Edição 444 | 02 Junho 2014

A palavra e a construção da verdade e da realidade no Direito

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Ricardo Machado | Tradução: Moisés Sbardelotto

O pesquisador espanhol José Calvo González pensa o fazer jurídico não em oposição à Literatura, mas um “Direito com Literatura”

As palavras constroem fatos, realidades, verossimilhanças. O Direito e a Literatura edificam seus próprios mundos por meio das palavras, que se acomodam umas às outras e formam seus construtos de realidade social. Antes de serem conceitos aparentemente distantes, são modos de interação. “Ao panorama de interseções mencionado, propus recentemente uma ampliação no que chamo de Direito ‘com’ Literatura. Isso porque eu entendo que Direito e Literatura se relacionam igualmente pela sua índole instituinte do social; ambos têm a capacidade de instituir imaginários sociais, participam da mesma poética. Desse ponto de vista, o Direito aproveita categorias literárias como oralidade e escritura, leitura, reescritura, releitura, intertextualidade, estética da autoridade”, pondera José Calvo González, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

De acordo com José Calvo, ao se fazer interpretações é preciso superar uma visão hermenêutica de tradução das normas jurídicas. “A compreensão do Direito, assim como da Literatura, não se produz senão através de níveis de leitura, que variam desde o ingênuo ao exemplar. Neste — mesmo sequer como ideia regulativa —, a compreensão integral se produz quando se dinamizaram todos os elementos culturais de uma tradição intertextual em que a comunidade jurídica foi estabelecendo autoridades. O estado de funcionamento processual da comunidade jurídico-interpretativa é semelhante a um sistema de autoridades pertinentes e aceitas ao longo de uma tradição de dialogismo intertextual”, explica. Para o professor, a tradição discursiva estabeleceu certo parâmetro epistemológico com relação ao conceito de verdade, tensionada pelas narrativas. “Essas narrativas (as jurídicas) não são nem verdadeiras, nem falsas. Se são alguma coisa, são ‘verossímeis’, ou não. O estatuto da verdade durante o processo, e do que é declarado como ‘verdade’ no seu término, não é de uma ‘verdade forte e segura’, mas sim de uma verdade provada sempre dentro do provável, pois não é possível provar o improvável. Isto é, a verdade no Direito é sempre e apenas verdade frágil e provável; ou seja, sempre e apenas verossimilhança”, argumenta. 

José Calvo González é doutor em Direito, pesquisador e professor Catedrático da Universidade de Málaga, na Espanha. Além disso, é magistrado suplente do Tribunal Superior de Andalucía. É autor de diversos artigos, entre eles, Verdad de la verdad judicial e La controversia fáctica. Contribución al estudio de la quaestio facti desde un enfoque narrativista del Derecho, disponíveis no site pessoal do professor, em http://bit.ly/1gE3DHm. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Tendo em conta a questão da interpretação, como Literatura e Direito se encontram? Como interagem e que importância a Literatura tem nas questões do Direito?

José Calvo González – Direito e Literatura interagem de vários modos. Tradicionalmente, assinalaram-se três: Direito "na" Literatura, Direito "da" Literatura e Direito "como" Literatura. Deles, o segundo — Direito da Literatura — tornou-se independente, formando, em alguns sistemas jurídicos, uma disciplina autônoma relacionada com tudo o que se refere à edição de obras literárias (e não literárias também) e aos meios de proteção jurídica do direito dos autores. Quanto ao Direito "na" Literatura, esse encontro indaga a presença do jurídico em diversos gêneros literários (poesia, romance, teatro) e possui, a meu modo de ver, uma utilidade fundamentalmente instrumental. A do Direito "como" Literatura seria de natureza estrutural. Desenvolveu-se por meio da explicação do Direito em termos narrativos. É o que se conhece como narrative jurisprudence, ou narrativismo jurídico. O sistema jurídico está integrado por narrações, relatos e histórias. Existem autores que admitem essa tese, mas que fazem um uso muito elementar dela, e outros que aprofundam mais e assumem postulados teóricos da teoria narratológica para pôr de manifesto as estruturas narrativas presentes no Direito e em cada um dos seus momentos produtivos, interpretativos e aplicativos, de modo que apresentam a teoria narrativista com vocação à Teoria do Direito. Acredito que esse é o meu caso, ou ao menos a minha vontade. 

Direito com literatura

Por outro lado, ao panorama de interseções mencionado, propus recentemente uma ampliação no que chamo de Direito "com" Literatura. Isso porque eu entendo que Direito e Literatura se relacionam igualmente pela sua índole instituinte do social; ambos têm a capacidade de instituir imaginários sociais, participam da mesma poética. Desse ponto de vista, o Direito aproveita categorias literárias como oralidade e escritura, leitura, reescritura, releitura, intertextualidade, estética da autoridade, etc. É um campo em que se recolhiam desde os desvios linguísticos do Direito até a explicação dos processos de positivação jurídica, e que também levaria em conta a realidade dos novos desafios levantados à Ciência do Direito pela crise do paradigma da modernidade, tais como a complexidade e o rizoma .

