearismo ocidental, o que é um problema, porque o linearismo ocidental leva a estruturas fechadas na origem. Esse é um aspecto fundamental.

Um segundo aspecto fundamental que tem a ver com isso e que é consequência lógica da desconstrução da ideia de logos na origem está presente no curso pós-moderno de Lyotard  de 1979, A condição pós-moderna (São Paulo: José Olympio, 2004), onde o autor demonstra que as metanarrações, os metadiscursos são construções. Por isso, Lyotard diz que “quem prova é a prova” e descobre que os discursos metanarrativos, como discursos que pretendem ter uma verdade absoluta e universal, têm um caráter messiânico.

Dou dois exemplos. Um, o discurso marxista que parte da ideia, da verdade, que toda a sociedade se rege por processos econômicos e que se poderia chegar — e esse é o aspecto messiânico — a uma sociedade justa, onde todas as pessoas têm os mesmos direitos, todos estão no mesmo nível de igualdade, abolindo a propriedade privada, como Marx  propõe, em 1848, no Manifesto de Paris. Esse é um discurso fechado que explica a sociedade somente a partir de um lugar e com um fim determinado, que é ideológico.

Um outro discurso é o de Freud , que acredita que todos os comportamentos humanos, toda a organização social, são regidos pela sexualidade, pelo Complexo de Édipo, e ele quer desenvolver um método (o da psicanálise) para superar o Complexo de Édipo e, assim, atingir uma sociedade saudável. Esses dois discursos são discursos que se excluem mutuamente, porque apresentam uma verdade absoluta. São como as religiões. As religiões na Bíblia são discursos absolutos.

Um terceiro aspecto fundamental da pós-modernidade e que a leva a esse desenvolvimento da pluralidade radical e de uma grande multiplicidade de possibilidades é o descentramento do sujeito, que é uma teoria da Lacan . Simplificando, ela parte do pressuposto de que o indivíduo não pode ser definido por si mesmo — como se acredita no humanismo, como se aprende no cristianismo —, mas sempre através do outro. E nesse contato que nós temos agora há um intercâmbio de identidades, de culturas, de discursos, de códigos e se forma um terceiro. E assim se forma a identidade. E o quarto é o tema da hibridez, que constitui a humanidade. Essas seriam quatro bases fundamentais desta radical pluralidade.

IHU On-Line - Neste sentido, como a sociedade constrói suas narrativas e metanarrativas em um contexto pós-moderno com o descentramento do sujeito?
Alfonso de Toro -
Com o advento da pós-modernidade, com autores como Foucault , Derrida, Deleuze  e Guattari , com Lyotard, com, por exemplo, Vattimo , com Baudrillard , não existem mais os mesmos discursos. Agora, ao contrário, existem muitas verdades, muitos discursos que têm o mesmo status, a mesma legitimidade e que estão em competição uns com os outros. O que o indivíduo decide que é verdade não é necessariamente verdadeiro também para o outro.

Esse aspecto foi muito criticado por ser um relativismo excessivo, onde a sociedade não tem um lugar de partida que seja um lugar base para todos. Mas aí reside o desafio da pós-humanidade, que é radicalmente democrática. Ou seja, queremos a individualização das normas, que não é algo arbitrário, no sentido de que você tem que negociar comigo ou com outros uma determinada moralidade. Dessa maneira, por um lado, o pensamento pós-moderno produz um desafio para a sociedade no sentido de que esta está sempre em movimento, onde não há um fim, mas há uma negociação permanente. Essa é, naturalmente, a contribuição mais importante que se deu à democracia nos séculos XX e XXI.

IHU On-Line - A pós-modernidade superou o antropocentrismo? Qual é o papel da antropotécnica neste contexto? Como se caracteriza este tempo?
Alfonso de Toro -
Eu penso que não. Pelo contrário, reforçou o individualismo, o sujeito. Eu diria que toda a filosofia pós-moderna é uma filosofia centrada no sujeito, na possibilidade do sujeito, coloca o sujeito no centro e, digamos, dá a ele uma prioridade muito mais forte que ao Estado.

Eu não diria que o pós-modernismo supera o sujeito. Fala-se do pós-humano. Isso é uma inverdade. A pós-modernidade nunca é pós-humana. Eu não entendi esse conceito de pós-humano. Entretanto, é um conceito que tem a configuração de um sujeito que não é um sujeito único, um sujeito unificado, um sujeito que compartilha tudo o que seja característico, senão que é um sujeito em si, um sujeito que tem suas próprias características.

