Edição 445 | 09 Junho 2014

A representação da economia na vida humana

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Luciano Gallas

“Defendo a tese de que mesmo a forma de reificação da vida social mais incisiva e envolvente, que é a relação-capital, só pode compreender-se como um modo singular pelo qual a realidade social se articula e se informa no plano da representação e da linguagem”, afirma Édil Guedes

No livro A Economia como Sistema da Representação em Karl Marx (São Leopoldo: Unisinos, 2014), Édil Guedes investiga a concepção econômica da obra de Marx para além dos limites impostos pela manutenção da existência física dos indivíduos, alcançando uma forma do ser humano expressar a sua própria existência e a sua sociabilidade. “A produção da vida material apresenta-se para o ser social humano como ele a representa, quer dizer, como ele a torna presente para si na qualidade de vida humana”, aponta o autor.

Na economia do capital, lembra Édil Guedes em entrevista concedida à IHU On-Line, por email, o trabalhador, embora sujeito da sua própria história, desfaz-se da condição de protagonista, representando a sua existência social como algo que se processa de forma autônoma a ele, com uma lógica específica, impessoal e objetiva. “A vida social representa-se, subjetiva e objetivamente, como independente do seu original criador, e como uma realidade que além de tudo o submete, subjuga e impõe a ele os desígnios dela. Considerando-se especificamente a situação daquele que assume o papel de trabalhador assalariado, então tudo fica ainda mais grave. O trabalhador, para Marx, aliena de si a própria força de trabalho, aquilo que, podemos afirmar, ele é em potência, vendendo-a como mercadoria”, expõe. A força de trabalho converte-se então na base de sustentação do capital, elevado à condição de “relação social autorreferida, reificada, com todos os predicados de ‘sujeito total e absoluto’ da realidade social, pois se torna o princípio e o fim dela mesma”.

O autor faz, entretanto, uma ressalva: “é preciso não esquecer que esta realidade é obra do ser humano, que essa história é a sua história. Portanto, tal processo não pode ver-se senão como autoalienação, como autossujeição, e não como puro condicionamento, como pura imposição da força das coisas, da realidade, sobre o ser humano. É necessário lembrar sempre que esta é a realidade dele. Do contrário, cairíamos num determinismo absoluto e sem sentido, e que tornaria também sem sentido tanto a obra de Marx como a sua atuação política”.

Édil Carvalho Guedes Filho é graduado em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG e possui mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Atualmente é professor da PUC/MG e da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - De que modo a economia consiste em um sistema da representação no pensamento de Karl Marx?
Édil Guedes –
Para Marx, todo modo de produção da vida material, ou seja, toda forma de economia, é sempre mais do que a simples reprodução da existência física dos indivíduos, é sempre um modo de o ser social humano expressar a sua vida. Embora a produção da vida material se imponha como necessidade primeira e inalienável da vida humana, ela será sempre ao mesmo tempo uma configuração significativa da vivência e da sociabilidade. Em outras palavras, em todas as suas dimensões constitutivas, a produção da vida material apresenta-se para o ser social humano como ele a representa, quer dizer, como ele a torna presente para si na qualidade de vida humana. Em meu livro, defendo a tese de que mesmo a forma de reificação da vida social mais incisiva e envolvente, que é a relação-capital, só pode compreender-se como um modo singular pelo qual a realidade social se articula e se informa no plano da representação e da linguagem.

IHU On-Line - Qual é o protagonismo do sujeito (trabalhador) neste sistema da representação?
Édil Guedes -
Se o sistema da representação em questão é o da sociabilidade fetichista da economia do capital, podemos dizer que o sujeito nesse processo se desfaz como protagonista, representando e assim configurando a sua própria existência social como realidade heterônoma, ou seja, como algo que se processa por si, que tem uma lógica própria e radicalmente impessoal, puramente objetiva. A vida social representa-se, subjetiva e objetivamente, como independente do seu original criador, e como uma realidade que além de tudo o submete, subjuga e impõe a ele os desígnios dela. Considerando-se especificamente a situação daquele que assume o papel de trabalhador assalariado, então tudo fica ainda mais grave.

