Edição 441 | 28 Abril 2014

Dizem que foi feitiço – Curandeirismo e práticas de cura na historiografia do RS

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Por Andriolli Costa

Nikelen Acosta Witter resgata o histórico das relações do homem com doenças e epidemias ao longo da história

Em 1866, quando o município de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, ainda era conhecido pelo nome de Vila de Santa Maria da Boca do Monte, a preta forra Maria Antônia, agricultora e curandeira, foi indiciada, aos 70 anos de idade, por envenenamento. A acusação partiu da boca de um homeopata, o último a ter como paciente uma filha de lavradores pobres da região. Sofredora de uma terrível moléstia, vários especialistas em cura foram convocados para tratar a menina — de médicos e boticários à própria Maria Antônia, que foi quem obteve melhores resultados. Ainda assim, com a morte da garota, toda a culpa lhe foi imputada. 

De posse dos documentos que narravam este acontecimento, a historiadora Nikelen Acosta Witter sentiu-se provocada com algumas inquietações. Por que a única curandeira que logrou melhoras foi denunciada? Como se estabelecia a relação entre a medicina popular e a tradicional? Quais elementos medicinais no século XIX acabavam sendo relacionados à feitiçaria? Para responder a essas perguntas era preciso uma investigação que se despisse dos tradicionais preconceitos alinhavados pela história da medicina. 

“Quando comecei minhas pesquisas, pelo fim dos anos 1990, mesmo os historiadores de ponta ainda repetiam algumas ideias plantadas pelos primeiros narradores da História da Medicina”, descreve. “Que o curandeirismo era um mal necessário, que se desenvolveu pela falta de médicos, que era o que a população conseguia construir em meio à ignorância e abandono a que estava submetida.”   

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Witter aborda a evolução da relação do homem com as doenças e epidemias, assim como a diferença das práticas de cura nos séculos anteriores com as contemporâneas — em que a própria medicina era marcada por elementos como crenças e religiosidade, assim como concepções diferentes de corpo e da própria origem e trajetória das doenças. “Acima de tudo, e pensando em termos bem contemporâneos, o corpo dos doentes lhes pertencia”, pontua. “A medicina ainda não tinha força para exigir esse controle e nem mesmo para brigar fortemente por ele.”

Nikelen Acosta Witter possui mestrado em História pela Universidade Federal de Santa Maria, com a dissertação Dizem que foi Feitiço: curadores e práticas de cura no sul do Brasil, que foi publicada em livro homônimo (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001). Possui doutorado também em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF, com a tese Males e Epidemias: sofredores, governantes e curadores no sul do Brasil. Atualmente é professora do Centro Universitário Franciscano – UNIFRA, em Santa Maria, RS. Atua ainda como colunista do site Sul21. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - De onde veio seu interesse em trabalhar as práticas de cura desde uma perspectiva histórica? Como esta disciplina, tradicionalmente, aborda os saberes populares ligados à cura? 

Nikelen Acosta Witter – Meu interesse começou um pouco por acaso. O encontro da documentação do caso da curandeira preta forra Maria Antônia — que foi a base da minha dissertação de mestrado — foi algo difícil de ignorar e mesmo de fugir. Era muita riqueza documental, muitas informações novas, muitas implicações interpretativas numa época em que os estudos sobre curandeirismo ainda eram incipientes. Encontrava-se mais material na sociologia e na antropologia tentando compreender o curandeirismo em locais determinados ou nos seus termos modernos, já filtrados por uma cultura médica. Pouco estava mapeado pelos historiadores de fato, trabalhando com as lógicas diferentes de outros contextos históricos do Brasil. Quando comecei minhas pesquisas, pelo fim dos anos 1990, mesmo os historiadores de ponta ainda repetiam algumas ideias plantadas pelos primeiros narradores da História da Medicina: que o curandeirismo era um mal necessário, que se desenvolveu pela falta de médicos, que era o que a população conseguia construir em meio à ignorância e abandono a que estava submetida.  

 

IHU On-Line - Em 1999, no mestrado em História, você produziu a dissertação Dizem que foi Feitiço: curadores e práticas de cura no sul do Brasil. Já em 2007, no doutorado, sua tese foi Males e Epidemias: sofredores, governantes e curadores no sul do Brasil. Qual a diferença de abordagem de seu objeto de pesquisa nos dois estudos?