A pós-modernidade é um renascimento ressignificado, como eu a chamei num dado momento. Por quê? O que temos no renascimento europeu? Porque o centro do sistema é o ser humano, é o homem, esse indivíduo que está no centro. E há todo um pensamento por trás de como estava formada, de onde viemos e como estava formada esta sociedade partindo da cultura greco-latina. Olhando para trás, há uma reformulação, uma reinvenção do sujeito. Aí eu vejo exatamente o lugar da pós-modernidade que se volta para trás, olha para trás — para a nossa cultura, a nossa civilização — e a coloca em questão, elimina uma série de tabus, de bases que são obsoletas, que são falácias, para abrir esta sociedade. E coloca novamente o indivíduo no centro desse sistema.

IHU On-Line - No atual contexto complexo, como o discurso se transmuta em um efeito de verdade? Como compreender as positividades da nossa sociedade e como avançar?
Alfonso de Toro
- Foucault conecta a categoria de discurso com o poder. Ou seja, Foucault vê a enunciação filosófica do pensamento. Ele não a idealiza, nem a vê independente do resto, ou seja, Foucault não é um metafísico. Não tem uma filosofia ideal, senão um conceito de discurso de sociedade marxista, onde esse discurso está sempre localizado em algum lugar, por exemplo, na instituição, na clínica, no cárcere, no aparelho de Justiça.

Em primeiro lugar, esse discurso e poder, discurso e instituição, discurso e sistema de leis, discurso e saber, esse discurso Foucault o conecta. Ele lhe tira um idealismo, a inocência do discurso e o coloca dentro de um contexto de intenção determinada. Em segundo lugar, Foucault considera que, com respeito ao poder, não existe uma hierarquização no discurso, mas existem diversos discursos que estão competindo uns com os outros.

Em um dado momento se estabelece um tipo de discurso, digamos, que ganha a batalha dos discursos e se estabelece como episteme, como o dispositivo, o que ele trata em vários livros. Essa concepção de discurso que são linhas que se entrecruzam, que se entrecortam, que se superpõem, que se bifurcam, é um discurso novo. Isso é pós-moderno e não é algo que esteja sempre prefigurado e que tenha somente uma linha teleológica e acabe num lugar; ao contrário, há uma série de possibilidades na competência do discurso.

Crítica
Fundamental também é a crítica que se faz a Foucault, segundo a qual se diz que esse discurso aniquila o sujeito, que destaca a máquina discursiva do seu produtor. Não creio que seja isso. Edward Said , em Orientalismo (São Paulo: Companhia das Letras, 2007), que é um livro baseado no discurso de Foucault, critica o próprio Foucault e diz: “Não, eu saí e falo como palestino, fui educado num colégio britânico colonial no Egito e pertenço à elite norte-americana de professores de estudos literários e culturais”. Mas, penso que há aí uma confusão.

Em As palavras e as coisas (Martins Fontes: São Paulo, 2000), Foucault demonstra que há um enunciado que vem de algum sujeito determinado, mas o que ele quer demonstrar não é o problema do sujeito. Pelo contrário, ele coloca neste momento o acento, o foco, na estrutura do discurso; em como se forma o discurso, como se chega a expressar uma ideia, como se rompe com um esquema num dado momento. Ou seja, ele está mais interessado em descrever a estrutura, a máquina discursiva, e menos no produtor do discurso.

Isso é atualmente válido, não entra sinceramente na política e está relacionado também com o tema da paralogia  de Lyotard, quando este, em Le Différent, fala das competências dos discursos uns aos outros no mesmo nível. Eu penso que se esse tipo de ideia de Foucault e de Lyotard fosse colocado em parte em prática no discurso político real, teríamos um enorme avanço na democracia.

O problema no discurso político, seja na América Latina, seja na Europa, é que o discurso político não quer discussão. Isso se vê claramente quando há eleições. Acredita-se que tem que ser um partido a ocupar-se frente a uma figura com um discurso e não se permite que companheiros de partido tenham outra opinião. Isso não pode ser. As eleições são o momento mais revelador deste tipo de autoritarismo, desta univocidade discursiva política. O debate simplesmente desaparece. O debate para o partido político é a morte. Se o partido político se dá ao luxo do debate interno, o povo não o elege, porque acredita que é um grupo caótico. Creio que aí há muitíssimo a se fazer.

