Edição 438 | 24 Março 2014

Totalitarismo – O filho bastardo da modernidade

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Márcia Junges e Andriolli Costa

O filósofo Adriano Correia Silva chama atenção para a barbárie instituída e a banalidade do mal como o desafio que os tempos sombrios apresentam à compreensão

Ao debruçar-se sobre a banalidade do mal, Hannah Arendt reforça que o termo não se refere a uma doutrina ou teoria, mas a características bastante factuais, cujo único traço distintivo seria uma extraordinária superficialidade. “A banalidade do mal tem a ver, antes de tudo, com a concepção de um mal no qual frequentemente não há conexão entre motivos e feitos e no qual a magnitude da maldade do agente e de seus interesses egoístas é flagrantemente desproporcional com relação à magnitude de seus feitos”, esclarece o filósofo Adriano Correia Silva.

“Penso que o central na interpretação arendtiana é o estabelecimento de vínculos entre a ascensão do totalitarismo e elementos centrais à modernidade política europeia, como o antissemitismo, o imperialismo e a sociedade de massas”, defende ele, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Ainda que bastardo, por assim dizer, o totalitarismo é filho da modernidade política e não pode ser assimilado sem mais à pura barbárie”, conclui.

Adriano Correia Silva possui graduação em Filosofia (bacharelado e licenciatura) pela PUC de Campinas e mestrado em Filosofia pela mesma universidade. É também mestre em Educação e doutor em Filosofia pela Unicamp. Leciona desde 2006 na Universidade Federal de Goiás – UFG, onde atua como diretor da Faculdade de Filosofia. Silva foi organizador dos livros Transpondo o abismo: Hannah Arendt entre a filosofia e a política (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002) e Hannah Arendt e a condição humana (Salvador: Quarteto, 2006). Publicou ainda o livro Hannah Arendt (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007) e assina a apresentação da edição brasileira do livro A Condição Humana (São Paulo: Forense Universitária, 2003), da própria Arendt.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que é o mal radical? Qual é a concepção de Kant sobre esse conceito?
Adriano Correia Silva
- Arendt emprega o conceito de “mal radical” no finalzinho de As origens do totalitarismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1997), para se referir ao mal que teria se traduzido na tentativa de erradicação da pluralidade humana nos campos de extermínio. Ainda que faça referência a Kant, Arendt associa o termo radical a extremo ou absoluto, o que não é o caso em Kant. Na busca por identificar o fundamento da propensão para o mal no homem, Kant se vê diante da dificuldade de ter de conciliar natureza e liberdade. Com efeito, se compreendemos o mal como decorrente de algum condicionamento natural, ainda que seja uma fraqueza, necessariamente o homem seria inimputável, pois não poderia ser considerado efetivamente responsável (na medida em que não é livre) pelas ações que desencadeasse. Kant, por razões óbvias, busca evitar tal compreensão, sustentando que há no homem uma propensão para o mal, mas antes como uma tendência deliberativa, por assim dizer, e não como algum impulso natural. Essa tendência deliberativa equivale a uma propensão a permitir que considerações não morais provenientes das inclinações ou apetições venham a pesar mais que as considerações morais consoantes ao imperativo categórico e sua demanda de que nossas máximas ou regras de ação possam ser universalizadas para todo agente racional. Assim, o mal radical em Kant não se refere a alguma forma particular de mal ou a alguma de suas manifestações nas ações dos homens, mas mais propriamente ao fundamento da possibilidade de todo mal moral.

IHU On-Line - E como podemos compreender adequadamente a ideia de banalidade do mal de Hannah Arendt?
Adriano Correia Silva -
No ensaio Pensamento e considerações morais , de 1971, Arendt sustenta que com a expressão banalidade do mal “não se referia a teoria ou doutrina alguma, mas a algo bastante factual, o fenômeno dos feitos maus, cometidos em escala gigantesca e que não poderiam ser reportados a qualquer tipo particular de fraqueza, patologia ou convicção ideológica no agente, cujo único traço pessoal distintivo era talvez uma extraordinária superficialidade”. É claro que não se trata de uma doutrina, mas talvez não seja o caso de assumir sua perspectiva simplesmente como a descrição de um “fato”. Em todo caso, a banalidade do mal tem a ver antes de tudo com a concepção de um mal no qual frequentemente não há conexão entre motivos e feitos e no qual a magnitude da maldade do agente e de seus interesses egoístas é flagrantemente desproporcional com relação à magnitude de seus feitos. O fundamental no conceito de banalidade do mal, no que diz respeito aos efeitos, é a capacidade altamente devastadora da ausência de profundidade dos agentes; no que diz respeito à sua dinâmica, desafia a convicção generalizada de que toda maldade resulta do ceder à tentação; e quanto ao caráter do malfeitor, confronta a crença comum atinente à suposição de que todo ato mal se encontra arraigado em alguma perversão especial do agente, notadamente o egoísmo.

