Edição 437 | 17 Março 2014

Dom Hélder Câmara, uma vida de transformação e resistência

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Ricardo Machado

Para o profesor e historiador Nelson Piletti, o O arcebispo de Olinda e Recife foi a principal liderança católica do país dos últimos 60 anos

A vivência com as lideranças políticas do Brasil, incluindo os militares que desencadearam o golpe em 1964, desde a década 1930 permitiu que Dom Hélder Câmara aprimorasse a capacidade de diálogo e ampliasse sua compreensão sobre seu papel político no sociedade. Como poucos, soube entender, ainda no calor dos acontecimentos, as transformações pelas quais o país estava passando e os riscos de tais movimentos. “Dom Hélder, como principal liderança católica dos últimos 60 anos no Brasil, proporcionou uma adaptação da Igreja e dos católicos às mudanças profundas que ocorreram na sociedade brasileira nesse período, tornando a sua instituição comprometida com a democracia, a justiça social e a defesa dos direitos humanos, e com isso ajudando a transformar a sociedade brasileira”, conta o professor e historiador Nelson Piletti, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Quando o golpe se tornou realidade e Jango foi deposto, em 1964, Dom Hélder manteve “uma difícil posição de ‘neutralidade e expectativa’”, o que o levou a se encontrar várias vezes com Castelo Branco e Costa e Silva. “No seu discurso de posse no arcebispado de Olinda e Recife, ele advertiu a todos que não estranhassem o fato de que ele manteria o diálogo com todos os segmentos sociais e políticos de Pernambuco e do país”, frisa Piletti. “Depois, ele teve a coragem de dizer ‘não’ aos poderosos, ao denunciar publicamente que o Regime Militar promovia torturas e o extermínio físico de membros da oposição ao governo. Sua atuação foi de fato heroica e destemida, um exemplo extraordinário de um homem indignado com as circunstâncias em que viviam os seus semelhantes”, complementa. Mais do que a herança política, Dom Hélder, que foi, inclusive, indicado ao Nobel da Paz na década de 1970, deixou o ensinamento de que a “fé, por mais fervorosa que seja, como era a dele, não se combina com a injustiça, com a humilhação e a exploração do outro; enfim, a fé também pode libertar os seres humanos do fanatismo e da intolerância”, ressalta o historiador.

Nelson Piletti possui graduação em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul - UCS, graduação em Jornalismo pela Universidade de São Paulo - USP, graduação em Pedagogia pela Faculdades Integradas de Guarulhos – FIG. Realizou mestrado e doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente é professor associado da Universidade de São Paulo – USP e autor, entre outros, dos livros Dom Hélder Câmara - O Profeta da Paz (São Paulo: Contexto, 2008), Dom Hélder Câmara: entre o poder e a profecia (São Paulo: Ática, 1997) e História e Vida (São Paulo: Ática, 1989).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – 50 anos depois do Golpe Civil-Militar, qual o legado de Dom Hélder para a sociedade brasileira e para a Igreja Católica?

Nelson Piletti - Entre os estudiosos da história da Igreja Católica no Brasil existe um amplo reconhecimento de que Dom Hélder Câmara foi um dos maiores líderes religiosos da história do Brasil. A pergunta é oportuna porque as contribuições de Dom Hélder para a Igreja Católica e para a sociedade brasileira foram tão importantes, que as assimilamos sem nem recordarmos hoje que foi necessária a sua ação política e religiosa catalisadora e articuladora para que ocorressem. Dom Hélder, como principal liderança católica dos últimos 60 anos no Brasil, proporcionou uma adaptação da Igreja e dos católicos às mudanças profundas que ocorreram na sociedade brasileira nesse período, tornando a sua instituição comprometida com a democracia, a justiça social e a defesa dos direitos humanos, e com isso ajudando a transformar a sociedade brasileira.   

 

IHU On-Line – Devido à sua ação contínua de resistência à Ditadura Militar, Dom Hélder Câmara  foi inclusive indicado ao Nobel da Paz. Qual foi a trajetória que ele percorreu para receber este reconhecimento mundial? 

