Edição 444 | 02 Junho 2014

A humanidade condensada na literatura

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Ricardo Machado

Alfredo Santiago Culleton debate o papel da literatura na relação entre a Filosofia e o Direito

“A Literatura é uma maneira muito própria de pensar, provocar e formular os grandes conflitos humanos”, aponta o professor Alfredo Santiago Culleton, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Ele sustenta que as obras literárias têm o privilégio de envolver o leitor com imagens e sensações diferenciadas, que marcam a memória e o imaginário de determinadas culturas. “A Filosofia e o Direito têm na Literatura um material privilegiado de trabalho porque é aí que se condensa a humanidade como ideia. A própria revelação cristã é literária, a tradição judaica é literária, a cultura ocidental é literária por excelência”, avalia. 

De acordo com Alfredo, a literatura nos auxilia a pensar os grandes temas humanos que o Direito deve considerar ao formular suas regras de ordenamento social. “A nossa literatura nos evidencia condições humanas que nos constituem, como é o caso de que somos capazes de condenar injustamente. A literatura nos mostra infinitos casos assim, o Direito terá que dar conta de mecanismos que considerem esta possibilidade”, argumenta. “Literatura não é Filosofia, assim como não o é o Direito ou a Psicánalise. São modos de compreensão do mundo diferentes, porém podem se enriquecer mutuamente. Cada tempo terá que pensar a odisseia de querer construir o próprio destino que o Homero nos propõe; cada tempo terá que pensar como deixar de ser escravo e se tornar livre que o Antigo Testamento nos traz; cada tempo terá que pensar a condenação do inocente; cada tempo terá que pensar a justa condenação; cada tempo terá que pensar a ilusão de um bom combate; cada tempo terá que pensar morrer de amor; cada tempo terá que pensar a injustiça”, pondera. 

Alfredo Santiago Culleton possui graduação em Filosofia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI e mestrado e doutorado também em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFGRS. Concluiu seu pós-doutorado na área na Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos. Atualmente é coordenador do Programa de Pós-Gradução em Filosofia da Unisinos e vice-presidente Société Internationale Pour Letude de La Philosophie Médiévale (SIEPM), e pesquisa especialmente a Filosofia Medieval e o Direito pré-moderno. É autor, entre outras obras, de Ockham e a lei natural (Florianópolis: EdUFSC, 2011).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Como se dão as relações entre Direito e Filosofia? Que racionalidade a Filosofia propõe ao direito?

Alfredo Culleton - A norma, a obrigação, o poder e a proibição que desde sempre vivem em intimidade com a Filosofia, com esse esforço de dar razões, de evidenciar as razões que sustentam esse aparelho conceitual, qual seja, o Direito. Ao longo do tempo foram muito diversos e de intensidade variada o diálogo que a Filosofia tem estabelecido com o Direito, mas certamente nunca deixaram de se comunicar e ouvir. 

 

IHU On-Line - Em que medida e como a literatura estabelece o diálogo entre o Direito e a Filosofia? Qual a importância desta transdisciplinaridade?

Alfredo Culleton - A Literatura é uma maneira muito própria de pensar, provocar e formular os grandes conflitos humanos. A Literatura o faz de uma maneira privilegiada porque envolve o leitor com imagens e sensações diferenciadas que marcam a memória e o imaginário de uma cultura constituindo o seu universo de valores. A Filosofia e o Direito têm na Literatura um material privilegiado de trabalho porque é aí que se condensa a humanidade como ideia. A própria revelação cristã é literária, a tradição judaica é literária, a cultura ocidental é literária por excelência. 

 

IHU On-Line - Como alguns textos da tragédia Grega continuam atuais no sentido de entendermos as relações que se estabelecem entre Direito e sociedade? Em que medida as lógicas do justo e do injusto de tais obras literárias correspondem às dinâmicas jurídicas atuais?

Alfredo Culleton - Herdamos dessas tradições grega, judaica e cristã os valores fundantes da nossa civilização, nos quais estão gravadas compreensões de certo e errado, justo e injusto, que nos marcam como cultura. Temos que tentar compatibilizar essa tradição com o direito, enquanto ciência contemporânea do justo e injusto nesta ou naquela sociedade humana. A mediação deve ser feita pela Filosofia e por outras ciências auxiliares, como a Sociologia, a Política, a Demografia, a História, entre outras. A Literatura nos auxilia a pensar os grandes temas humanos que o Direito deve levar em consideração na hora de formular as suas propostas de ordenamento social. A nossa literatura nos evidencia condições humanas que nos constituem, como é o caso de que somos capazes de condenar injustamente. A literatura nos mostra infinitos casos assim, o direito terá que dar conta de mecanismos que considerem esta possibilidade.

