Edição 444 | 02 Junho 2014

A descoberta dos objetos e a experiência de uma “virada não humana”

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Ricardo Machado

Erick Felinto debate as possíveis aproximações teóricas entre os conceitos de “língua das coisas” e “agência”, de Walter Benjamin e Bruno Latour, respectivamente

Ao estabelecer atravessamentos entre as proposições teóricas de Walter Benjamin e Bruno Latour, Erick Felinto reconhece que a tarefa é muito delicada e trata do tema prudentemente. “Essa questão é muito complexa para se explorar aqui, e é um dos pontos centrais que pretendo desenvolver na palestra. A título de rápida introdução, posso dizer apenas que a ideia de uma ‘língua das coisas’ em Benjamin se aproxima, em aspectos interessantes, da proposição de uma ‘agência’ dos objetos no pensamento de Latour”, explica Felinto, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “É certo que essa valorização não antropocêntrica dos objetos não é mérito exclusivo de Latour. Eu diria que ela faz parte de certo espírito do tempo contemporâneo que poderíamos, talvez, caracterizar como uma ‘virada não humana’. Entretanto, Latour é talvez o autor que hoje elabora essa virada até suas últimas consequências e de forma mais sistemática. Importa dizer que não sou, obviamente, o único nem o primeiro autor a promover essa aproximação entre Benjamin e Latour”, complementa.

Ao recuperar o pensamento de Benjamin, o entrevistado ressalta que nem toda a tese inteligente do passado sobrevive incólume às transformações conjunturais contemporâneas. “Muitas vezes precisamos, é claro, reconfigurar ideias e conceitos para as condições específicas — sejam elas culturais, tecnológicas, políticas ou econômicas — do momento histórico. Todavia, o outro equívoco é considerar que esses pensadores não teriam absolutamente nada de relevante a nos ensinar sobre o presente”, avalia. Diante de um novo contexto de convívio com os objetos tecnológicos de que dispomos, nos afastamos cada vez mais do antropocentrismo, estabelecendo uma nova ecologia das relações entre homem e máquinas. “O fato de vivermos em um mundo onde os objetos estão cada vez mais interligados em redes e cada vez mais ‘inteligentes’ nos confronta nitidamente com uma situação em que não somos mais os únicos agentes legítimos da cultura e da sociedade. Num cenário em que as máquinas se comunicam automaticamente, muitas vezes quase sem intervenção humana, como descreve Friedrich Kittler, somos levados a questionar nossas ontologias hierárquicas e nossa posição de senhores da história”, aponta.

Erick Felinto de Oliveira é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ/UCLA e tem pós-doutorado em Comunicação pela Universität der Künste, Berlim. É pesquisador do CNPq e professor adjunto na UERJ, instituição em que realiza pesquisas sobre cinema e cibercultura. É autor de, entre outros, A religião das máquinas: ensaios sobre o imaginário da cibercultura (Porto Alegre: Sulina, 2005); Avatar: o futuro do cinema e a ecologia das imagens digitais (com Ivana Bentes. Porto Alegre: Sulina, 2010); A imagem espectral: cinema e fantasmagoria tecnológica (São Paulo: Ateliê Editorial, 2008); Silêncio de Deus, Silêncio dos Homens: Babel e a Sobrevivência do Sagrado na Literatura Moderna (Porto Alegre: Sulina, 2008); e O Explorador de Abismos: Vilém Flusser e o Pós-Humanismo (com Lucia Santaella. São Paulo: Paulus, 2012). 

O pesquisador estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU no dia 09 de junho de 2014, proferindo a conferência Meio, Mediação, Agência: A Descoberta dos Objetos em Walter Benjamin e Bruno Latour, a partir das 19h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. O evento integra a programação do III Seminário em preparação ao XIV Simpósio Internacional IHU – Revoluções tecnocientíficas, culturas, indivíduos e sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea. Veja a programação do Simpósio no link http://bit.ly/XIVSIHU.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Qual a importância do pensamento de Walter Benjamin  para compreendermos o século XX e o contexto tecnocultural em que estamos inseridos atualmente?