IHU On-Line - A instauração de uma “paralogia” que promove múltiplas verdades não pode conduzir também a um relativismo extremo, onde tudo é considerado como verdade?
Alfonso de Toro -
Essa é uma pergunta muito pertinente, fundamental e uma pergunta muito difícil de responder. Por um lado, temos a fascinação, a possibilidade de que há muitas verdades. Alguém pode ser homossexual, lésbica, transexual, heterossexual... Essas são verdades de vida. E não devem ser questionadas.

Há um problema muito grande por trás disso, mas em certos países europeus há políticos homossexuais: o ex-ministro de Relações Exteriores [da Alemanha, Guido] Westerwelle é homossexual, o governador da cidade de Berlim é homossexual, o ex-governador do Partido Democrata-cristão de Hamburgo é homossexual. Ou seja, isso não é um problema na sociedade. Há outro tipo de problema na sociedade alemã com respeito à discriminação homossexual, mas houve grandes avanços. Então, não há apenas uma verdade, que apenas o casamento entre um homem e uma mulher seja o modelo de vida que se propõe para uma sociedade. Não, há muitas verdades. E isso não é relativismo, mas é, acima de tudo, uma vontade de liberdade, um desejo de democracia.

Temos também outro tipo de problema. Quando se analisam processos, eventos históricos — que são todos interpretáveis —, nessa liberdade há, para mim, um limite, que é o da imposição do imperativo do fato. Há campos na vida, momentos em que o fato mesmo é tão forte, tão dominante, que não deixa lugar para a paralogia. Um exemplo seria a ditadura brutal do Brasil, que foi uma das grandes ditaduras da América Latina, por todo o terror, a ditadura de Videla , a ditadura de Pinochet , os milhares e milhares de mortos, as torturas.

Há a comprovação da existência do campo de concentração que Pinochet abriu no meio do deserto, que eram construções utilizadas pelos ex-mineiros do século XIX e começo do século XX do salitre. Auchwitz, Treblinka, etc. Isso não se discute. Não se pode discutir. E aí há um problema com Lyotard, porque ele, em Le Différend, desenvolve seu conceito de paralogia partindo do discurso jurídico. Dou um exemplo muito perigoso, mas um exemplo do discurso do nazista, que matava no campo de concentração, e da vítima, que havia sobrevivido, diante de um juiz e diz: ‘ambos têm um discurso. Qual terá um discurso que tem a verdade?’ E aí, para mim, há um limite. O discurso da verdade é o discurso do sobrevivente, e não o discurso do assassino. É a única forma.

Limites políticos da paralogia
Quando temos um Estado constitucional, um Estado de direito, um Estado absolutamente democrático, para mim há um limite de regulamento da verdade que é a Constituição, que é a Suprema Corte. Ora, pode-se criticar a Constituição, a sentença da Suprema Corte, mas não se pode tocar. Porque quem toca a Suprema Corte, quem coloca em xeque a Suprema Corte questiona a liberdade, a democracia, a liberdade de imprensa, a liberdade da palavra, os direitos humanos, questiona tudo. Aí há um limite, mas todo o resto é possível.

Naturalmente, os partidos políticos têm que ser pragmáticos, têm que aprovar leis, têm que regular a sociedade, há conflitos, é preciso construir estradas, deve dar educação a um povo, há uma série de implicações; então deve-se tomar decisões e pode-se, naturalmente, partir de um caminho de como chegamos a ter uma sociedade de bem-estar, como podemos dar a todo mundo educação, que caminhos podemos tomar para abastecer uma sociedade com serviços públicos, assistência médica, etc. Isso é perfeitamente discutível.

Os políticos têm essa barreira de sempre estar tomando decisões que precisam virar leis. Uma sociedade, nesse contexto, não resiste à paralogia. A paralogia transforma-se, neste contexto, num perigo, porque impede de tomar decisões. Ou seja, temos que ver a paralogia como uma contribuição à consciência democrática de um país, de uma região, de uma sociedade, mas não devemos absolutizá-la. Devemos notar que há limites, mas que, mesmo assim, a paralogia não deixa de ser uma contribuição para a democracia.

IHU On-Line - O livro Mil Platôs (São Paulo: Editora 34, 1995), de Deleuze e Guattari, trata justamente desta multiplicidade da pós-modernidade. Pode-se ter neste livro um ensaio sobre uma nova democracia?
Alfonso de Toro
- Sim. Mil Platôs parte da intenção de introduzir um novo conceito de sociedade e um novo conceito do que é uma enfermidade. Parte-se do exemplo de pessoas que aparentemente sofriam de paranoia. Quem é o paranoico? Por que se qualifica essa pessoa de paranoica? Não é a clínica, mas a sociedade que determina quem é paranoico. É o discurso social, o discurso jurídico que criminaliza essa pessoa como paranoica e não lhe deixa nenhuma possibilidade de saída.

