Edição 439 | 31 Março 2014

Retração e reação - Os movimentos sindicais no contexto pré-Golpe

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Ricardo Machado e Andriolli Costa

Sociólogo Marco Aurélio Santana destaca como, mesmo sem suporte legal e governamental, os movimentos operários conquistaram aberturas dentro da própria estrutura do Estado antes da ascensão do regime ditatorial

Inspirada pelos ideais de modernidade e desenvolvimento, a política econômica brasileira importa modelos internacionais. Tais modelos, no entanto, foram desenvolvidos em outros horizontes sociais, e a tentativa de aplicá-los em outra realidade gera inevitavelmente ruídos. Um deles foi a relação Capital-Trabalho, em que a exploração da mão de obra seguia a mesma estrutura da burguesia agrícola. A luta por direitos começa a surgir em um contexto no qual as leis trabalhistas ainda estavam em desenvolvimento e os movimentos operários buscavam seu espaço como classe.

“De qualquer modo, ao longo de todo o tempo, os trabalhadores e os setores militantes buscaram, ainda que atuando por dentro desta estrutura, usá-la em seu benefício, ampliar seus espaços, conjugá-los com organizações criadas e desenvolvidas por fora dela”, relata o sociólogo Marco Aurélio Santana, estudioso dos movimentos sindicais. De acordo com ele, em muitos momentos, os trabalhadores tiveram espaços ampliados agindo por dentro da estrutura. Isso, no entanto, sofre um grave impacto com a ascensão do governo ditatorial e sua política repressiva.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Santana resgata a importância da Greve dos 300 mil, em 1953; a relevância do trabalho de João Goulart como ministro do Trabalho, que promoveu um novo tipo de relação com o movimento operário; e as intervenções cirúrgicas promovidas pelos militares no pós-golpe, desestruturando os sindicatos e movimentos mais organizados. De início reprimidos, os movimentos operários começaram a se reestruturar àquela nova realidade. “Assim que pôde, o movimento avançou suas linhas auxiliares e começou a atuar no sentido de reagir ao regime e às suas medidas na cidade e no campo”, defende o sociólogo.

Marco Aurélio Santana é cientista social formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, onde cursou mestrado e doutorado em Sociologia e Antropologia. É pós-doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França, e atua como professor na UFRJ. Escreveu Trabalho e Educação: centrais sindicais e reestruturação produtiva no Brasil (Rio de Janeiro: Quartet, 1999), Homens partidos: comunistas e sindicatos no Brasil (São Paulo/Rio de Janeiro: Boitempo, 2001) e Sociologia do trabalho no mundo contemporâneo (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004), além de ter organizado outras obras que tratam o tema do trabalho.

Santana publicou O mundo do trabalho em mutação. As reconfigurações e os seus impactos, nos Cadernos IHU ideias nº 34, e Trabalhadores e política nos anos 1950: a ideia de sindicalismo populista em questão, nos Cadernos IHU ideias nº 82.


Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como se deu a organização dos movimentos sociais no Brasil, principalmente dos trabalhadores, nas décadas que antecederam o Golpe?
Marco Aurélio Santana -
Os trabalhadores brasileiros sempre lançaram mão de variadas formas de organização e mobilização ao longo de sua história. No período imediatamente anterior ao Golpe de 1964, a organização se dava tanto por dentro da chamada estrutura sindical oficial — montada, mantida e supervisionada pelo Estado — como por fora dela, articulando formas organizativas que iam desde aquelas fortemente ligadas aos locais de trabalho, até as organizações intersindicais de cúpula.

IHU On-Line – O Ministério do Trabalho foi criado em 1931, no início do primeiro mandato de Getúlio Vargas. Na época, os sindicatos dos trabalhadores eram controlados pelo Estado. Como se dava a organização e como funcionavam os sindicatos urbanos no decorrer das décadas de 1930, 1940 e 1950?
Marco Aurélio Santana -
Pode-se dizer que, ao longo destas décadas, apesar de descontinuidades, muitas continuidades ocorreram. Os trabalhadores e a militância de esquerda sempre buscaram abrir, garantir e avançar em espaços de atuação na busca de seus direitos. Por seu turno, o Estado sempre trabalhou no sentido de manter o movimento dos trabalhadores dentro de limites, garantindo o que seria o seu controle. Quando não conseguia fazer isso por vias, digamos, ideológicas e legais, a força sempre foi uma constante ao longo de todo o tempo.