Nelson Piletti - A partir do envolvimento do então padre Hélder Câmara nos movimentos de Ação Católica , na década de 1940, ele teve que enfrentar questões políticas e organizacionais práticas, que envolviam a preparação da Igreja católica para manter e ampliar a sua influência em um país que estava se urbanizando rapidamente, com grandes movimentos migratórios do campo para as cidades, que estava se industrializando, e que após o fim da ditadura de Getúlio Vargas  em 1945, estava também democratizando a sua vida política, com uma influência crescente dos movimentos sociais no campo e na cidade e do Partido Comunista. No campo religioso a Igreja católica começava a se deparar com a expansão das denominações protestantes. Então, o Padre Hélder Câmara propôs e organizou uma vigorosa participação do laicato católico na vida política do país, através dos Movimentos de Ação Católica, como a Juventude Operária Católica - JOC  e a Juventude Universitária Católica - JUC , por exemplo, mas com ênfase maior nos movimentos voltados para a juventude. Ele também agregou os bispos brasileiros na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que ele funda e comanda como Secretário Geral até 1964, e que viria a se tornar a instituição que mais influência teve sobre a atualização da inserção política e social da Igreja católica no Brasil nos últimos 50 anos. 

Só até esse momento da fundação da CNBB , em 1952, já bastaria para que fosse marcante a sua influência sobre o catolicismo e a sociedade brasileira. Mas ele ainda conseguiu difundir entre os católicos a ideia de uma missão temporal, de responsabilidade de todos com o cuidado com as condições de vida, com a integridade dos mais pobres, ao invés da preocupação exclusiva com a salvação da alma dos fiéis, que caracterizava o ideário católico até então. 

 

IHU On-Line – Como foi a participação de Dom Hélder no Concílio Vaticano II e como isso se refletiu no seu trabalho como arcebispo de Olinda e Recife durante o regime de exceção?

Nelson Piletti - Quando ocorre o Concílio Vaticano II  (1962-1965), Dom Hélder vinha de uma intensa atuação articuladora do episcopado no plano internacional, tendo contribuído para a fundação do Conselho Episcopal Latino Americano - Celam . Por isso, ele teve uma atuação decisiva nos bastidores do Concílio, articulando os episcopados de várias partes do mundo em favor de reformas internas na Igreja católica, muitas das quais o Papa Francisco  volta a discutir atualmente, como a reforma da Cúria Romana. Ele chegava a defender a extinção do chamado Banco do Vaticano, mas sempre sem entrar em confronto com as orientações de João XXIII  e depois do Papa Paulo VI , com quem mantinha uma grande amizade.

 

IHU On-Line – Como foi o pronunciamento de Dom Hélder Câmara, recém-chegado ao Recife, 15 dias após o Golpe Militar? Qual foi o seu impacto no regime?

Nelson Piletti - Como ele era uma pessoa e uma liderança religiosa e política que desde a década de 1930 mantinha relações de amizade com vários representantes da cúpula militar que tomaria o poder no país após o golpe de 1964, já como arcebispo de Olinda e Recife, assumiu uma difícil posição de "neutralidade e expectativa" que o levaria a se encontrar várias vezes com os presidentes Castelo Branco e Costa e Silva, visando "aparar as arestas" no relacionamento entre a Igreja e o regime ditatorial, até passar a ser também perseguido em razão da defesa que fazia dos presos políticos. No seu discurso de posse no arcebispado, ele advertiu a todos que não estranhassem o fato de que ele manteria o diálogo com todos os segmentos sociais e políticos de Pernambuco e do país. Depois, ele teve a coragem de dizer “não” aos poderosos, ao denunciar publicamente que o Regime Militar promovia torturas e o extermínio físico de membros da oposição ao governo. Sua atuação foi de fato heroica e destemida, um exemplo extraordinário de um homem indignado com as circunstâncias em que viviam os seus semelhantes.

 

IHU On-Line – Onde surgiu e como funcionava a metodologia da Ação Católica? Por que esse movimento foi importante no protagonismo de algumas lideranças da Igreja Católica?

Nelson Piletti - Para Dom Hélder, os católicos, leigos e sacerdotes não deveriam se preocupar apenas com a salvação das suas almas, mas também com a melhoria nas condições de vida dos seus irmãos. Podemos recordar o seu esforço para que os católicos atuassem politicamente em associações, sindicatos, partidos e até em equipes governamentais para a busca de soluções aos problemas sociais do país, para a superação da miséria e da injustiça. Por isso Dom Héder foi o principal artífice da fundação de uma CNBB. Inspirado pelo famoso lema “Ver, Julgar e Agir”, ele incentivou o engajamento dos movimentos leigos da Ação Católica como a JAC , JEC , JIC , JOC e JUC, em prol da justiça e da democracia em nosso país, lutando sempre em defesa dos direitos humanos, da reforma agrária, enfim, para a construção de condições de vida melhores para os trabalhadores do campo e da cidade.

 

IHU On-Line – De que maneira se deu a perseguição militar a Dom Hélder Câmara? 