Erick Felinto – Existem dois equívocos que ainda grassam ocasionalmente pelas ciências humanas. O primeiro é achar que todas as ideias de grandes pensadores do passado podem ser aplicadas, de forma direta e sem reelaboração, ao estado de coisas do presente. De forma especialmente acentuada no campo das mutações culturais e tecnológicas, é preciso reconhecer que nem toda tese inteligente do passado sobrevive incólume às transformações do tempo. E muitas vezes precisamos, é claro, reconfigurar ideias e conceitos para as condições específicas — sejam elas culturais, tecnológicas, políticas ou econômicas — do momento histórico. Todavia, o outro equívoco é considerar que esses pensadores não teriam absolutamente nada de relevante a nos ensinar sobre o presente. Sim, Benjamin não viveu, assim como Simmel , Krakauer  e muitos outros grandes analistas da modernidade, a incrível onda de transformações tecnológicas, sociais e culturais das últimas décadas. Contudo, o que caracteriza uma teoria forte é sua capacidade “preditiva” e sua resiliência temporal. No caso de Benjamin, que teve intuições extraordinárias a respeito das mídias que começavam a se disseminar em seu tempo (rádio, cinema, etc.), essa dimensão “profética” do pensamento é atestada pelo interesse crescente que ele continua a angariar na era digital. 

 

IHU On-Line – De que maneira o ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica ganhou novo fôlego na cultura digital?

Erick Felinto – Ele se tornou objeto de uma fantástica coletânea de ensaios organizada por Hans Ulrich Gumbrecht  e Michael Marrinan , Mapping Benjamin: the Work of Art in the Digital Age (Stanford: Stanford University Press, 2003). Nesse volume, autores como Norbert Bolz , Paul Zumthor  e Beatriz Sarlo  se dedicam a repensar o célebre ensaio no contexto da cultura digital. E, para além disso, o volume de referências que se faz a este ensaio em outros artigos e livros dedicados a investigar a cibercultura é simplesmente assombroso. Todavia, isso também tem um lado problemático. No campo dos estudos de comunicação, por exemplo, a impressão que se tem é que Benjamin se tornou autor de um texto só. A canonização desse ensaio gerou uma unanimidade e uma unilateralidade de perspectivas sobre o pensamento benjaminiano que podem ser extremamente perigosas. Por causa de nossa insensata insistência na delimitação de fronteiras epistemológicas precisas, acabamos lendo apenas os trabalhos de Benjamin que parecem abordar temáticas “adequadas” ao horizonte comunicacional. Com isso, toda uma dimensão importante do pensamento do autor — explorada em outros campos, como a literatura e a filosofia, por exemplo — escapou quase que por completo aos nossos pesquisadores. Benjamin foi picotado em diferentes pedacinhos pelas várias áreas das ciências humanas, dificultando uma visão de conjunto fundamental para entendê-lo adequadamente. Sem dúvida, ele é extremamente popular em todas essas áreas, mas sua popularidade também é, em muitos sentidos, uma maldição. Por vezes, quando alguém encontra uma referência a Benjamin em um trabalho acadêmico, já começa a olhá-lo com certa desconfiança, pois sabe que vai encontrar — e muitas vezes está correto — a sempre idêntica visão estereotipada, unilateral e monótona do pensador alemão. Ainda que constituindo um texto fundamental, o trabalho sobre a obra de arte representa uma parcela muito pequena da reflexão de Benjamin, e não necessariamente a mais importante. Apesar de tudo isso, esse ensaio continua, em certos aspectos, bastante atual. Como afirma Mark Hansen  a respeito do texto em seu New Philosophy for New Media (Massachusetts: MIT Press, 2004) “as reflexões de Benjamin sobre o meio (medium) nunca foram tão urgentes como agora, no contexto de afirmativas como a de que, com a digitalização, os meios se tornaram inteiramente e bidirecionalmente intercambiáveis”.