No caso da estrutura oficial, ela, em linhas gerais, visava impor um tipo de sindicato corporativo, único por base territorial, que deveria ter reconhecimento do Estado, trabalhar pela colaboração de classe e não pela luta, preocupando-se com assistência social ao trabalhador, não ser ideológico nem político. A este tipo de sindicato estava interdito um tipo de organização dentro dos locais de trabalho, bem como de articulação intersindical. Na cúpula desta estrutura não caberiam, por exemplo, centrais sindicais unindo trabalhadores de diversas categorias profissionais, apenas as confederações por setor de trabalho.

Em termos esquemáticos, teríamos um “Sindicato de Metalúrgicos na base”. Acima dele uma “Federação de metalúrgicos” e, acima desta, uma “Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria”. Nestes moldes, a classe daria lugar à corporação. De qualquer modo, ao longo de todo o tempo, os trabalhadores e os setores militantes buscaram, ainda que atuando por dentro desta estrutura, usá-la em seu benefício, ampliar seus espaços, conjugá-los com organizações criadas e desenvolvidas por fora dela. Este tipo de atuação produziu limites e possibilidades ao movimento dos trabalhadores. Deve-se dizer também que a interpretação e o uso que se fazia da legislação em vigor regulando o mundo do trabalho eram permeados pelas conjunturas políticas mais gerais. Assim, em muitos momentos, os trabalhadores tiveram espaços ampliados agindo por dentro da estrutura. Entre os anos 1950 e 1964, creio, isso ocorreu. O que, obviamente, não foi o caso nos períodos ditatoriais de 1937/1945 e de 1964/1985. E nem naquele considerado de abertura democrática entre 1945/1950, já que durante o governo Dutra  o Estado fez centenas de intervenções nos sindicatos, proibiu e reprimiu greves, etc.

IHU On-Line – Em termos políticos, qual foi a importância da Greve dos 300 mil, em 1953? Como ela impactou no cenário político que culminou no golpe civil-militar de 1964?
Marco Aurélio Santana -
A greve de 1953 foi um ponto luminoso na história do movimento dos trabalhadores brasileiros. Sinalizando para o que seria a prática geral do período, ela articulou em sua organização e mobilização organizações de dentro e de fora da estrutura sindical oficial. As comissões de fábrica foram muito importantes no sentido de deflagrar e capilarizar o movimento que teve, para o período, um impacto enorme. Ressalte-se aí a figura de João Goulart, então ministro do Trabalho — representando uma ala progressista e modernizadora do trabalhismo na relação com o movimento operário, que esteve no epicentro da crise gerada pela greve em termos do aumento do salário mínimo, que acabará o derrubando do cargo. Muitas das bases de aproximação e articulação entre Jango, os sindicatos e a esquerda estavam sendo lançadas aí.

IHU On-Line – Que mudanças o golpe trouxe para o modelo de ação dos sindicatos urbanos?
Marco Aurélio Santana -
Na verdade, em termos legais de mudança no modelo de ação, pouco ou nada. O dado é que o regime militar apenas usou e reiterou a face mais dura da legislação, pondo-a em uso. O que a ditadura quis foi reestruturar os sindicatos, reforçando sua face de colaboração, apolítica, assistencial, etc., inibindo qualquer forma de ação mobilizadora. Para tanto, fez uma intervenção cirúrgica nos sindicatos de ponta, mais organizados e mobilizados, cassou e prendeu lideranças, controlou o acesso de setores de esquerda aos postos sindicais, entre outros. Criou-se um clima inóspito para formas de participação mais democrática. O espaço do sindicato, de suas reuniões e assembleias, passou a ser um espaço de denúncias, prisões, restrições. O mesmo nos locais de trabalho, onde as empresas se esmeraram em colaborar com o regime, passando-lhe informações importantes sobre as organizações, militantes e mobilizações em seu interior.

