Edição 438 | 24 Março 2014

A experiência de um Deus único e multifacetado no pós-colonialismo

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Márcia Junges e Luciano Gallas / Tradução: Isaque Gomes Correa

O professor Emmanuel Lartey debate seu livro Postcolonializing God: New Perspectives in Pastoral and Practical Theology a partir da perspectiva do pós-colonialismo.

A ideia de um Jesus Cristo branco, de olhos azuis e feições europeias é nitidamente uma construção social. O exemplo é tão somente ilustrativo, mas nos ajuda a pensar na discussão proposta pelo professor de religião Emmanuel Lartey, em seu livro Postcolonializing God: New Perspectives in Pastoral and Practical Theology (Norwich: SCM Press, 2013). “Um Deus 'pós-colonizado' não se pareceria somente com as construções europeias de Deus que nós temos, mas também com as do mundo todo”, destaca Emmanuel Lartey, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Os esforços pastorais e missionários, sejam católicos ou protestantes, trabalharam incansavelmente para produzir cristãos ao redor do mundo que fossem cópias carbono dos cristãos europeus. Desse modo, foram feitos cristãos para adorar uma construção europeia de Deus. A sabedoria multifacetada de Deus refletida em sua imagem presente na humanidade foi desfigurada e estreitada a fim de fazer Deus refletir apenas a humanidade europeia”, complementa.

Ampliar a compreensão e facilitar o entendimento da fé em Deus é para Lartey um aspecto crucial do trabalho dos teólogos. Nesse sentido, ele sustenta que a Igreja precisa estar mais integrada à experiência das pessoas, ouvi-las mais de perto. “As teologias do Terceiro Mundo, Negra e pós-modernas tentam abordar aspectos particulares da condição humana. O diálogo entre elas, creio eu, nos deu (e ainda nos dá) condições de obtermos imagens mais exatas e relevantes do que os seres humanos, criados à imagem de Deus, estão vivenciando no mundo criado por ele. O diálogo aqui nos tem ajudado a ver como, às vezes, as ações de uma parte da humanidade têm efeitos prejudiciais em outras partes desta mesma humanidade; como às vezes os seres humanos bem-intencionados em uma parte do mundo podem oprimir e desumanizar outros seres humanos”, avalia.

Emmanuel Lartey é professor de Religião na Emory's Graduate Division e no Religious Life Program. Dedica-se ao cuidado pastoral, aconselhamento e teologia em diferentes contextos culturais, com especial referência às expressões africanas, britânicas e americanas. Atualmente, pesquisa as implicações teológicas e efeitos práticos do cuidado pastoral. A edição 431 da IHU On-Line, de 04-11-2013, dedicou um tema de capa à discussão do pós-colonialismo.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que é um Deus pós-colonizado?
Emmanuel Lartey -
Em essência, a expressão Postcolonializing God [Deus pós-colonizante] é uma forma de descrever o Divino (Deus) que reflete as experiências de vida, história, cultura, filosofias e opiniões das pessoas ao redor do mundo. Um Deus “pós-colonizado” não se pareceria somente com as construções europeias de Deus que nós temos, mas também com as do mundo todo. Um Deus assim seria descrito fazendo-se uso das línguas, das visões de mundo e experiências dos africanos, sul-americanos e asiáticos, bem como de todas as outras pessoas do mundo. A tarefa é um trabalho em curso — quiçá interminável —, daí minha preferência pelo tempo ativo “pós-colonizante”, em vez de um tempo finalizado (passado, completo), no caso, “Deus pós-colonizado”.

IHU On-Line - Até que ponto vai a perspectiva de um Deus pós-colonizado com base na realidade crítica?
Emmanuel Lartey -
O projeto pós-colonizante é, de fato, um projeto em curso e tem estado em operação durante muitas décadas. Teologias da libertação , teologias do “Terceiro Mundo” de todos os formatos e tamanhos, teologias dalit, feministas, das mulheres, “mujeristas”, bem como as teologias queer  são exemplos de teologias “pós-colonizantes” que desafiam e subvertem as teologias estreitamente definidas como “colonialistas”. As atividades do Deus pós-colonizante estão acontecendo a cada dia nas práticas dos cristãos ao redor do mundo.
 