 

IHU On-Line – Em que medida a interpretação jurídica funciona como o principal fator do fazer jurídico? Do que se trata a teoria da interpretação?

José Calvo González – Tradicionalmente, distinguiram-se os três momentos aos que aludi antes: produção, interpretação e aplicação. É uma diferenciação muito pedagógica, mas pouco realista. No momento da gênese produtiva do Direito, o legislador é um intérprete social, e o juiz, no momento de aplicar o Direito, realiza uma interpretação acerca de fatos e normas. A interpretação é, portanto, o denominador comum na prática de ambos os operadores jurídicos e também, de modo evidente, tratando-se de operadores teóricos. Também tem sido tradicional considerar que a tarefa do intérprete jurídico consistia na hermenêutica das normas. O intérprete como hermeneuta, como aquele que diz o que as normas dizem. Hoje, no entanto, o moderno horizonte da teoria da interpretação jurídica abrange igualmente a interpretação teórica e operativa dos fatos. Nesse ponto, a Teoria narrativista do Direito fez contribuições de interesse mediante a construção do conceito de "coerência narrativa". É fundamental não só se perguntar sobre a "coerência normativa" e indagar os seus problemas e consequências, mas também fazer isso, e fazê-lo com caráter prévio, sobretudo o que diz respeito à inteligibilidade do substrato fático, à construção narrativa e seu regime de verdade como outorgamento do sentido em torno da fixação da ocorrência histórica de um evento. Essa nova perspectiva abriu uma concepção mais global ou holística da substância e dos fenômenos da interpretação no campo do Direito.

 

IHU On-Line – Considerando a ideia de que a leitura de um texto é, em outro nível, a leitura de um sistema de textos, como o sistema de textos da Literatura e o sistema de textos do Direito estão relacionados?

José Calvo González – Penso que a resposta se encontra em um dos perfis daquilo que eu apresentei com a ideia de uma "Cultura literária do Direito". Literatura e Direito precisam de uma sintaxe cultural. A compreensão do Direito, assim como a da Literatura, não se produz senão através de níveis de leitura, que variam desde o ingênuo ao exemplar. Neste — mesmo sequer como ideia regulativa —, a compreensão integral se produz quando se dinamizaram todos os elementos culturais de uma tradição intertextual em que a comunidade jurídica foi estabelecendo autoridades. O estado de funcionamento processual da comunidade jurídico-interpretativa é semelhante a um sistema de autoridades pertinentes e aceitas ao longo de uma tradição de dialogismo intertextual.

 

IHU On-Line – Na Literatura, mais importante que corresponder à realidade, os textos precisam ser verossímeis dentro da narrativa proposta. Em última medida, o que se julga no Direito são as peças do processo jurídico, portanto, os textos. Como a questão da verossimilhança se torna um eixo importante para pensar estes dois campos?

José Calvo González – O meu interesse pela verossimilhança no campo do Direito se situa na prova de fatos difíceis e explora a admissibilidade probabilística do que eu denominei de "verdades difíceis". Mas a última parte da pergunta levanta outro assunto. Naturalmente, na "realidade" normativa textual, isto é, no texto das proposições normativas, não há presença de verdade; o predicado das normas não é nem verdadeiro nem falso. E, nesse sentido, com efeito, a verossimilhança se converte em um eixo importante para repensar coincidências entre o Direito e a Literatura. Na minha opinião, não existe literatura "realista" oposta à literatura "não realista" como inverossímil. Toda literatura tem de ser verossímil, ou não será. A verossimilhança é alcançada mediante uma construção em que intervêm fatores de sequencialidade temporal e espacial, além de outros, que levam a uma desembocadura no verossímil. São todos esses fatores que fazem com que tenhamos acesso a uma compreensão do que foi que "verossimilmente" aconteceu. Essa mecânica é chamada de "ficcionalidade". É um erro acreditar que "ficção" significa apenas engano. Significa principalmente artifício (ars fictio); o construto hermenêutico que ordena tempo e espaço em um continuum capaz de levar à promessa de sentido. O mesmo acontece no Direito processual, tanto em etapas de diligências de averiguação de fato supostamente delitivo quanto em atuações da autoridade judicial instrutora, e também no estágio processual reservado à apresentação de provas, que sempre é um juízo de probabilidade, isto é, acerca do que se pode provar. O argumento (relato) probatório sobre a "realidade" de um fato não concerne tanto à verdade — mais ainda, não precisa ser verdade necessariamente — quanto à verossimilhança do que foi contado como verdade.

 

IHU On-Line – Nesse sentido, se julgam os casos ocorridos — os fatos — ou as narrativas — a verossimilhança? Como a interpretação se torna um procedimento-chave neste contexto?