Nikelen Acosta Witter – Muitas perguntas são semelhantes nos dois trabalhos. Como se adoecia no século XIX? A quem se procurava? Qual o mapa terapêutico? Como se dava o relacionamento entre doentes e curadores? Contudo, claro, a tese tem, além da maturidade de pesquisa, ambições maiores nas respostas. Dizem que foi Feitiço usou a leitura intensiva de um documento como forma de buscar as questões que dele brotavam. Era preciso explicar a prisão de Maria Antônia, por que ela fora procurada? Era preciso entender elementos de gênero e também sobre a escravidão. No entanto, foi a diversidade que encontrei que me levou a formular questões maiores, jogadas num universo mais amplo. O que aconteceu é que muitas vezes a tese comprova o que a dissertação intuía. A principal diferença entre ambos, creio, é o aprofundamento teórico que a tese realiza. Acho que a história de Dizem que foi Feitiço torna a dissertação uma leitura mais agradável, enquanto a tese propõe conceitos. O que todo o historiador e pesquisador espera é para ver como esses conceitos serão lidos, apropriados e criticados. 

 

IHU On-Line - Como eram as práticas de cura no Rio Grande do Sul nos séculos XVIII e XIX? Quais destes costumes, em determinadas comunidades, ainda se mantêm até hoje?

Nikelen Acosta Witter – É difícil resumir o que está numa dissertação e numa tese em poucas linhas. Contudo, é importante relatarmos que as práticas de cura dessa época possuíam uma legitimidade que nada tinha a ver com os modelos médico-científicos que vieram a dominar no século XX. Tais modelos são o que há de novo nesse período e, por isso, muitas vezes, são alvo também de suspeita. Por outro lado, é necessário lembrar que a lógica que comanda as descobertas científicas e a própria medicina é igualmente diferente daquela que vigorava nos séculos XVIII e XIX, bem como em suas pequenas comunidades. Elementos como religiosidade, crenças, concepções de corpo e da própria origem e trajetória das doenças estavam imbricados num arcabouço complexo e multifacetado ao longo de uma sociedade cheia de diversidade e marcada por fortes hierarquias pessoais. Acima de tudo, e pensando em termos bem contemporâneos, o corpo dos doentes lhes pertencia. A medicina ainda não tinha força para exigir esse controle e nem mesmo para brigar fortemente por ele.

 

IHU On-Line - De que forma era construída a relação entre a medicina oficial (dos doutores, boticários e mesmo homeopatas) e esta medicina alternativa (dos saberes populares, da tradição e da oralidade)? 

Nikelen Acosta Witter – Em primeiro lugar, as linhas que separavam esses saberes não eram tão claras na maior parte do tempo. As distâncias no Brasil, o Estado ainda em expansão e a diversidade da população podiam alongar ainda mais essas linhas longe dos grandes centros. Sendo assim, é possível encontrar de tudo. Do embate franco e direto, chegando até a documentação judicial, até longas e mornas disputas de clientela por anos a fio, trocas de ataques em jornais, difamação, calúnias, denúncias. Havia de tudo um pouco. Aliás, podemos encontrar até mesmo colaboração entre esses grupos. Como era o caso de alguns espíritas que se colocavam com um pé em cada canoa, ou mesmo farmacêuticos — atestam as memórias de João Daudt Filho  — que “consertavam” as receitas dos curandeiros, sem interpelá-los ou desautorizá-los.

 

IHU On-Line - Observando a historiografia mundial, com as constantes epidemias que volta e meia afetam a humanidade, quais diferenças e semelhanças são possíveis de se perceber no modo como o ser humano vem encarando as doenças contagiosas ao longo dos anos?

Nikelen Acosta Witter – Creio que em fins do século XIX se começou a romper com o longo protocolo de recepção das epidemias. Charles Rosenberg  mapeou essas mudanças nos Estados Unidos. A principal delas foi a saída da esfera do castigo divino. Muito embora saibamos que tais explicações retornam e nunca foram completamente abandonadas. Nesse sentido, a descoberta da AIDS nos anos 1980 ainda tem um bocado de coisa a nos dizer. Por outro lado, ainda é possível vivenciar elementos comuns a outras epidemias, como a fase da negação, a culpabilização pela ação (“sempre”) tardia dos governos até as receitas milagrosas e defesas questionáveis, mesmo dentro da medicina científica. Um exemplo é o medicamento Tamiflu, usado nos casos da epidemia de gripe A e sobre o qual ainda pairam dúvidas; até as soluções caseiras como os chás de raiz estrelada (que teria o mesmo princípio do medicamento). Fortuna para alguns, uma crença apaziguadora para outros. Como seres humanos, mudamos pouco.

