Edição 203 | 06 Novembro 2006

“Uma subjetividade que jamais cessa de inventar-se a si própria”

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IHU Online

Judith Revel é filósofa e leciona na Universidade de Paris, Panteon-Sorbonne. Especialista no pensamento francês contemporâneo e particularmente em Michael Foucault, sobre o qual dirigiu a edição italiana dos Ditos e Escritos (Feltrinelli, 1996-1998), prepara um livro sobre a genealogia do conceito de diferença na França após 1945. Sua última obra publicada é Michel Foucault: Expériences de la pensée [Experiências do pensamento]. Paris: Bordas, 2005. É membro da redação da revista italiana Posse, e participa também da revista Multitudes. A filósofa esteve recentemente no Brasil palestrando no III Colóquio Franco-Brasileiro de Filosofia da Educação: "Foucault, 80 anos", ocorrido de 9 a 11-10-2006 no Rio de Janeiro.

Por e-mail, Revel enfatizou, com exclusividade à IHU On-Line, que “a primeira contribuição de Foucault é ter rompido com um modelo de filosofia que era, até os anos 1950, hegemônico na França e de modo mais geral, na Europa. Este modelo era um pensamento fenomenológico que enraizava suas análises numa filosofia do sujeito de tradição cartesiana e que, mesmo após a leitura francesa, muito precoce, da filosofia alemã (...), continuou desenvolvendo temas, um método e pressupostos que Foucault recusou”. Revel acrescenta, ainda, que o pensamento de Foucault é surpreendente, pois é crítico e constituinte. “Creio que há em Foucault uma crítica muito espantosa das identidades: porque jamais se é qualquer coisa, porque não se é apenas um objeto no discurso, as práticas e as estratégias do poder, mas uma subjetividade que jamais cessa de inventar-se a si própria, de variar em relação consigo mesma”.

IHU On-Line - Quais são as maiores contribuições de Foucault que nos permitem compreender a sociedade pós-moderna?

Judith Revel
- Eu creio que a primeira contribuição de Foucault é de ter rompido com um modelo de filosofia que era, até os anos 1950, hegemônico na França e de modo mais geral, na Europa. Este modelo era um pensamento fenomenológico que enraizava suas análises numa filosofia do sujeito de tradição cartesiana e que, mesmo após a leitura francesa, muito precoce, da filosofia alemã – em particular, de maneira ao mesmo tempo diferenciada e, no entanto entrecruzada, de Hegel , de Husserl  e de Heidegger , continuou desenvolvendo temas, um método e pressupostos que Foucault recusou. Os temas eram essencialmente aqueles ligados ao postulado da centralidade da consciência soberana (em todas as suas formulações, do ego cogito cartesiano à infeliz consciência fenomenológica, ou às variações psicologizantes e literárias de Sartre ); o método era o de uma filosofia concebida como sistema fechado e estável e erigido em construção aistórica – mesmo quando ela pretendia ser uma filosofia da história - ; enfim, os pressupostos consistiam em afirmar que toda pesquisa da verdade não pode fazer a economia de uma referência a um fundo, a uma transcendência – ou ao caráter transcendental de seus a priori epistemológicos; e que a verdade em si mesma não pode ser submetida ao mesmo tipo de investigação que se aplica aos objetos do mundo.

Queria-se, então, que a verdade fosse pura, atemporal, absoluta e estável. Contra tudo isso, Foucault tentou um percurso diferente: historicizando as diferentes representações do sujeito – e do mundo no qual vive -, historicizando a própria noção de história e os paradigmas historiográficos aos quais esta deu lugar; recusando toda transcendência – o que não significa mergulhar no relativismo, mas redefinir ao mesmo tempo nossa relação com a verdade e a consistência que damos a esta última. A seguir, este trabalho, creio, tem sido importante pelo menos em três campos: o da análise dos discursos (Foucault acompanhava nisto um movimento bem mais amplo que se interessava pela linguagem, recusando ou descentralizando o sujeito, do novo romance ao estruturalismo; mas ele foi, creio eu, mais longe que eles, porque ele jamais se deixou encerrar pela noção de estrutura: ele sempre refletiu do interior e ao interior da história); o da análise dos poderes; o da análise da maneira pela qual os sujeitos, resistindo, se produzem a si mesmos – o que ele chamou de estética. Enfim, não se pode deixar de mencionar a dupla dimensão que Foucault faz muito rapidamente vibrar de maneira contemporânea, ao mesmo tempo: uma arqueologia (isto é, o questionamento de uma periodização histórica em função duma problematização dada, como, por exemplo, a idade clássica em função da loucura, ou o século XVIII em função do quadriculado epistemológico das ciências humanas); e uma genealogia (isto é, uma reversão do questionamento em direção ao nosso próprio presente, uma “ontologia da atualidade” sob a forma duma interrogação sobre as “formas da franquia possível)” – em suma, uma descoberta do que nós podemos ser a partir do que nó somos e do que nos fomos.