IHU On-Line - Qual o lugar dos oprimidos ante um Deus pós-colonizado? Como este Deus se coloca diante da exploração do homem pelo homem?
Emmanuel Lartey -
Em meu livro, menciono que Deus (na Bíblia) teve a iniciativa nesta empreitada pós-colonizante. A Criação em si é uma expressão da ação divina de trazer para a existência um mundo de diversidade e pluralidade. No livro de Gênesis, capítulo 11, Deus reafirma este compromisso com a diversidade e sua preferência por ela. O livro de Atos, capítulo 2, diz que a “nova humanidade” gerada pela operação do Espírito Santo advinda do trabalho de Jesus Cristo é uma comunidade plural e diversa. As pessoas oprimidas constituem peça central desta visão de uma nova humanidade. Deus se opõe à “exploração do homem pelo homem”, ponto crucial do projeto colonial e imperialista. Acredito que a iniciativa pós-colonizante venha a ser uma outra onda do Espírito Santo que reafirma a oposição de Deus para com a exploração e uma afirmação de todas as pessoas como sendo criadas à sua semelhança.

IHU On-Line - De que forma sua obra Postcolonializing God [Deus pós-colonizante] oferece novos caminhos para se pensar a presença divina na ação e implementação de novos modelos de prática pastoral e missionária?
Emmanuel Lartey -
A minha resposta à pergunta anterior também se aplica aqui. Grande parte da história cristã projetou a imagem de um Deus “homogeneizante” que deseja que todos os seres humanos sejam “o mesmo” (isto é, tal como a imagem europeia). Os esforços pastorais e missionários, sejam católicos ou protestantes, trabalharam incansavelmente para produzir cristãos ao redor do mundo que fossem cópias carbono dos cristãos europeus. Desse modo, foram feitos cristãos para adorar uma construção europeia de Deus. A sabedoria multifacetada de Deus refletida em sua imagem presente na humanidade foi desfigurada e estreitada a fim de fazer Deus refletir apenas a humanidade europeia. A tônica do Deus pós-colonizante é reconhecer que o Deus da Bíblia funciona para “pós-colonizar” (ou seja, desafiar as construções humanas hegemônicas) o mundo e promover as muitas vozes na tarefa da teologia e nas práticas do ministério.

IHU On-Line - Considerando o legado político e teológico da descolonização, qual a contribuição destas áreas de conhecimento para a teologia e para uma relação mais próxima entre a instituição Igreja e as pessoas?
Emmanuel Lartey -
As teologias da libertação se debruçaram, de modo correto, sobre teorias e estudos políticos e sociológicos para iluminar a condição humana na formulação de teologias relevantes e úteis, bem como para inspirar o agir visando à “salvação” da humanidade (ou seja, a realização mais completa da imagem de Deus na humanidade). As ciências políticas e sociológicas, assim como outras ciências humanas, têm um papel importante a desempenhar, que é o de ajudar os teólogos a explorar e analisar, de modo mais cuidadoso, a condição humana. Trata-se de um aspecto crucial do trabalho dos teólogos cuja disciplina requer que facilitemos um entendimento da fé em Deus e da relação entre Deus e a humanidade. Se a Igreja como instituição deve estar mais integralmente relacionada com as pessoas, então precisamos ouvir mais de perto a experiência delas. As ciências humanas podem nos ajudar neste sentido.

IHU On-Line - Qual a importância e os principais frutos do diálogo entre as teologias do Terceiro Mundo, a Teologia Negra e as teologias pós-modernas?
Emmanuel Lartey -
As teologias do Terceiro Mundo, Negra e pós-modernas tentam abordar aspectos particulares da condição humana. O diálogo entre elas, creio eu, nos deu (e ainda nos dá) condições de obtermos imagens mais exatas e relevantes do que os seres humanos, criados à imagem de Deus, estão vivenciando no mundo criado por ele. O diálogo aqui nos tem ajudado a ver como, às vezes, as ações de uma parte da humanidade têm efeitos prejudiciais em outras partes desta mesma humanidade; como às vezes os seres humanos bem-intencionados em uma parte do mundo podem oprimir e desumanizar outros seres humanos. Além disso, esse tipo de diálogo pode evitar uma espécie de discurso “totalizante” ou “absolutizante” que, infelizmente, tem caracterizado as representações cristãs do passado. Na medida em que cada um escuta o outro, podemos aprender algo a partir da vastidão da experiência humana e captar alguns aspectos da sabedoria multiforme de Deus.