IHU On-Line – O que foram e como funcionavam, no contexto do golpe de 1964, a Juventude Operária Católica - JOC  e a Ação Católica Operária – ACO , as quais formaram as bases da Pastoral Operária? Qual a importância destas entidades na resistência ao regime?
Marco Aurélio Santana -
Estas organizações foram muito importantes no sentido tanto de oxigenar as posturas da igreja junto ao movimento dos trabalhadores como de auxiliar no processo de organização deles. No período ditatorial, pós-64, organizações como a pastoral serviram de espaço possível de reunião, formação, organização, mobilização, etc. Diante de tantos espaços fechados, estes surgiam como lugar possível de participação e organização política. No quadro mais amplo da ditadura, a Igreja serviu como forte anteparo protetivo.

IHU On-Line – Que entidades e movimentos organizados por trabalhadores foram mais perseguidos após o golpe civil-militar?
Marco Aurélio Santana -
Obviamente que aqueles sindicatos que estiveram na linha de frente nos anos 1950, capitaneados pela aliança política entre a militância do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), foram os mais duramente atingidos. Estamos falando aqui de setores tão diversificados como, entre outros, metalúrgicos, bancários, ferroviários, têxteis. O que a ditadura fez foi tentar quebrar a espinha dorsal deste tipo de sindicalismo, pondo um outro em seu lugar. Estratégia que teve seu sucesso inicial, mas se demonstrou pouco exitosa no médio prazo.

IHU On-Line – Como o golpe impactou na organização do trabalho no Brasil? Que tipo de relação entre capital e trabalho surgiu neste período e quais suas consequências para a organização atual do trabalho?
Marco Aurélio Santana
- O fim da estabilidade no trabalho abriu espaço para uma rotatividade que serviu aos desígnios do capital tanto no sentido de gestão de mão de obra como no sentido político contra as possibilidades de organização e mobilização. Apesar de terem sido introduzidas, enquanto tais, já no período anterior, as montadoras terão no regime militar seu ambiente mais propício de desenvolvimento. Portadoras das formas modernas de produção capitalista, elas simbolizariam a ponta de lança das transformações no capitalismo brasileiro durante o regime militar. O capitalismo brasileiro ia se modernizando pelo alto, à base da repressão aos trabalhadores, do silenciamento da sociedade e da castração da participação política plena. O regime articulou repressão, compressão salarial e aumento da produção do trabalho. Ambiente propício para este desenvolvimento capitalista primitivo.

IHU On-Line – Qual é o espaço dos movimentos sociais no Brasil pós-golpe civil-militar de 1964?
Marco Aurélio Santana -
Na verdade, apesar de todas as tentativas e projetos do regime militar, ele nunca foi capaz de eliminar os movimentos. Aqui e ali foi mais exitoso. Mas, no geral, teve de lidar com ações de resistência. Fossem elas derrotas eleitorais, paralisações, greves, ações armadas, o regime foi sempre sendo fustigado. Claro que, logo após o golpe, o cenário ainda não estava claro para muitos setores que enfrentavam o novo regime, ocorreu muita divisão, busca de responsabilidades, e o impacto foi muito grande e desarticulador. Além disso, com a repressão agindo à larga, prendendo e cassando militantes, muitas das vértebras dos movimentos foram quebradas. E isso não é coisa que se recupere da noite para o dia. De todo modo, assim que pôde, o movimento avançou suas linhas auxiliares e começou a atuar no sentido de reagir ao regime e às suas medidas na cidade e no campo. O movimento dos trabalhadores estará, sempre que possível, na linha de frente de muitas das ações que ajudaram a pavimentar o caminho de enfraquecimento do regime militar e de sua substituição pelo regime democrático.

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