O trabalhador, para Marx, aliena de si a própria força de trabalho, aquilo que, podemos afirmar, ele é em potência, vendendo-a como mercadoria. Ela, a força de trabalho, passa a ser a alma de um outro. Esta que é a potência da atividade humana converte-se na força de um outro, naquilo que há de atualizar-se como a atividade e o processo pelo qual se constitui dinamicamente um outro. E esse outro é o capital, uma relação social autorreferida, reificada, com todos os predicados de “sujeito total e absoluto” da realidade social, pois se torna o princípio e o fim dela mesma. Uma vez adquirida pelo capital, a força de trabalho torna-se naquilo que o anima, no que o faz vivo; ela é o fermento, a levedura do capital, para usar a significativa expressão de Marx nos Grundrisse .

É possível vê-lo também por outros ângulos, como na mudança do princípio do processo de produção, que é ao mesmo tempo condição e consequência da afirmação da reprodução das relações capitalistas. Ele passa de subjetivo a objetivo com a introdução da maquinofatura, a primeira face técnico-material do capital industrial moderno. Pois, se no artesanato as ferramentas se adaptavam ao trabalhador, se moldavam ao seu ritmo e aos seus modos de proceder, na maquinofatura é o trabalhador, como abstrata e impessoal força de trabalho, que tem de adaptar-se ao ritmo e ao modo de fazer da máquina, como brilhantemente representou Chaplin  em seu filme Tempos Modernos, no qual o trabalhador, além de figurar como uma espécie de autômato, se vê literalmente tragado pelas engrenagens das máquinas, consumido pelo processo maquinal de produção. Marx destaca a perda da expressividade original do trabalho neste processo que adquire a consistência objetiva e sistemática de um organismo de produção independente.

Mas é preciso não esquecer que esta realidade é obra do ser humano, que essa história é a sua história. Portanto, tal processo não pode ver-se senão como autoalienação, como autossujeição, e não como puro condicionamento, como pura imposição da força das coisas, da realidade, sobre o ser humano. É necessário lembrar sempre que esta é a realidade dele. Do contrário, cairíamos num determinismo absoluto e sem sentido, e que tornaria também sem sentido tanto a obra de Marx como a sua atuação política.

IHU On-Line - Como as diferentes fases do pensamento deste autor incidem no livro A Economia como Sistema da Representação em Karl Marx?
Édil Guedes -
Minha pesquisa teve como objeto principal a obra madura de Marx, notadamente O Capital . Mas isso não quer dizer que me tenha concentrado exclusivamente nela e desconsiderado o conjunto da obra de Marx, no esforço de tornar inteligível a concepção da economia neste autor segundo a tese que defendi no livro. Muito pelo contrário. O recurso cuidadoso e oportuno mesmo aos escritos de juventude do nosso autor mostra a emergência dos motivos fundamentais de seu pensamento e de sua obra, e ajuda a revelar as linhas de continuidade temática e mesmo conceptual, além do seu desenvolvimento, conferindo maior profundidade e rigor à exposição, que, a propósito, não corrobora a conhecida tese da ruptura epistemológica.

IHU On-Line - Qual é o diálogo estabelecido entre a dialética e a práxis na obra de Marx?
Édil Guedes -
A dialética pode ser pensada na obra de Marx sob duas perspectivas distintas, mas de modo algum dissociáveis. Ao contrário, devem ver-se como complementares. Seriam elas a dialética em sentido lógico-gnosiológico e a dialética em sentido lógico-ontológico. Em um primeiro sentido, trata-se da dialética como método, pelo qual se visa à reprodução conceptual da realidade efetiva. Diferentemente de Hegel , Marx julga proceder do real ao conceito, pelo que afirma virar pelo avesso a dialética hegeliana. A dialética dos conceitos aqui não se poderia confundir com a efetiva dinâmica da realidade histórica, devendo compreender-se apenas como a representação conceptual objetiva e sistemática de suas articulações constitutivas. Mas, segundo a minha interpretação, isso não corresponde à negação da dialeticidade do real, que, como defendi no primeiro capítulo do livro, é sempre, de modo muito visível, presumida e afirmada em O Capital e em toda a obra de Marx.