IHU On-Line - A partir da experiência da diáspora africana, qual a novidade introduzida pela Teologia Negra e como ela expressa a fé dos povos do continente?
Emmanuel Lartey -
A Teologia Negra articula as experiências dos negros no mundo. Busca explorar a fé dos negros e o que significou ser negro neste mundo para as pessoas que fazem parte da diáspora africana. Enquanto a teologia africana buscou analisar como a experiência africana de vida e fé se parece no continente africano, as teologias negras (América do Norte, Caribe, Europa e uma voz emergente da América do Sul) se centraram nas experiências dos africanos (escravizados e livres) nos contextos diaspóricos. No capítulo 2 do livro Postcolonializing God, mostro como os africanos levados para longe de seus países de origem criativamente empregaram — às vezes por meio da imitação, outras vezes por improvisação e ainda sob outras formas — o que eles tinham de sua herança africana e o que eles estavam encontrando nos novos ambientes para manifestar e, ativamente, incorporar sua humanidade, seu sentido e fé através de rituais. Uma atenção para os primeiros anos da experiência de escravidão e para os desenvolvimentos dos movimentos espirituais que não eram cristãos aponta para uma novidade substancial, bem como para uma criatividade engajadora dos africanos na diáspora.

IHU On-Line - Aquele que crê no Deus pós-colonizado tem sua fé fortalecida, a ponto de que sua crença esteja mais baseada na liberdade de consciência e menos nos dogmas religiosos estabelecidos por outros?
Emmanuel Lartey -
Eu sustentaria que é a iniciativa divina de promover a liberdade de consciência e de desafiar o dogma criado exclusivamente por um grupo de seres humanos e imposto sobre os demais. Portanto, potencialmente, a fé na sabedoria multifacetada e na grandeza infinita do Deus de toda a Criação pode ser fortalecida pela exploração das atividades de Deus que pós-coloniza, bem como pelos trabalhos daqueles que, em resposta ao Deus que pós-coloniza, também se engajam em atividades pós-colonizantes.

IHU On-Line - Até que ponto pode-se dizer que a racionalidade cristã tem raízes na teologia judaica, na filosofia grega e na política romana?
Emmanuel Lartey -
A racionalidade cristã historicamente foi, de fato, moldada pela teologia judaica, pela filosofia grega e pela política romana. O argumento que apresento é o de que isto não precisa continuar a ser o caso. A racionalidade cristã pode e precisa se desenvolver para além dos limites dos pensamentos e perspectivas judaicos, gregos e romanos. Sustento que transcender estes limites seja um desejo expresso do Deus de toda a Criação. As atividades divinas registradas na Bíblia e na história do mundo apontam para um Deus cuja ação parece estar direcionada à promoção da diversidade, e não da homogeneidade. Deus, me parece, deseja que a conversa sobre ele e a experiência que se tem dele sejam empreendidas por toda a humanidade, e não apenas por judeus, gregos e romanos. Então, isso é exatamente o que o Deus pós-colonizante tenta fazer, começando pela experiência africana no mundo.

Para algumas pessoas que serão críticas quanto ao meu texto, a racionalidade está intrinsecamente baseada na teologia judaica, na filosofia grega e na política europeia. Para eles, a teologia cristã somente pode ser feita nestes termos. Esta tem sido a lógica que desautoriza experiências genuínas do Deus Triuno, porque elas não estavam em condições de se adequar às estruturas predeterminadas definidas dentro de um âmbito europeu. Eu discordo. A meu ver, a racionalidade cristã precisa refletir a criatividade divina em sua fonte e desígnio.

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