 

IHU On-Line - Você acredita que a informação que temos hoje sobre doenças contagiosas colabora para a prevenção de epidemias ou faz mais espalhar inverdades e pânico?

Nikelen Acosta Witter – A verdade é que nossas defesas para com doenças verdadeiramente contagiosas são poucas. Assim como as nossas informações. Eu gostaria de dizer que se fôssemos todos mais bem informados teríamos menos riscos, mas não sei se é possível afirmar isso. Quando uma onda epidêmica vem, o certo é que ela vai colher a todos os que forem suscetíveis a ela e os que sobreviverem poderão passar genes mais fortes para a próxima geração. Essa é a história universal das epidemias. Não se trata de pessimismo. É uma constatação. Produzimos doenças novas, organismos se recombinam, vírus sofrem mutação. Até produzirmos um remédio eficiente (o que hoje é bem rápido, 1 ou 2 anos) alguns dos nossos serão sacrificados, e isso nos ajudará a compreender a doença. Pensando com o individualismo dos séculos XX e XXI isso parece cruel, mas, pensando como espécie, temos uma compreensão diferente. Nossa existência hoje é tributária de todas as doenças que já nos acometeram. É tributária de todos os nossos mortos e é tributária dos nossos sobreviventes. Somos os sobreviventes.

 

IHU On-Line - Com a globalização dos povos, há também um processo de globalização das doenças — o que Le Roy Ladurie  chama de “a unificação microbiana do mundo”. Esta seria uma consequência inevitável? Temos a dimensão de como esse processo afetou as populações originais de cada região? 

Nikelen Acosta Witter – Le Roy Ladurie pensa para a Europa o que McNeill  e Crosby  postulam para as Américas. E que tem a ver com a resposta da questão acima. Nossos contatos são a base do contágio. Logo, quanto mais globalizados estivermos, mais unificados estaremos em termos de doenças. As pestes colocaram a Eurásia num único bloco, mais tarde, a conquista das Américas possibilitou um genocídio “unificador” em termos biológicos. Os indígenas poderiam resistir ao invasor muito mais tempo, mas com certeza não puderam resistir aos seus vírus. Claro que isso coloca a velha questão do determinismo biológico, mas eu creio que as doenças têm também seu aspecto cultural. Não fosse isso, as roupas de gripados e variolosos não teriam sido usadas de forma intencional em vários processos de conquista. Reconhecer o papel das doenças nesse processo global de expansão eurocêntrica e do capital não é determinismo biológico. É determinismo humano. Sabia-se que era uma arma e foi usado dessa maneira.

 

IHU On-Line - Pensando em termos de biossociabilidade, você acredita que a sociedade contemporânea lida melhor com os portadores de enfermidades ou estes ainda continuam sendo excluídos e segregados?

Nikelen Acosta Witter – Com certeza lidamos melhor com os portadores de enfermidades do que no passado. Contudo, isso não quer dizer que estamos num nirvana de relações e nem mesmo que somos potencialmente melhores que os nossos antepassados. Temos nichos em que a tolerância se desenvolve e ganha voz, mas ainda são nichos, isso não é espalhado por toda a sociedade. E não é só no Brasil. Mesmo nos chamados países de primeiro mundo as coisas ainda são difíceis. Basta acompanhar, por exemplo, as lutas dos portadores de necessidades especiais em países como a França para compreendermos o quanto ainda estamos distantes de uma forma ideal de inclusão. Algumas enfermidades são silenciosas ou não fisicamente marcantes, mas as que se manifestam de forma clara ainda têm como resposta o medo e o distanciamento da maior parte das pessoas. Não importa se o portador é criança ou velho, ou esteja fragilizado, nosso mundo ainda estigmatiza e limita. Daí a importância dos nichos de luta pelos direitos e pela aceitação de todos os portadores de enfermidades (e veja bem, não de “anormalidades”).

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar mais alguma coisa?

Nikelen Acosta Witter – Acho que os estudos sobre saúde ainda têm muito a contribuir, especialmente os que trazem viés histórico, sociológico, antropológico e filosófico. Nossos medos ainda estão muito à flor da pele para que possamos prescindir do entendimento que essas disciplinas dão aos nossos comportamentos. Além disso, vivemos numa época hipermedicalizada, em que tudo muito rapidamente se transforma em doenças: nossos comportamentos, nossa sexualidade, nossa tristeza, nossa euforia, nossa raiva. Compreendermos é também um remédio. Talvez o único sem contraindicações.

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