Assim se pode então considerar a dialética em um segundo sentido, ontológico, revelando-se como o movimento mesmo do real. Deste modo, argumentei que na obra de Marx o processo histórico, o devir do real efetivo tem a sua dialeticidade, que precisa expor-se na dialética conceptual. A herança hegeliana é acolhida e transformada, quando a dialética deixa de referir o desenvolvimento do Espírito e passa a identificar-se com o desenvolvimento da vida prático-espiritual do ser humano. A crítica da economia medeia no pensamento de Marx a constituição de uma ontologia dialética da práxis, pois a História passa a compreender-se como a dialética da autoprodução do ser humano, constituindo a normatividade à luz da qual se orienta a razão fundamentalmente articulada à práxis.

IHU On-Line - Como a ética se apresenta na obra do autor? Como se relacionam ética e fetichismo?
Édil Guedes –
Qual é a questão fundamental que constitui a Ética como disciplina filosófica? Se assumimos que se trata do problema da afirmação do espaço da liberdade sobre o domínio da necessidade, ou seja, o problema da autodeterminação da práxis, então defenderemos que este constitui também o motivo principal de toda a obra de Marx. Diferentemente de Aristóteles , porém, em cuja obra a Ética conquista inauguralmente o estatuto de um saber autônomo, na obra de Marx ela se converte, ao mesmo tempo, em uma dialética do ser social, uma ontologia da história e, mais explicitamente, em uma crítica da economia, que se faz mediação das duas anteriores. No pensamento marxiano, a morada na qual o ser humano afirma ativa e dialeticamente a sua liberdade é a sociabilidade econômica. Dito de outro modo, esse ethos são as relações sociais que medeiam e constituem a produção de sua existência material, e que ao mesmo tempo informam a vida humana de um modo significativo. Por isso, no pensamento marxiano, a conquista da liberdade deve compreender-se como a produção da liberdade, e a história das relações sociais de produção será a atualização da própria vida humana como liberdade e autoexpressão.

O tema do fetichismo das formas da sociabilidade mercantil-capitalista tem especial relevo e exigiu-nos atenção singular, pois mesmo a autonomia do capital — que é o momento negativo da autoafirmação do ser humano na história — deve ser compreendida como uma objetiva autorrepresentação da práxis como realidade heterônoma. Não faz sentido conceber o fetichismo simplesmente como a prevalência das coisas sobre o ser humano ou como a plena ascendência do material sobre o ideal — o que viria a comprovar um já esperado determinismo material ou econômico. Bem ao contrário, sustento que só se pode compreender rigorosamente o fetichismo na obra de Marx como uma reificação que se realiza como um processo praxiológico, justamente ao nível das suas determinidades de forma, conforme a terminologia de Marx. Em outras palavras, o fetichismo é a forma invertida pela qual se dá a presença recíproca dos sujeitos na sociabilidade mercantil-capitalista, e por isso não pode corresponder senão à constituição de certa vivência praxiológica.

IHU On-Line – Que condição a história assume no pensamento de Marx?
Édil Guedes –
Se a História se compreende em Marx como história da autoprodução do ser humano como liberdade e autoexpressão, e este, como ser social e histórico passa a conceber-se como criador de si mesmo, a História assume na obra deste autor a condição de novo Primeiro Princípio ontológico. Na ontologia marxiana, portanto, o ser social humano se apresenta como o sujeito último da própria história.