IHU On-Line - Quais são as diferenças fundamentais entre ambos os conceitos?
Adriano Correia Silva -
Penso que a diferença fundamental concerne à lógica ou à dinâmica da tentação. O fundamental no uso feito por Hannah Arendt do conceito de mal radical em As origens do totalitarismo é a identificação entre mal radical e mal absoluto ou extremo, como mencionei acima. De outro lado, o essencial na sua preterição do conceito de mal radical em Eichmann em Jerusalém (São Paulo: Companhia das Letras, 1999) em nome do conceito de banalidade do mal se deve basicamente à atenção dispensada por ela às origens etimológicas da palavra radical (de raiz, não mais de extremo), e ausência de raízes daquela forma de manifestação de mal tipificada na conduta de Eichmann. Com efeito, isto é que teria feito com que ela deixasse de usar o conceito, justamente porque julgava ser característica fundamental do fenômeno do mal com o qual estava lidando a ausência de qualquer profundidade. Quando responde às críticas de Gershom Scholem  a seu livro sobre o julgamento de Eichmann, Hannah Arendt afirma que teria, de fato, como ele indica, mudado de opinião e passado a utilizar o termo banalidade do mal não por ter deixado de sustentar que o mal perpetrado pelos nazistas era extremo, como já havia ressaltado em As origens do totalitarismo, mas por julgar que ao menos o mal com o qual estava lidando não possuía qualquer profundidade ou dimensão demoníaca. A banalidade desse mal cristalizado na figura de Eichmann se assentaria no fato de que ele não possui raízes, motivos egoístas e utilidade. Isso não quer dizer, é claro, que todo mal seja banal.

IHU On-Line - Em que medida a temática do mal é um tema recorrente ao longo dos escritos dessa pensadora alemã?
Adriano Correia Silva -
Em meados do século passado, Arendt chegou a afirmar que o problema do mal poderia vir a ser a questão fundamental da reflexão filosófica do pós-guerra. Não esteve de todo certa nem de todo errada. Muitos refletiram sobre o problema do mal, notadamente em decorrência da perplexidade ante os eventos da última grande guerra mundial, principalmente os campos de concentração e extermínio, mas a questão do mal não se tornou a preocupação central da filosofia no pós-guerra — se é que se pode dizer que houve alguma. A própria Arendt detém-se sobre o tema apenas rapidamente em As origens do totalitarismo, ainda que em um movimento nodal de sua análise, na conclusão. O ponto de inflexão de seu interesse foi justamente o Caso Eichmann e as implicações de sua tipificação do personagem histórico. A partir de Eichmann em Jerusalém parte significativa da produção arendtiana até A vida do espírito foi orientada pela pergunta sobre se o pensamento pode em alguma medida operar como um obstáculo para a perpetração deliberada do mal.

IHU On-Line - Que relações Arendt estabelece entre a questão da política e do mal em nosso tempo?
Adriano Correia Silva -
Ainda que a questão do mal tenha sido abordada na história da filosofia em termos de teologia, teodiceia ou filosofia moral, não é possível compreender a reflexão arendtiana sobre o mal sem considerar que para ela a “banalidade do mal” configura-se sobremaneira como um mal ético/político. Se, por um lado, a banalidade do mal diz respeito a uma sempre possível ausência de reflexão, ao abandono do indivíduo por si próprio em sua recusa a pensar, concerne ainda, por outro lado, ao desamparo das massas, concebidas tanto como resíduo da produção capitalista quanto como produto da dominação totalitária. Importante para Arendt é indicar que o caráter frequentemente inócuo em política da ausência de pensamento torna-se devastador nas condições das sociedades de massas, nas quais tal irreflexão é fomentada e o adesismo dos que meramente se deixam levar é zelosamente canalizado como força motriz da estruturação burocrática do Estado moderno. Ainda que o cuidado de si não redunde em cuidado com o mundo, nas condições das sociedades modernas de massas o descuido de si é sempre potencialmente devastador para o mundo.

IHU On-Line - Quais são as linhas mestras de Origens do totalitarismo na interpretação da modernidade política?
Adriano Correia Silva -
No prefácio de As origens do totalitarismo, Arendt indica que é tarefa do livro enfrentar com coragem — isto é, sem ceder a generalizações mecanicistas ou articulações teóricas dogmáticas — o fardo de nosso tempo, notadamente o desafio que os tempos sombrios apresentam à compreensão. Penso que o central na interpretação arendtiana é o estabelecimento de vínculos entre a ascensão do totalitarismo e elementos centrais à modernidade política europeia, como o antissemitismo, o imperialismo e a sociedade de massas. Ainda que bastardo, por assim dizer, o totalitarismo é filho da modernidade política e não pode ser assimilado sem mais à pura barbárie.