Derrida  está freqüentemente próximo a Foucault na crítica do pensamento da transcendência – o que Derrida chama de a grande “mitologia branca” – e na historicização das categorias que nos permitem representar o mundo e o sujeito no mundo; mas, eu creio que o que falta a Derrida, é a dimensão da genealogia. Ou antes: em Derrida, a genealogia é posterior à arqueologia, ela está nos últimos trabalhos. Em Foucault, a arqueologia e a genealogia são co-presentes, a fascinação do passado e o cuidado do presente são inseparáveis. Em Deleuze, no entanto, só se encontra uma genealogia – formidável, aliás. Mas nenhuma passagem pela arqueologia do moderno. É nisso que Foucault é surpreendente: seu pensamento é ao mesmo tempo crítico e constituinte.

IHU On-Line - Em que aspectos sua filosofia continua dando respaldo ao respeito da alteridade e voz aos diferentes discursos na sociedade?

Judith Revel
- Eu não sei se a palavra “respeito” é apropriada. Para Foucault, não se trata de ser gentil, generoso, moralmente tolerante. Trata-se de compreender que o “outro”, seja ele quem for, é sempre o outro do mesmo – isto é, literalmente dependente dele, definido por ele, modelado, nomeado, identificado e circunscrito por ele. O outro é uma invenção do mesmo, o louco é uma invenção do espírito são, o desencaminhado do cidadão honesto. Cada época traça limites à sua própria normalidade e designa dessa forma o além desse limite. Mas, para fazer de modo que este além não represente dano e seja governável, é preciso construí-lo como sua própria alteridade, produzir o saber, inventar o lugar físico. Os limites, os saberes, as práticas e os lugares podem, sim, mudar; os espaços simbólicos aos quais eles se aplicam (a loucura, a clínica, a normalidade social, a produção do discurso inteligente, a sexualidade...) podem, sim, variar segundo as periodizações e as culturas, mas o mecanismo é sempre o mesmo. O outro é ao mesmo tempo uma invenção, uma necessidade e um apêndice do poder.

IHU On-Line – A senhora afirma que a originalidade de Foucault é de ter sabido mostrar, ao mesmo tempo, em que medida qualquer transgressão nasceria do limite que a denunciasse, e podia, no entanto, tornar-se autônoma. Pode explicar melhor esta idéia?

Judith Revel
- É preciso prestar atenção ao termo “transgressão”, porque Foucault, que o toma provavelmente de Bataille no início dos anos 1960, o abandona rapidamente – precisamente porque a relação entre o limite e a transgressão do limite parece fechar-se num círculo dialético. A partir dos anos 1970, Foucault fala em revanche de “resistência”, ele afirma que a resistência, como prática da liberdade, se dá no próprio interior das relações de poder (e não fora do mesmo), e que, inversamente, as relações de poder se nutrem da liberdade das pessoas, ele consegue, apesar de tudo, quebrar a falsa simetria entre os dois termos. O poder é uma ação sobre a ação das pessoas: ela é sempre segunda, reativa, reprodutiva. Ao contrário, a prática da liberdade – o que Foucault descreve como uma produção de subjetividade, como uma invenção de si (unicamente de si, e de si com e através dos outros) – é ativa, produtiva, geradora, é uma criação. É nisso que a resistência, a prática da liberdade, a relação ética consigo delineiam o espaço de uma nova política que não seria mais somente aquela do poder: uma política que tomaria a forma de uma verdadeira ontologia.

IHU On-Line - Qual seria o papel político do homem que assume a produção de sua própria subjetividade e se constrói a si mesmo como uma obra de arte, como o afirma Foucault, inspirado em Nietzsche? Quais são as implicações desse protagonismo do sujeito pós-moderno na arena da democracia representativa?