 

IHU On-Line – Por que o tema da “aura” é um ponto polêmico nas discussões em torno de Walter Benjamin?

Erick Felinto – O tema da aura se tornou polêmico por uma série de razões. Por exemplo, a suposta ambiguidade de Benjamin em relação ao conceito (postura saudosista ou afirmativa das potencialidades dos novos meios?) ou o fato de que a noção de reprodutibilidade técnica é drasticamente reconfigurada no contexto contemporâneo. Porém, existe a possibilidade de se pensar o conceito de aura tanto em um sentido mais restrito, possivelmente até equivocado, como faz Benjamin especificamente no ensaio sobre a obra de arte, como em outro sentido mais complexo, amplo, encontrado em escritos como “Pequena História da Fotografia” ou na “Infância Berlinense”. Miriam Hansen  detalhou esse outro entendimento do conceito num belíssimo ensaio sobre Benjamin. Em vez de uma leitura unicamente estética dessa noção, ela sugere uma interpretação mais ampla, ao mesmo tempo antropológica, perceptual-mnemônica e visionária. Nesse sentido, a aura seria um conceito valioso e importante para pensarmos formas positivas e afirmativas de lidar com a experiência no contexto dos novos meios tecnológicos.

 

IHU On-Line – Qual é, exatamente, a crítica de Bruno Latour à obra de Walter Benjamin? Nesse sentido, de que maneira se reduz o pensamento de Benjamin à Escola de Frankfurt? Aliás, como a obra de Benjamin tensionou a perspectiva frankfurtiana?

Erick Felinto – É impossível descrever, aqui, a totalidade das críticas de Bruno Latour , pois, para o francês, Benjamin se equivocou em TODOS os domínios abordados no ensaio sobre a obra de arte — da religião à técnica, à economia e à política. Todavia, há que se ler o texto de Latour e Hennion  com alguma margem de desconfiança. Latour é um autor que utiliza a polêmica como forma de autopromoção. Isso não é automaticamente um dado negativo — muitos pensadores lançam mão desse recurso —, mas nos convida a ler certas afirmativas de Latour com um pé atrás (por exemplo, sua surpresa quanto ao fato de que alguém, hoje, ainda possa “levar a sério a filosofia da técnica de Heidegger ”). Latour é um grande pensador e o texto é interessantíssimo, mas alguns de seus argumentos são unilaterais e pouco desenvolvidos. Há fundamento em algumas dessas críticas, mas por vezes parecem ser desenvolvidas no ensaio com rapidez excessiva. Vamos nos limitar apenas a apresentar a crítica latouriana à compreensão de Benjamin sobre a religião, que me parece a mais consistente. Segundo Latour, o culto rendido à imagem oculta de Deus pode ser uma boa definição da idolatria, mas não da religião, como quer Benjamin. Em outras palavras, a aura não seria fenômeno religioso. Perder o valor de fetiche, explica Latour, é perder algo que nunca foi sagrado em primeiro lugar. Latour ainda afirma que a técnica não suprime as distâncias, mas sim as cria (algo que mereceria, porém, uma discussão mais extensa e maior complexificação). Entretanto, é difícil concordar com Latour quando afirma que Benjamin produziu apenas uma “complacente denúncia da modernidade”, como supostamente seria o caso dos outros frankfurtianos. 

 

IHU On-Line – Como o pensamento de Benjamin se liga aos princípios da teoria ator-rede da Latour?

Erick Felinto – Essa questão é muito complexa para se explorar aqui, e é um dos pontos centrais que pretendo desenvolver na palestra. A título de rápida introdução, posso dizer apenas que a ideia de uma “língua das coisas” em Benjamin se aproxima, em aspectos interessantes, da proposição de uma “agência” dos objetos no pensamento de Latour. É certo que essa valorização não antropocêntrica dos objetos não é mérito exclusivo de Latour. Eu diria que ela faz parte de certo espírito do tempo contemporâneo que poderíamos, talvez, caracterizar como uma “virada não humana”. Entretanto, Latour é talvez o autor que hoje elabora essa virada até suas últimas consequências e de forma mais sistemática. Importa dizer que não sou, obviamente, o único nem o primeiro autor a promover essa aproximação entre Benjamin e Latour.