José Calvo González – Os fatos estão "perdidos". Para julgá-los, situamo-nos ex post facto. O único modo de "recuperá-los" é através das narrações que os evocam. Essas narrativas não são nem verdadeiras, nem falsas. Se são alguma coisa, são "verossímeis", ou não. O estatuto da verdade durante o processo, e do que é declarado como "verdade" no seu término, não é de uma "verdade forte e segura", mas sim de uma verdade provada sempre dentro do provável, pois não é possível provar o improvável. Isto é, a verdade no Direito é sempre e apenas verdade frágil e provável; ou seja, sempre e apenas verossimilhança.

 

IHU On-Line – Diante de tal contexto podemos afirmar, então, que tanto na Literatura quanto no Direito a palavra é substanciada pela própria palavra? 

José Calvo González – Em matéria de interpretação de fatos, que é sobre o que estamos conversando, sem sombra de dúvida. Os fatos só têm "realidade" como parte de um discurso, que, para mim, também é um discurso de tipo narrativo. Os fatos são as palavras com que se conta acerca deles. Nós, juristas, transformamos o que cremos, ou nos convém acreditar, que foram os fatos em palavras e, daí para a frente, só debatemos sobre palavras.

 

IHU On-Line – Quando questões jurídicas estão expostas em uma obra literária — como Dom Quixote, por exemplo — podemos pensar que ela é a face “cômica” do fazer jurídico, enquanto o Direito formal é a parte séria? Como se diferenciam as liberdades de expressão cômica e séria? Que significações produzem?

José Calvo González – Sério — ou trágico — versus cômico — ou festivo — como uma dicotomia excessivamente rígida. Lembra muito as máscaras do teatro; Melpômene, a Tragédia, desfeita em uma expressão de profunda dor e pranto comovido, frente à Talia, a Comédia, hilariante e superficial. Não obstante, como dizia Ortega y Gasset , sem vítima, não há comédia. Do ponto de vista da investigação sobre temas de Direito e Literatura, é muito mais difícil trabalhar obras cômicas do que trágicas. Além disso, o Direito formal às vezes é tão mortalmente sério que não convém descartar a oportunidade de "rir" dele. Por isso, juristas tão "sérios" como Ihering  não o evitaram. Em algumas ocasiões, também, que não faltam, o Direito "informal", carente de garantias, é mais trágico do que poderia ser imaginável à primeira vista. Assinalo tudo isso porque me parece que, em temas de liberdade de expressão, é preciso utilizar um fino bisturi para dissecar condutas que se aproveitam da comicidade para lesionar o direito de outros. Os exercícios de ponderação entre bens constitucionalmente tutelados — liberdade de expressão e direito à privacidade, ou à honra pessoal e familiar, ou à própria imagem — são muito delicados, e não existe uma regra interpretativa fixa e imóvel. Não é tarefa fácil discernir a pretensão teleológica das condutas, e é aí onde encontraremos a chave para determinar se o exercício da liberdade de expressão cômica produz ou não lesão constitucionalmente relevante de algum direito fundamental e em que medida; isto é, quando sob a roupagem da comicidade se realiza um exercício com toda a "gravidade", isto é, seriedade e consciência destinado a infligir dano ou prejuízo.

 

IHU On-Line – Em termos de interpretação, o que significa a palavra “lei” e as “palavras da lei”? Onde reside o “espírito” das leis e das palavras?

José Calvo González – Parece que você deixou para o fim perguntas cuja resposta exigiria muitíssimo mais espaço do que foi gasto para responder qualquer uma das anteriores e de todas elas em conjunto. A Lei expressa um compromisso social baseado no consenso de obediência e no cumprimento voluntário do dever jurídico. E esse compromisso se produz e se satisfaz um número de vezes estatisticamente muito, muito superior ao da sua vulnerabilidade. O aparato coativo do Direito, o respaldo da força coercitiva, da sanção, só age excepcionalmente. Inclusive no Direito penal, que, na realidade, é Direito constitucional do Estado, o princípio é o da "intervenção mínima". A sanção penal é uma solução, certamente não a melhor, mas é apenas a última solução. No ius puniendi, por exemplo, as "palavras da lei" são fundamentais; é o princípio da legalidade e da taxatividade. As "palavras da lei" não são menos importantes no restante das outras ordens jurídicas, como na privada. A compra e venda no direito moderno é uma instituição jurídica de natureza consensual, é o acordo entre as partes que faz surgir a compra e venda. Esse acordo, as palavras em que se entrou em consenso, têm valor de Lei, são "palavra de lei". Quando os nossos anciãos utilizavam essa locução, eles faziam uma dupla homenagem à Palavra e à Lei, à "palavra dada" (pacta sum servanda) e ao "valor de lei", como o contraste que se inscreve nos metais preciosos. Não me parece vão lembrar que essa tradição, esse modo de agir é o que inspira a confiança, a fé, no triunfo do Direito. Esse é, a meu ver, o verdadeiro espírito das leis. Se carecemos desse espírito, vale mais a pena dedicar a vida a outro mister. A vida jurídica, o trabalho de um jurista, deve ser inspirado por esse "Espírito". Submeter esse Espírito é distorcer o Direito.

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