 

IHU On-Line - O que a obra “Prometeu acorrentado”, de Ésquilo , propõe de discussão em termos de ética e autonomia, uma vez que ele, mesmo tendo levado o poder do fogo aos homens — razão pela qual ele foi expulso por Zeus — foi condenado a ser bicado diariamente no fígado por uma águia? Como isso se interliga ao Direito?

Alfredo Culleton - O Direito, como é entendido na modernidade, é uma espécie de apropriação do certo e errado pelos homens. Na cidade, já não serão os deuses nem os sacerdotes aqueles que determinarão o justo e o injusto, e isso é bom, é autonomia e maturidade da humanidade. Mas, ao mesmo tempo, o Direito é vítima de si mesmo; sabe, desde os romanos com o seu summum ius summa iniuria, que a máxima justiça acaba sendo máxima injustiça, mas abrir mão disso é abrir mão de todo um processo de autonomia e pretensão de tornar mais racional e universal o que seja justo.

 

IHU On-Line - Em “Antígona”, de Sófocles, a protagonista se insurge às leis dos homens, pois as considera contrárias às leis divinas e é condenada à morte, entretanto, a população apoia a atitude de Antígona. O rei Creonte  mostra sua vaidade, ao considerar que é o único que tem o direito de decidir e governar. Tendo em vista o cenário apresentado nessa obra, como, a partir da Filosofia, podemos olhar as práticas da Justiça como sendo o único poder capaz de decidir pelo certo e errado? O que está em discussão nessa obra?

Alfredo Culleton - O que se discute é se uma lei pode ser injusta. Isso é magnífico. É um pulo civilizatório. Achar que as leis da autoridade podem ser questionadas desde um outro lugar que não seja o poder nem o interesse pessoal ou corporativo é subversão. Em algum momento alguém pensou que o certo e o errado podiam não mais depender de um deus, de uma força ou de um capricho, mas que poderiam depender da razão, de algo que está em todos e que pode considerar o bem comum universalmente.

 

IHU On-Line - Que diferenças existem entre os conceitos de literatura na Grécia Antiga e hoje? O senhor concorda com a crítica platônica aos poetas de que a literatura funcionaria como uma espécie de ferramenta de ilusão, à medida que o escritor utiliza os personagens para dizer o que quer?

Alfredo Culleton - Toda comunicação, especialmente a artística e literária, se completam no leitor ou espectador. Dependem de interpretação para ser e se tornam autônomas no que diz respeito ao autor. De tal maneira que pode ser ‘ferramenta de ilusão’ se o leitor busca isso ou não estiver preparado. A ler e entender os textos se aprende, e não se trata de estar alfabetizado. Trata-se de entender os conflitos que estão postos, os valores em jogo e o novo desse texto.

 

IHU On-Line - De modo geral, podemos pensar os aspectos éticos concernentes ao campo da literatura como exemplos dos modelos de racionalidades das épocas correspondentes às publicações? Em que medida as obras revelam aspectos filosóficos das sociedades a que correspondem?

Alfredo Culleton - Literatura não é Filosofia, assim como não o é o Direito ou a Psicanálise. São modos de compreensão do mundo diferentes, porém podem se enriquecer mutuamente. A Literatura, literalmente, nos dá o que pensar; pensar, diz o Abrão Slavutzky , é transpor limites, e a Literatura nos evidencia o mundo e nos formula limites. A Filosofia ajuda a pensar bem, corretamente, a distinguir e a ver com mais clareza, mas são âmbitos diferentes. A Literatura é entretenimento e humanidade condensada. O Ulisses  com as Sereias, a saída do Egito, o Cristo na Cruz, os infernos de Dante , o Quixote e os seus moinhos , Romeu e Julieta, o Rodion Raskólnikov  com a machadinha na mão, isso está fora de qualquer época. Cada época terá que pensar isso que a Literatura traz já sem tempo. Cada tempo terá que pensar a odisseia de querer construir o próprio destino que o Homero nos propõe; cada tempo terá que pensar como deixar de ser escravo e se tornar livre que o Antigo Testamento nos traz; cada tempo terá que pensar a condenação do inocente; cada tempo terá que pensar a justa condenação; cada tempo terá que pensar a ilusão de um bom combate; cada tempo terá que pensar morrer de amor; cada tempo terá que pensar a injustiça. 

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Alfredo Culleton - Viver é muito perigoso.

 

Leia mais...

- Em nome de Deus: um retrato de época. Edição número 160, Revista IHU On-Line, de 17-10-2005; 

- Ninguém aceita a morte por suposição. Edição número 269, Revista IHU On-Line, de 18-08-2008; 

- A interculturalidade medieval. Edição número 198, Revista IHU On-Line, de 02-10-2007; 

- IHU Repórter, perfil de Alfredo Culleton, na edição 343 da IHU On-Line, de 13-09-2010;

- “A verdade é uma formulação de linguagem”. Edição número 363, de 30-05-2011;

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