Edição 439 | 31 Março 2014

A imprensa prepara o golpe

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Ricardo Machado e Luciano Gallas

O jornalista e historiador Juremir Machado, que tem se dedicado a escrever vários livros sobre a história política do Brasil, fala sobre a relevância do papel da mídia na legitimação do regime militar

Para Juremir Machado, o golpe de Estado deflagrado em 1964 pode ser definido como um “golpe midiático-civil-militar”. Ele acredita tanto nesta afirmação que a utilizou para batizar seu livro mais recente, dedicado justamente a analisar o papel desempenhado pela imprensa na legitimação do regime militar instaurado no Brasil naquele ano. Este foi também o tema central desta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line. “De que trata realmente meu livro? De como jornalistas e escritores hoje cantados em prosa e verso apoiaram escancaradamente o golpe: Alberto Dines, Carlos Heitor Cony, Antonio Callado, Carlos Drummond de Andrade, Otto Lara Resende, Otto Maria Carpeaux, Rubem Braga e outros. Alguns, como Cony, arrependeram-se ainda na primeira semana de abril. Outros só mudaram depois de 1968 e do AI-5 . Alguns permaneceram fiéis ao regime. Os mais espertos, como Alberto Dines, reescreveram-se”, redigiu o autor em seu blog.

Juremir Machado da Silva é jornalista e historiador. Possui mestrado e doutorado em Sociologia da Cultura pela Université Paris V - René Descartes, na França. Atualmente, é professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. É tradutor, romancista e cronista, tendo publicado 30 livros individuais — três deles traduzidos para o francês. Entre suas obras, estão Getúlio (Rio de Janeiro: Record, 2004), História regional da infâmia - o destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras (Porto Alegre: L&PM, 2010), 1930, águas da revolução (Rio de Janeiro: Record, 2010), Vozes da Legalidade, política e imaginário na era do rádio (Porto Alegre: Sulina, 2011), A sociedade midíocre, passagem ao hiperespetacular - o fim do direito autoral, do livro e da escrita (Porto Alegre: Sulina, 2012), Jango, a vida e a morte no exílio (Porto Alegre: L&PM, 2013) e 1964 – O golpe midiático-civil-militar (Porto Alegre: Sulina, 2014).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que o golpe de 1964 pode ser definido como “midiático-civil-militar”?
Juremir Machado -
Porque o papel da imprensa foi determinante para a criação do clima necessário ao golpe. A mídia acabou preparando o espírito da população para a queda de Jango. Ajudou a forjar a ideia de que Jango era incompetente, perigoso e irresponsável. Difundiu a ficção de que o Brasil estava à beira do comunismo. Produziu a balela de que a “democracia” só seria salva com a deposição de um presidente eleito constitucionalmente. A mídia forneceu a legitimação.

IHU On-Line – Além de O Globo, algum outro jornal grande da década de 1960 que ainda esteja em atividade reconheceu o apoio aos militares? O que este gesto significou?
Juremir Machado -
Todos os grandes jornais apoiaram o golpe: Correio da Manhã, Tribuna da Imprensa, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Dia, Diários Associados, etc. Só o Globo pediu desculpas. Não é preciso que esses jornais reconheçam que apoiaram, pois o apoio está impresso nas suas páginas.

IHU On-Line – A partir de que momento podemos perceber na mídia a construção de um clima de instabilidade relacionado a uma suposta ameaça comunista? Qual o papel da Escola Superior de Guerra neste contexto?
Juremir Machado -
O golpe teve o apoio do jornal O Estado de S. Paulo desde 1962. O Jornal do Brasil entrou em campanha contra Jango em 1963. A campanha tornou-se compacta [generalizada] em março de 1964. Só a Última Hora não foi golpista. A Escola Superior de Guerra funcionou como matriz ideológica do golpismo.

IHU On-Line – De que maneira as telecomunicações se tornaram um braço importante da estratégia de legitimação do poder militar?
Juremir Machado -
A unidade do país foi articulada a partir das telecomunicações como projeto cívico, autoritário e moral. Foi constituída uma rede com nós controlados por amigos do regime. Poucas vezes tecnologia e ideologia estiveram tão unidas e com efeitos tão implacáveis.

IHU On-Line – Por que a imprensa não se posicionou em favor das reformas de base de Jango, propostas que pareciam ter certo apoio popular?
Juremir Machado -
As reformas de base tinham apoio da maioria da população. O Correio da Manhã admitia que essas reformas eram importantes, mas achava que não podiam ser feitas da maneira proposta por Jango. O jornal tergiversava. A mídia recusou as reformas por conservadorismo, ideologia e fidelidade aos setores mais reacionários do país.

IHU On-Line – O apoio ao regime ditatorial nas décadas de 1960 e 1970 por parte da imprensa brasileira é uma mancha indelével?
Juremir Machado -
Uma mancha que nunca se apagará. Em 1971, a Folha de S. Paulo louvava o governo de Médici. Em 1973, o Jornal do Brasil tecia loas à “revolução”. Em 1984, O Globo reincidia no seu apoio ao regime militar. A mídia traiu o seu papel. Comportou-se como intelectual orgânico da ditadura.

IHU On-Line – Acredita que a imprensa aprendeu com os erros do passado ou permanece agindo de maneira leviana em relação à complexidade de nossas sociedades?
Juremir Machado -
Pouco aprendeu. De maneira geral, repete hoje os mesmos erros de 1964. Pode-se dizer que as raízes do golpismo midiático estão em 1954 e 1964. Os temas ainda são os mesmos: corrupção e comunismo, Cuba e marxismo. O conservadorismo da mídia renovou-se. Os principais colunistas atuais são intelectuais de extrema-direita.

IHU On-Line – Por que se fala pouco sobre a participação da imprensa no golpe de 1964? O que há de corporativismo neste comportamento?
Juremir Machado -
A mídia não canta os homens e suas glórias, mas as ideologias e suas razões. Jamais fala mais de si mesma. Reescreve a história para dar-se o melhor papel. Só fala de receitas de bolo e de poemas de Camões publicados pelo Estadão e pelo Jornal da Tarde nos buracos dos textos censurados. Apaga o período de 1964 a 1968. Tenta fazer crer que ainda não era a ditadura. Mente para o público e para si. Corporativismo total. Meu livro será ignorado.

IHU On-Line – Qual a responsabilidade da imprensa ao relembrar este período? Era possível realizar um golpe de Estado no Brasil sem o apoio da imprensa?
Juremir Machado -
A mídia precisa fazer um mea-culpa. Retratar-se. Pedir desculpas. Reconhecer o seu triste papel. A mídia e as Forças Armadas. Quanto a possibilidade, não era. Porque faltaria legitimação. A mídia apavorou a classe média para fazê-la clamar pelo golpe.

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