 

IHU On-Line – No que corresponde a meio, mediação e agenciamento, quais são as diferenças entre “se comunicar” e “comunicar algo”?

Erick Felinto – Outra questão complexa para desenvolver aqui. Grosso modo, poderíamos dizer que Benjamin estabelece uma importante distinção entre aquilo que se comunica na (in) linguagem e aquilo que se comunica através (durch) da linguagem. O segundo sentido nós conhecemos bem: a língua comunica algo que é “exterior” a ela, ou seja, mensagens que falam sobre o mundo. Todavia, na primeira ideia apreendemos algo novo: a linguagem não apenas comunica algo externo a si (discorre sobre o mundo), mas comunica a si própria, ou seja, sua própria medialidade, sua própria “materialidade” (ou ao menos assim eu entendo a noção benjaminiana). Isso quer dizer que, em todo ato comunicativo, existe uma pré-condição, que é esse caráter expressivo da linguagem como “medium”, anterior mesmo à comunicação de qualquer significado. Isso é importante, pois significa que devemos estar atentos não apenas aos sentidos que são veiculados em atos comunicativos, mas também à materialidade que é a condição da expressão desses sentidos.

 

IHU On-Line – Como os objetos (artísticos e técnicos) que dispomos e fazemos uso na tecnocultura tensionam o privilégio ontológico do homem como centro do universo? 

Erick Felinto – O fato de vivermos em um mundo onde os objetos estão cada vez mais interligados em redes e cada vez mais “inteligentes” nos confronta nitidamente com uma situação em que não somos mais os únicos agentes legítimos da cultura e da sociedade. Num cenário em que as máquinas se comunicam automaticamente, muitas vezes quase sem intervenção humana, como descreve Friedrich Kittler , somos levados a questionar nossas ontologias hierárquicas e nossa posição de senhores da história.

 

IHU On-Line – Como as perspectivas de Benjamin e Latour configuram-se olhares “antimodernos”?

Erick Felinto – Eles desfazem a ilusão de que a modernidade logrou realizar a propalada separação entre natureza e cultura. Ambos apontam para um mundo híbrido, bem diferente daquele preconizado pela racionalidade moderna, na qual cada coisa, cada ser, teria seu devido lugar numa taxonomia precisa. Nesse aspecto, sem dúvida, Benjamin e Latour estão muito próximos. Se Latour dissolve a separação entre natureza e cultura, Benjamin propõe um modelo de história natural (Naturgeschichte) no qual natureza e cultura se interpenetram e determinam continuamente. Um modelo de história essencialmente “não humano”. Vilém Flusser  foi outro pensador que se esforçou em desmontar essa dicotomia.

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Erick Felinto – Acho importante assinalar que não sou filósofo e não estou interessado em fazer uma reconstituição detalhada e precisa do pensamento de Benjamin ou mesmo de Latour. O que me interessa é como determinadas de suas ideias podem nos ajudar a pensar questões do presente ou aperfeiçoar nossas epistemologias. Mais que fidelidade aos autores, interessa-me convocá-los e repensá-los a partir de perspectivas específicas nossas, e não apenas no horizonte da comunicação.

 

Leia mais...

- A invenção de um mundo pelas imagens sintéticas. Entrevista com Erick Felinto publicada na edição 419 da IHU On-Line, de 20-05-2013;

Um teórico barroco? Entrevista com Erick Felinto publicada na edição 399 da IHU On-Line, de 20-08-2012; 

 – Um futuro complexo, híbrido, incerto e heterogêneo. Entrevista com Erick Felinto publicada na edição 375 da IHU On-Line, de 03-10-2011;

 – A era da memória total e do esquecimento contínuo. Entrevista com Erick Felinto publicada na edição 368 da IHU On-Line, de 04-07-2011.

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