IHU On-Line - Como capital e fetichismo se relacionam? Como se dá o embate entre capital e liberdade?
Édil Guedes –
O capital se revela como a relação social mais complexa e mais fetichista. Representa-se como um valor que se autovaloriza e que submete tudo a sua própria lógica autoexpansiva e autorreflexiva. Seu processo totalizante converte progressivamente tudo em momento seu e expressão de seu movimento. Mas como dissemos anteriormente, o capital não pode nascer radicalmente de si mesmo; ele somente pode subsistir na representação ativa daquele que é o sujeito da sua própria sujeição: o ser social humano. Apenas este pode constituir e manter o capital como autofinalidade.

Mas a visão de Marx sobre o capital e a sua relação com a afirmação da liberdade humana na história é complexa e, diria até, intrigante. Pois embora corresponda à forma e ao grau mais elevados da heteronomia fetichista, embora seja a forma culminante da alienação, o capital cumpre para Marx um papel histórico decisivo, que o justifica e o legitima: o de criar as bases materiais da autorrealização plena do ser humano, abrindo caminho para que o sujeito humano recobre e refaça a sua autonomia. Não se tratará, pois, na obra de Marx, à luz da História, mera desrealização do ser humano ou simples negação de sua liberdade, mas uma espécie de afirmação invertida que constituirá uma etapa necessária da dialética da autorrealização plena do sujeito humano como ser social-histórico.

IHU On-Line - Qual a contribuição do filósofo Henrique Cláudio de Lima Vaz  para o instrumental metodológico usado na pesquisa apresentada no livro?
Édil Guedes –
A obra de Lima Vaz é uma referência fundamental não apenas em minha interpretação de Marx, mas também em toda a minha formação filosófica e intelectual, de modo que a frequente recorrência a ela se faz natural em meu percurso. Além de alguns textos muito importantes, que exerceram significativa influência sobre o meu modo de pensar Marx, como é o caso do excelente Ontologia e história, publicado originalmente em 1968, penso que a vigorosa e pertinente crítica da modernidade elaborada por Lima Vaz nos ajuda a melhor situar e compreender a natureza, as implicações e os limites do pensamento marxiano. Em meu livro, a contribuição vaziana pode notar-se ainda de outras formas, como por exemplo, ao oferecer-me um roteiro de aproximação para que eu pudesse explicitar as fontes e as disciplinas filosóficas do pensamento de Karl Marx, ou ainda quando, no terceiro capítulo, julguei oportuno valer-me das categorias de relação da antropologia filosófica vaziana para explicitar os modos da representação na vida econômica na obra de Marx.

IHU On-Line - Qual é o principal legado da obra de Marx? Por que conhecê-la é importante para entendermos a sociedade contemporânea?
Édil Guedes –
Destacaria, em primeiro lugar, a sensibilidade e o empenho moral de Marx, verdadeiramente notáveis e assim reconhecidos mesmo por alguns de seus críticos mais contumazes, como, por exemplo, Karl Popper . Mas certamente o seu legado vai muito além dos motivos éticos exemplares de sua obra. A acuidade e a profundidade de sua crítica da sociabilidade mercantil-capitalista são ainda hoje difíceis de comparar e superar. A crítica do fetichismo, por exemplo, cujos sentidos e implicações nós nos esforçamos para compreender e revelar em nosso livro, mostra o alcance aquilino da visão de nosso autor, pois, em lugar de perder força diante do desenvolvimento da realidade socioeconômica, nunca se revelou tão pertinente e atual. Por outro lado, a fé no ser humano como demiurgo da própria realidade nunca se afirmou tão radicalmente como em Marx. Haver-se com os limites de um pensamento que projeta como nenhum outro a autoefetivação plena da humanidade em uma espécie de transcendência imanente da condição humana na e pela própria práxis histórica, sendo este um horizonte muito representativo do antropocentrismo moderno, constitui também uma tarefa que se impõe ao intelectual contemporâneo.

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