IHU On-Line - Qual é a contribuição de Arendt para se pensar o limite entre humanidade e animalidade na política dos últimos séculos?
Adriano Correia Silva
- A definição da fronteira entre humanidade e animalidade não ocupa o primeiro plano de preocupações de Arendt. Não obstante, tal questão subjaz a suas reflexões sobre a política moderna, notadamente quando reflete sobre a vitória do animal laborans, do trabalhador-consumidor. Para Arendt o trabalho é uma das atividades humanas básicas, na medida em que responde a uma das condições fundamentais da existência — a vida. Ela sempre repetia a definição marxiana do trabalho como metabolismo entre homem e natureza. Das atividades humanas fundamentais — dentre as quais ela menciona ainda a fabricação, que corresponde à condição humana da mundanidade, e a ação, que corresponde à condição humana da pluralidade —, o trabalho é a única que não opera como diferença específica entre os homens e os outros viventes. Stricto sensu, o limite entre humanidade e animalidade é definido na nossa capacidade de edificação de mundo, de reificação. Não é outra a razão de a vitória do trabalhador-consumidor, convertido em modo de vida, ser tão decisiva para pensar a modernidade política, pois é o próprio mundo que é posto em questão. Ela conclui A condição humana (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000) sustentando que há vários indícios “do perigo de que o homem possa estar disposto e realmente esteja a ponto de converter-se naquela espécie animal da qual, desde Darwin, ele imagina descender”.

IHU On-Line - A partir da obra de Agamben, quais são as aproximações entre os diagnósticos de Arendt e Foucault sobre a modernidade política?
Adriano Correia Silva -
No prefácio de sua obra Homo sacer: o poder soberano e a vida nua (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002), Giorgio Agamben evoca a companhia de dois vigorosos intérpretes dos tempos modernos: Michel Foucault e Hannah Arendt. Em Michel Foucault ele julga encontrar a clara definição de uma biopolítica que inclui a vida biológica nos mecanismos e cálculos do poder estatal; em Arendt, na descrição, em A condição humana, da vitória do tipo ou mentalidade que nomeia animal laborans, ele pôde identificar a associação entre primado da vida natural e decadência do espaço público na era moderna. Ainda em Arendt, ele encontra a inédita posição dos campos de concentração como instituição central da dominação totalitária. Não obstante, julga não encontrar em ambos os pensadores elementos suficientes para caracterizar o paradigma biopolítico moderno, o campo de concentração como espaço próprio da exceção, no qual o limiar em que se tocam norma e exceção se espraia e os torna indistintos. Penso que tanto as análises sobre o racismo feitas por Foucault na última aula do curso Em defesa da sociedade (São Paulo: Martins Fontes, 2005), por exemplo, quanto o exame dos vínculos entre As origens do totalitarismo e A condição humana, de Arendt — como examinei na apresentação da tradução brasileira dessa última obra — põem em questão a interpretação agambeniana, que é muito inspiradora, em todo caso.

IHU On-Line - Em que sentido a política ocidental é originariamente biopolítica?
Adriano Correia Silva -
Sete anos após a publicação de Homo sacer I: o poder soberano e a vida nua, Giorgio Agamben publicou a obra O aberto (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013), cujo sugestivo subtítulo é: o homem e o animal. Em um trecho dessa obra aparece a seguinte afirmação: “o conflito político decisivo que governa todo outro conflito é, em nossa cultura, o conflito entre a animalidade e a humanidade do homem. A política ocidental é, pois, co-originariamente biopolítica”. A implicação fundamental dessa afirmação, em Agamben, é a conclusão de que desde a polis grega há uma imbricação entre vida biológica e política e, em vista disso, não podemos conceber uma réplica política à modernidade biopolítica na história política ocidental. Seguramente, Arendt e Foucault, a despeito das inúmeras diferenças entre as obras de ambos, silenciadas aqui, jamais identificariam na política ocidental, desde seus primórdios, a lógica da soberania, nem remeteriam a gênese da soberania para aquém da modernidade: a soberania, para ambos, é gêmea da modernidade. Com relação à biopolítica, Foucault sustenta que ela é coetânea da modernidade política, quando o biológico passou a se refletir no político, e as questões relativas à gestão da vida individual e coletiva passaram a ser o alvo privilegiado do poder político.

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