Judith Revel
- Antes de perguntar-se qual poderia ser a ação política do sujeito pós-moderno que se constrói a si próprio, eu creio que é necessário compreender que aquilo em torno do qual o homem escolhe produzir-se, o que ele decide constituir como o espaço de sua própria produção, é estritamente ligado a uma periodização, a uma épistème, diria Foucault. É o que Foucault chama de o ethos. O espaço do ethos, o espaço da relação constituinte de si e dos outros muda na história. É preciso, então, antes de tudo perguntar-se qual é o ethos de nossa época. O que Foucault mostra muito bem para os gregos – esse ethos que passa por uma relação com os aphrodisia, e que mudará profundamente com a pastoral cristã – não vale mais em 1984 e menos ainda em 2006. Não se trata de se tornar novamente gregos, nem de pensar que eles foram mais admiráveis do que nós.

Trata-se precisamente de compreender o que nós não somos mais, a fim de nos perguntar, ao contrário, o que nós somos hoje. E, uma vez feito este diagnóstico, será preciso perguntar-nos o que nós podemos e queremos, ao contrário, tornar-nos. É isso, produzir-se a si mesmo – e cada um de nós o faz desde que resiste, desde que exerce seu poder incondicionado de liberdade, desde que ele escolhe afirmar uma diferença, criar um destaque. A dimensão coletiva que pode implicar uma tal produção subjetiva fascinava Foucault: ele não cessou de tentar compreender o que estava aí em jogo, em contextos e lugares diferentes, desde o GIP  até o Irã, ou ao movimento gay. Parece-me que as teorizações atuais na noção “spinoziana” de “multidão” - entendida como conjunto aberto de diferenças – embora aparentemente elas devam mais a Deleuze do que a Foucault , prolongam as análises ‘foucaultianas’ de maneira apaixonante. Uma multidão não é um “povo”, nem uma nação, nem um Estado, nem um partido. Spinoza  contra Hobbes , em suma: procura-se recusar toda dimensão coletiva que fosse fundada sobre um pressuposto de unidade (a unidade: o idêntico a si mesmo), que apagaria as diferenças e as variações singulares, a fim de constituir o “corpo” unitário da sociedade; ao contrário, afirma-se que é possível fazer surgirem ao infinito as diferenças, o múltiplo, o devir (porque cada diferença, no tempo, pode diferir não somente dos outros, mas também de si mesmo), e portanto, que isso não implica um espargimento, uma dissolução, um mal, a guerra de todos contra todos , à maneira hobbesiana. O que se chama, então, de o “comum”, contra o “coletivo” do contrato, contra a unificação/neutralização da vontade geral.

É evidente, neste contexto, que as teorias da representação política se tornam insustentáveis. Atenção: sem dúvida elas funcionaram – porque o pensamento político moderno funcionou durante três séculos e meio. Mas, se o pensamento francês pós-estruturalista nos faz sair do moderno, se o mundo não é mais governado por Estados-nações, mas por processos de governança mundial, não será preciso redefinir o funcionamento da democracia? Há no mundo um certo número de experimentações de democracia não-representativa (mas, ao contrário, absoluta, radical, direta, participativa...) que são interessantes de serem seguidas sob este ponto de vista... E poder-se-ia dizer a mesma coisa de certos movimentos – por exemplo, o movimento dos últimos anos pela paz contra a guerra no Iraque. Isso, sem dúvida, teria apaixonado Foucault.

IHU On-Line - Foucault compreendia o indivíduo como contingente, formado pelo peso da tradição moral, não sendo, por isso, verdadeiramente autônomo. Como é possível entender esta concepção ao lado da proposição de homem que se constrói? Não reside aqui uma contradição entre determinismo e autonomia?

Judith Revel
- Se você põe a questão desta maneira, você supõe que só se pode ser determinado ou autônomo: o determinismo e a liberdade se defrontam, eles se opõem e representam cada um o simétrico inverso do outro. Não é o que pensa Foucault: porque não se é livre numa espécie de fora do poder, no exterior das determinações que são as nossas, mas, ao contrário, dentro: porque não se trata de libertar-se das determinações que nos fazem ser o que somos, mas de fazer vibrar a liberdade. Em Foucault não há um pensamento da libertação, há uma ética da liberdade, o que não é a mesma coisa. E isso não é uma recusa de registrar o caráter concreto das relações de poder (o que lhe censuraram certos marxistas, por exemplo); trata-se mesmo do inverso: não há nada de mais concreto do que a resistência entendida como produção de subjetividade, como criação de linguagens, de afetos, de redes, como poder ontológico. É uma formidável criação de ser, mas ela se dá sempre no interior da história, das determinações sociais, econômicas, epistemológicas, políticas que sejam. Em Foucault, a ontologia tornou-se inteiramente imanente, isso é bastante spinozista. Então, quando sua questão insiste nas determinações morais, eu gostaria de dizer que a moral é uma das faces da história, mas não a única. Quando se faz a história dos sistemas de pensamento, como o faz Foucault, se historiciza o discurso da moral como o das ciências humanas ou da medicina, não querendo dizer que isso nos constitui num momento dado. E que é nas malhas dessa constituição, dessa determinação, que será preciso fazer lentamente formarem-se espaços de liberdade. Isso não quer dizer que a crítica da moralidade deva necessariamente gerar uma teorização da imoralidade ou da amoralidade, isso não teria nenhum sentido.

