Edição 444 | 02 Junho 2014

Mais literatura e menos manual - A compreensão do Direito por meio da ficção

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Ricardo Machado

Professor André Karam Trindade aposta na leitura de obras literárias para ampliar a compreensão sobre o Direito

Repensar o Direito por meio da literatura e avançar nas discussões jurídicas é a proposta dos estudos jusliterários, como explica André Karam Trindade, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, falando sobre o programa Direito e Literatura. “Pensar o direito a partir da literatura é a proposta do programa e isto significa repensar o direito. Neste contexto, o programa busca nas narrativas literárias uma espécie de ponto de partida para que possamos recolocar as questões jurídicas, políticas e sociais que nos assolam”, esclarece. 

Nesse sentido, ele destaca que há casos em que os textos de ficção ajudam mais a compreender o Direito que os próprios manuais. “Na verdade, a premissa na qual sempre insisto pode ser formulada do seguinte modo: algumas narrativas literárias são mais importantes para o estudo do direito do que a grande maioria dos manuais jurídicos. Este é o ponto. A literatura nos faz refletir acerca dos problemas que ela nos traz”, avalia.

Para o professor, a literatura faz emergir aspectos humanos das implicações jurídicas. “Em suma, a literatura pode humanizar o direito. E isto é fundamental para a interpretação dos fenômenos jurídicos e, de um modo geral, para a formação do jurista”, explica. “A Literatura tem uma função estética, enquanto o Direito, uma função normativa. Por isso, ela tem o poder de ampliar e confrontar horizontes, possibilitando um novo olhar aos fenômenos jurídicos”, complementa. 

André Karam Trindade possui Graduação em Direito pela Universidade Luterana do Brasil - Ulbra, mestrado em Direito Público pela Unisinos e Doutorado em Teoria e Filosofia do Direito pela Università Degli Studi Roma Tre, Itália. Coordena o Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Meridional - IMED. É autor e organizador de Direito & Literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade (São Paulo: Editora Atlas, 2013); Direito & Literatura: discurso, imaginário e normatividade (Porto Alegre: Editora Nuria Fabris, 2010); Direito & Literatura: ensaios críticos (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008); e Direito & Literatura: reflexões teóricas (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Do que trata o projeto Direito e Literatura? Como ele surgiu e como vem sendo desenvolvido?

André Karam Trindade - A ideia surgiu no final de 2005, no Instituto de Hermenêutica Jurídica - IHJ, quando eu e meus colegas de aula, Roberta Magalhães Gubert  e Alfredo Copetti Neto , à época, todos mestrandos do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos - PPGDireito, tivemos uma aproximação maior com os estudos e pesquisas jusliterárias realizadas nos Estados Unidos e na Europa. Assim, em 2006, provocados pelos professores Dino del Pino  e por Lenio Luiz Streck , elaboramos um projeto de pesquisa intitulado “Direito & Literatura: do fato à ficção”, que resultou, de um lado, na produção de livros e artigos científicos e, de outro, na realização de um seminário promovido ao longo de três anos, em parceria com a Livraria Cultura, em Porto Alegre. O sucesso da iniciativa nos levou à adaptação do seu formato para a televisão. Assim, desde 2008, o programa passou a ser transmitido tanto pela TVE/RS quanto pela TV JUSTIÇA, contando com o apoio do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos – PPGDireito. Hoje, estamos na sexta temporada, com mais de duzentos programas gravados. Trata-se de uma experiência fantástica. Muitas vezes, ainda nos surpreendemos com o alcance da televisão e da internet, as pessoas que elas atingem e os efeitos que produzem. 

 

IHU On-Line – O que significa pensar o Direito a partir da literatura?

André Karam Trindade - Pensar o direito a partir da literatura é a proposta do programa e isto significa repensar o direito. Neste contexto, o programa busca nas narrativas literárias uma espécie de ponto de partida para que possamos recolocar as questões jurídicas, políticas e sociais que nos assolam. Por exemplo: O mercador de Veneza (São Paulo: Editora Saraiva de Bolso, 2011), de Shakespeare , nos permite compreender o problema dos limites da interpretação e da argumentação jurídica; Ensaio sobre a lucidez (Lisboa: Editorial Caminho, 2004), de Saramago , nos incita a uma reflexão sobre o fracasso da democracia representativa; ou, ainda, O leitor (Rio de Janeiro: Editora Record, 2009), de Bernhard Schlink , obra sobre a qual já escrevi, que remete à virada ocorrida na teoria do direito após Auschwitz. Normalmente, contamos com um convidado do Direito e outro das Letras. No entanto, em muitas ocasiões, contamos com a presença de convidados de outras áreas: História, Filosofia, Sociologia, Psicanálise, etc. A ideia é oferecer múltiplas leituras dos fenômenos jurídicos. 

Mais literatura e menos manual

Na verdade, a premissa na qual sempre insisto pode ser formulada do seguinte modo: algumas narrativas literárias são mais importantes para o estudo do direito do que a grande maioria dos manuais jurídicos. Este é o ponto. A literatura nos faz refletir acerca dos problemas que ela nos traz. Ela pode promover o descondicionamento do olhar dos juristas, que em pleno século XXI permanecem reféns daquilo que o saudoso Luis Alberto Warat  denominou “senso comum teórico”. 

 

IHU On-Line – Considerando o espaço de sala de aula, de que maneira as discussões literárias ajudam na formação da interpretação jurídica?