Nelson Piletti - Nós podemos recordar que, quando foi alvo do famoso sequestro do qual participaram várias lideranças políticas atuais que na época atuavam na resistência armada ao regime militar, o então embaixador norte-americano Charles Elbrick  chegou a cogitar que os Estados Unidos consideravam Dom Hélder como um possível presidente do Brasil, em uma virtual saída civil à ditadura militar. Sabendo disso, para evitar o crescimento do seu prestígio dentro e fora do país, os ocupantes do poder conseguiram inviabilizar sua candidatura ao Prêmio Nobel, por meio de uma sigilosa campanha que contou com a colaboração de empresários noruegueses e brasileiros — dentre os quais os donos do jornal O Estado de São Paulo — para influenciar na decisão do Comitê do Parlamento norueguês responsável pela atribuição do prêmio. Para silenciá-lo, o governo brasileiro proibiu que notícias a seu respeito fossem veiculadas na imprensa. Vários de seus colaboradores foram perseguidos, presos e torturados, um dos quais chegando a ser barbaramente assassinado, o jovem padre Antônio Henrique Pereira Neto , em um crime ainda não totalmente esclarecido.

 

IHU On-Line – Qual a importância de Dom Hélder na CNBB durante o regime militar? 

Nelson Piletti - Ele teve a atuação mais visível de denunciar publicamente a prática de tortura em nosso país por parte do Estado. Mas ele teve também uma atuação muito importante, mas pouco percebida para quem estava fora da instituição católica e não conhecia a sua vida interna. Dom Hélder se manteve como um interlocutor das lideranças religiosas que dirigiram a CNBB e de vários leigos católicos influentes que buscavam um diálogo com os governos Médici  e Geisel , buscando evitar o confronto aberto entre Estado e Igreja no Brasil e promovendo a colaboração para que inúmeras pessoas que foram aprisionadas clandestinamente por grupos paramilitares fossem localizadas, salvas dos interrogatórios com uso de tortura e libertadas. Mas ele também colocou em prática uma forma de ação pastoral protagonizada pelos próprios membros das camadas populares, denominada por ele como “Encontro de irmãos”, que funcionava como as Comunidades Eclesiais de Base . Enfim, ele foi uma liderança política e religiosa completa, pois tinha a visão de estadista que articulava tomadas de decisões da Igreja Católica em âmbito nacional e internacional e se envolvia diretamente na vida cotidiana das pessoas que mais sofrem em nosso país. 

 

IHU On-Line – A Igreja, a exemplo de diversos setores da sociedade, entrou dividida no Golpe civil-militar. Como a postura de não violência de Dom Hélder e de contestação ao regime foi vista pela Igreja?

Nelson Piletti - Nós não podemos esquecer a complexidade da atuação da Igreja como instituição “católica”, isto é, que se pretende “universal”. Então esta divisão da instituição como um todo talvez não tenha ocorrido, embora na base da sociedade, nos movimentos sociais e nas paróquias e entre as lideranças tenham ocorrido conflitos importantes de setores favoráveis ou contrários ao Golpe Militar. A liderança da Igreja Católica na época, os cardeais, a nunciatura e os líderes leigos católicos não pretendiam um confronto aberto e o rompimento com o Estado e com os governantes que tomaram o poder após o golpe militar. Então, nós podemos resumir a atuação de Dom Hélder como uma difícil, mas corajosa ação pacífica em favor da justiça, da democracia, dos direitos humanos, que envolvia a denúncia das prisões e torturas, da concentração de renda que então progredia em nosso país, mantendo a tentativa de dialogar com os governantes para influenciá-los para que atuassem a favor do retorno da democracia. Agora, respondendo diretamente, esta difícil atuação de Dom Hélder muitas vezes não era compreendida por setores mais conservadores do episcopado brasileiro e da Cúria Romana, que o criticaram e tentaram limitar suas ações.

 

IHU On-Line- Como Dom Hélder inscreve sua trajetória na história do Brasil? 

Nelson Piletti - Dom Hélder deixou como marca inconfundível da Igreja Católica no Brasil o compromisso com a democracia e com a busca de soluções para os problemas sociais. A participação de sacerdotes e leigos em movimentos sociais e organizações da sociedade civil, a exemplo do que ocorre nos movimentos pastorais e em uma organização importantíssima como a CNBB, e em milhares de organizações não governamentais espalhadas pelo país, considero que é a sua maior herança política. Sua maior herança religiosa foi o ensinamento de que a fé, por mais fervorosa que seja, como era a dele, não se combina com a injustiça, com a humilhação e a exploração do outro; enfim, a fé também pode libertar os seres humanos do fanatismo e da intolerância.  

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