Deleuze e Guattari se perguntam como sair desse impasse; como introduzir um novo conceito de enfermidade; e de que forma tratar essa pessoa não como enferma, senão como um indivíduo que funciona socialmente. Partem de uma ideia de Artaud , em o corpo sem órgãos, e descrevem o corpo, o organismo do indivíduo, como uma máquina perfeita, que sempre está funcionando. O exemplo que dão é o da criança que amamenta na mãe. Primeiro tem a função do peito que dá o leite, o processo da boca, da sucção, depois o processo da digestão, etc. Ou seja, é uma máquina perfeita que é o símbolo, a metáfora, da construção autoritária do Estado.

O que eles pretendem com isso é tirar o corpo social, o corpo clínico desse lugar de estrutura fixa. E tomam o chamado Caso Schreber . Schreber era um juiz em Trieste e que de repente é declarado esquizofrênico. É destituído, internado na clínica e ele não aceita os métodos usados para curá-lo. Começa por conta própria a escrever e a observar-se a tal ponto que ele mesmo se cura. Deixam-no sair e assume novamente o posto de juiz. Deleuze e Guattari tomam este caso como uma possibilidade de como a pessoa tem a capacidade, a força, de tomar distância do sistema repressivo que é a clínica e de poder tomar consciência da sua chamada enfermidade e se curar.

No segundo volume de Mil Platôs, introduzem o conceito de rizoma, que é um conceito fundamental, porque tem a ver também com Deleuze, Derrida, com a supressão do logos e o binarismo. O rizoma é uma metáfora de uma espécie de rede infinita que se expande e que não tem centro, nem entrada, nem saída, nem fim, nem começo. Essa é a absoluta liberdade. E o papel do filósofo-sociólogo é o de pensar no limite do possível para encontrar caminhos novos, abrir caminhos novos. Os livros Capitalisme et Schizophrénie (Paris: Éditions de Minuit, 1972), assim como outros livros que vêm do pós-modernismo — La fine della modernità (Milão: Garzanti, 2011), de Vattimo —, são todos uma contribuição obsessiva para a democracia mais radical, para uma liberdade do indivíduo, de uma autodeterminação do indivíduo.

IHU On-Line - Quais são os desafios da pós-modernidade?
Alfonso de Toro -
Depois de 30 ou 40 anos de teoria, de pensamento, o maior desafio da pós-modernidade — e esse é um aspecto político — é o de implementar os conceitos da teoria da pós-modernidade. Percebemos que no funcionamento das nossas sociedades, de todo esse pensamento que se desenvolveu na pós-modernidade os conceitos não chegaram a nenhum lugar ou a pouquíssimos lugares. Não chegaram aonde deveriam ter chegado: nas decisões políticas, nas instituições jurídicas. As instituições em geral seguem em grande medida funcionando com parâmetros que não têm nada a ver com esses desafios. O desafio é realmente o da implementação.

Claro, a universidade ou os centros de pesquisa são um lugar privilegiado e o único lugar, digamos, onde se pode discutir sobre isso. Porque a pós-modernidade, especialmente na América Latina, teve muita oposição por razões ideológicas, de como se os pós-modernos fossem neoliberais — e nunca foram neoliberais. Pelo contrário, entre os pós-modernos, há muitos que são da esquerda.

Não se deve esquecer que Foucault, Deleuze, Guattari, Derrida e Lyotard estavam fora do esquema universitário francês tradicional, estavam na periferia. Sobre isso há um livro fundamental que se chama O que é Neoestruturalismo (Minnesota: University Press, 1989), do filósofo alemão Manfred Frank , no qual descreve como estes autores — que para nós são autores “monstros” no sentido da contribuição universal que deram —, na França, não eram considerados. A França era um dos países mais reacionários frente ao estruturalismo, ao pós-estruturalismo, ao pós-modernismo.

Penso que esse foi um problema fundamental particularmente na França. Mas o que nos interessa é repensar qual tem sido — sem entrar no debate político-ideológico — a verdadeira contribuição da pós-modernidade, assim como também da pós-colonialidade . Esse é o maior desafio que temos pela frente. Penso que alguns de nós estamos empenhados em introduzir, aplicar, tratar de, pelo menos, usar sempre que possível os conceitos que vem da pós-modernidade dentro da política, da ‘realpolitik’, como se diz na Alemanha, para haver alguns avanços.

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