André Karam Trindade - O estudo do Direito e da Literatura insere-se no campo das disciplinas propedêuticas, mais especificamente da teoria do direito, da filosofia do direito, da história do direito, da antropologia jurídica e, sobretudo, da hermenêutica jurídica. No entanto, a vertente conhecida como “direito na literatura”, que se concentra no modo como a literatura retrata os fenômenos jurídicos, nos mostra que o universo literário atravessa todas as áreas do conhecimento. E isto está muito claro na Aula (São Paulo: Cultrix, 2004), de Roland Barthes . Assim, não é necessário muito esforço para se deparar com dezenas de narrativas literárias que servem para refletir acerca de problemas de direito penal, civil, processual, constitucional, etc. 

Os exemplos mais conhecidos envolvem Antígona (Rio de Janeiro: Difel, 2001), de Sófocles ; O mercador de Veneza, de Shakespeare; Crime e castigo (São Paulo: Editora 34, 2001), de Dostoiévski ; O processo (São Paulo: Editora Saraiva de Bolso, 2011), de Kafka ; 1984 (São Paulo: Companhia das Letras, 2009), de Orwell ; e, mais contemporaneamente, O leitor, de Schlink. O mesmo se aplica à literatura brasileira, onde temos diversas obras de Monteiro Lobato  e Machado de Assis , para citar apenas estes, que nos ajudam a compreender melhor o Direito. Em suma, a literatura pode humanizar o direito. E isto é fundamental para a interpretação dos fenômenos jurídicos e, de um modo geral, para a formação do jurista. 

 

IHU On-Line – A literatura pode ser um meio de aproximar dos dilemas do Direito a sociedade?

André Karam Trindade - Certamente. Isto porque a Literatura tem uma função estética, enquanto o Direito, uma função normativa. Por isso, ela tem o poder de ampliar e confrontar horizontes, possibilitando um novo olhar aos fenômenos jurídicos. Neste contexto, o Direito ganha ao assimilar as capacidades crítica e criadora que marcam a literatura, propiciando a ruptura com o sentido comum teórico, a partir da renovação do pensamento jurídico. Isto ocorre porque, como já dizia Barthes, a Literatura possui um caráter subversivo, mediante a manipulação da própria linguagem, e desse modo se converte num modo privilegiado de reflexão filosófica, psicológica, social, jurídica, etc. 

A literatura pode ser considerada, assim, uma alternativa que permite a reconstrução dos lugares do sentido. No direito, isto assume a maior relevância, tendo em vista os limites (im)postos pela dogmática jurídica, aqui entendida como o conjunto de estereótipos, pré-conceitos, crenças, ficções, representações que (de)formam a interpretação e aplicação do direito. A literatura pode, assim, devolver ao direito uma dimensão cultural que foi esquecida ao longo do tempo e restituir ao jurista o papel de ator da transformação social, ao invés de simples técnicos e burocratas, ou pior, de meros “operadores” do direito. 

 

IHU On-Line – Como os estudos jusliterários se desenvolveram no Brasil? Como o tema é tratado em âmbito mundial? Algum país se destaca? Qual?

André Karam Trindade - No Brasil, o estudo do Direito e Literatura ainda é bastante recente, sobretudo se comparado à tradição que se consolidou nos Estados Unidos e na Europa ao longo do século passado. Neste contexto, obviamente, existe uma resistência por parte dos setores mais conservadores da comunidade jurídica, inclusive de dentro das universidades. Na verdade, ainda sofremos os influxos de um ensino jurídico marcado pelo formalismo oitocentista. E todos sabem das dificuldades de romper com este modelo, diariamente retroalimentado, por exemplo, pela indústria dos concursos, que simplifica e “plastifica” o Direito. 

Balanço

De todo modo, se fizermos um balanço dos últimos anos, já é possível observar algum avanço, como o surgimento de grupos de estudos, a criação de centros de pesquisa, a promoção de eventos, a institucionalização de disciplinas e o oferecimento de alguns cursos de curta duração. Por exemplo, desde o início do nosso projeto, já publicamos quatro obras sobre o tema, que contam com a participação de inúmeros pesquisadores, tanto nacionais quanto estrangeiros: Direito & Literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade (Ed. Atlas, 2013); Direito & Literatura: discurso, imaginário e normatividade (Ed. Nuria Fabris, 2010); Direito & Literatura: ensaios críticos (Ed. Livraria do Advogado, 2008); Direito & Literatura: reflexões teóricas (Ed. Livraria do Advogado, 2008).

Isto não significa, todavia, que eu seja o responsável pela difusão do Direito e Literatura no Brasil. Há outros professores que também trabalham com esta perspectiva, como é o caso da Vera Karam de Chueiri , da Universidade Federal do Paraná - UFPR, do Cristiano Paixão, da Universidade de Brasília - UnB, do Arnaldo Godoy , do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB e do Luís Carlos Cancellier de Olivo , da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, entre outros. 

Atualmente, estou coordenando o Kathársis Centro de Estudos em Direito e Literatura da Faculdade Meridional - IMED, onde estamos desenvolvendo um importante projeto de pesquisa sobre “a representação do juiz nas narrativas literárias”. 

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo? 

André Karam Trindade - Gostaria de destacar uma questão que venho sustentando: se o direito aparece, historicamente, como um mecanismo de controle do poder exercido pelo Estado, a literatura “uma vez que se trata de uma expressão artística, muitas vezes de caráter subversivo, libertário e de vanguarda” também pode constituir uma importante forma de denúncia e de resistência contra violações aos direitos humanos ou aos ideais democráticos. 

Tanto isto é verdade que os regimes totalitários, sem qualquer exceção, proibiram a publicação e a veiculação de determinadas obras literárias, perseguindo escritores e, por vezes, queimando livros em praça pública. Isto demonstra o poder que a literatura assume para o direito enquanto forma de expressão do humano, a tal ponto que o poeta alemão Heinrich Heine , em 1821, já alertava para o fato de que “ali onde se queimam livros, cedo ou tarde acabam por se queimar pessoas”.

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