IHU On-Line - No que se refere à sexualidade, quais seriam os questionamentos mais profundos suscitados por Foucault? De que modo essas idéias oferecem um fundamento para a compreensão da diversidade sexual de nosso século?

Judith Revel
- A idéia de Foucault é simples, e, no entanto, ela implica que se mude radicalmente de perspectiva em relação à sexualidade. Em vez de pensar na sexualidade como um domínio de repressão, de obrigação, de interditos morais e/ou sociais, Foucault pergunta: como ocorre que em nosso espaço de pensamento a sexualidade – as práticas sexuais, a escolha sexual – se tenham tornado o fundamento de nossa identidade? Como acontece que nossa relação com o sexo diz o que nós somos? É que as relações de poder construíram a sexualidade como uma espécie de grande campo de identificação, de classificação, de normalização e de distribuição das singularidades. As singularidades – as que coabitam na multidão – amedrontam: é preciso reduzi-las a taxionomias eficazes. A identidade biológica de uma parte (masculino/feminino), as práticas sexuais e a escolha sexual do outro, permitem construir um sistema taxionômico eficaz no contexto dos biopoderes. A “diversidade sexual” não é fazer coisas estranhas e transgressivas. A verdadeira transgressão é reintroduzir liberdade nas malhas da taxionomia: não declarar mais sua identidade sexual, declarar-se “trans-gênico”, recusar deixar-se fechar num sistema de classificação binário (hétero/homossexual/lésbica, homem/mulher etc.). É jogar com as máscaras. É um pouco este sentido que têm hoje as leituras “queer” [excêntricas] de Foucault nos Estados Unidos. E o que é feito com a sexualidade poderia ser transposto à nacionalidade, à idade etc. Creio que há em Foucault uma crítica muito espantosa das identidades: porque jamais se é qualquer coisa, porque não se é apenas um objeto no discurso, as práticas e as estratégias do poder, mas uma subjetividade que jamais cessa de inventar-se a si própria, de variar em relação consigo mesma. Nem qualquer um, nem qualquer coisa, portanto. Deleuze teria falado de tornar-se subjetividade, tornar-se diferença. E não existe um privilégio da sexualidade em Foucault: ela é um terreno de investigação como qualquer outro, como o foram antes dela a economia dos discursos de saber ou a ciência da polícia. Ela é um espaço de problematização que, por diferenciação, nos obriga a pensar naquilo que nós somos.

IHU On-Line - O mês de maio de 1968, como um evento filosófico da mais alta importância para o futuro histórico do século XX, pode ser também creditado às idéias de Foucault? Em que sentido?

Judith Revel -
Eu creio efetivamente que 1968 foi importante porque é um pouco o acontecimento que torna visível a saída da modernidade, a crise das velhas categorias políticas da modernidade. Ao mesmo tempo, 1968 foi extremamente variado conforme os países – mais ou menos precoce, mais ou menos longo..., - e talvez seja um pouco redutor falar de 1968 sem entrar em detalhes. Digamos que a relação com a história (sob a forma de uma vontade radical de ruptura) e a relação com a atualidade (sob a forma de uma aspiração a um funcionamento social e político diferente) andaram a par com uma explosão extraordinária de criatividade, de liberdade, de invenção, de experimentação; e que as subjetividades que fizeram 1968 permitiram ver conjuntos de diferenças agenciadas em “comum”, singularidades reunidas em movimento, e não velhas modalidades de organização política coletivas... A contestação era igualmente produtiva, inventiva. Ela não estava somente encerrada numa relação dialética com o poder. Ela não queria o poder, ela queria exprimir seu próprio poder livremente. E isso era formidavelmente gostoso. Spinoza diz que, quando há produção de ser, as paixões são alegres... Em todo o caso, é a primeira tentativa de revolução na qual os revolucionários não querem ser um contrapoder, não querem tomar o Palácio de Inverno, mas querem reinventar o mundo. Toni Negri, que foi um dos líderes da contestação na Itália dos anos 1960-1970 e que é um formidável especialista de Spinoza – e um grande leitor de Foucault – diz com freqüência que os homens tentaram transformar a Cidade de Deus em cidade dos homens. Eu creio que ele vê corretamente – e é isso que 1968 nos deixa como herança: uma urgência da liberdade.

IHU On-Line - Pode-se dizer que a filosofia de Foucault exprime as diversas nuances e complexidades da sociedade pós-moderna, numa compreensão vattimiana da ausência de um fundamento (Grund) único?

Judith Revel
- O que é certo é que há atualmente na Europa e alhures leituras muito divergentes de Foucault: leituras estetizantes, políticas, liberais, de extrema esquerda, identitárias, heideggerianas, desconstrutivistas, relativistas, metafísicas, multitudinárias... E algumas entre elas reinstauram, creio, com base em Foucault, a idéia de uma unidade necessária ao fundamento da comunidade dos homens (por exemplo, segundo a noção de “vida”, que é muito central na segunda metade dos anos 1970). Reinstaura-se um fundamento com um novo vitalismo, um novo naturalismo – nos Estados Unidos, por vezes, com um novo identitarismo... Então, quando você me fala de Vattimo , eu não estou muito convencida: primeiro, porque isso me parece bem velho em relação à atualidade do pensamento de Foucault nos dias atuais, em relação ao mundo tal como ele é hoje, mas também porque em Vattimo, como em todos os outros membros do pensiero debole [pensamento débil] italiano (Rovatti, Cacciari, etc.), a crítica da metafísica continua sendo a de Heidegger – ou do Nietzsche de Heidegger – encerrada num pensamento do negativo, incapaz de construir e de inventar ou de experimentar o poder, persuadida de que é a experimentação do desastre que permitirá sair do fechamento. Como se o niilismo devesse ser necessariamente uma passagem obrigatória. Eu sempre detestei esse apiedar-se de si, essa fascinação pelo negativo, essas “paixões tristes”, diria Spinoza. E, em todo o caso, perguntemo-nos: saiu alguma coisa disso?

“Vattimo tem a tristeza dos pessimistas incuráveis”

Derrida não se deu conta: eu creio que a influência de Heidegger – que é evidente até nos anos 1980 – deixa finalmente seu lugar a uma interrogação política sobre os novos espaços de liberdade possíveis, sobre as experimentações possíveis, sobre uma expressão possível do poder subjetivo – eu penso em Políticas da amizade, por exemplo, ou em Espectros de Marx. Mas Vattimo... Ele foi um excelente leitor e comentador de Heidegger. Mas o que construiu ele? Em que pertence ele à atualidade de hoje? E que perspectivas abre ele a todos os que procuram resistir à injustiça, a exprimir indignação, a escavar as relações de poder a partir do interior, fazendo surgir possíveis sempre renovados? Vattimo tem a tristeza dos pessimistas incuráveis – e se entende isso, porque ele acabou por aceitar reingressar novamente no sistema da representação política, no parlamento europeu. É um pouco como Kojève, administrador da Comunidade européia após 1945: após o fim da história, não há mais que fazer senão ser gestor e consagrar-se à cerimônia japonesa do chá...
Para Foucault, no entanto, e para nós que continuamos a trabalhar em seu seguimento, há ainda uma história: a das lutas e do sofrimento dos homens, sem dúvida – porque o sofrimento, a humilhação e a exploração são intoleráveis -, mas também a das novas experimentações, subjetivas e políticas, criadoras e alegres. Uma ontologia em formação na história, através da história, ao mesmo tempo determinada (porque histórica) e livre (porque resistente). Você sabe, eu amo muito Blaise Pascal . Para mim, ler Foucault é um pouco uma história de aposta pascaliana: eu aposto no poder ontológico dos humanos.

IHU On-Line – A senhora gostaria de acrescentar algum aspecto não solicitado?

Judith Revel
- Eu creio que a América Latina, hoje, é um formidável laboratório de experimentação deste poder ontológico. Mas isso seria um outro discurso...

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