Edição 437 | 17 Março 2014

Repressão e modernização: impactos do regime militar nas universidades

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Ricardo Machado e Andriolli Costa

Rodrigo Patto Sá Motta destaca que o Estado promovia reivindicações antigas dos próprios acadêmicos ao mesmo tempo que reprimia direitos e impunha o autoritarismo

O modelo ao mesmo tempo progressista e conservador instaurado pelos militares no pós-64 também se refletiu no sistema educacional brasileiro. Iniciativas como o desenvolvimento de planos para o incentivo à pesquisa de pós-graduação, estabelecimento da docência em tempo integral e aumento de verbas para pesquisa correram em paralelo à agressiva repressão à política estudantil e à delação de professores e acadêmicos “comunistas” subversivos ao regime. Conforme o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, “o sistema superior tornou-se, simultaneamente, mais autoritário e mais moderno, um paradoxo”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Motta destaca a influência militar no sistema educacional, evidencia os níveis da participação política na definição das novas estruturas físicas e curriculares das universidades e ressalta o processo que levou ao desmantelamento e repressão à União Nacional dos Estudantes – UNE. “A ditadura elaborou duas linhas de ação para enfrentar o ‘problema’ estudantil: de um lado, óbvio, investiu em estruturas repressivas e de informação; de outro lado, foram desenhadas políticas para atrair os jovens, ou pelo menos para reduzir seu impulso radical”. 

Rodrigo Patto Sá Motta é graduado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, onde também obteve o título de mestre nesta área. Na Universidade de São Paulo, realizou o doutorado em História Econômica, e na University of Mariland, nos Estados Unidos, obteve o título de pós-doutor. Atualmente, é professor da UFMG. É autor de inúmeras obras, dentre as quais destacamos Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (São Paulo: Editora Perspectiva/Fapesp, 2002), Jango e o golpe de 1964 na caricatura (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006) e Introdução à história dos partidos políticos brasileiros (Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008). Este ano ele lançou dois outros livros A ditadura que mudou o Brasil (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014), organizado juntamente com Daniel Aarão Reis e Marcelo Ridenti, e As universidades e o regime militar (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014).

Motta participa do ciclo de estudos 50 anos do Golpe de 64: Impactos, (des)caminhos, processos, com a palestra Modernização Conservadora: impactos do regime militar nas universidades no dia 15-04-2014, às 19h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no Instituto Humanitas Unisinos-IHU. Mais informações http://bit.ly/Golpe50Anos.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Que impactos o regime militar trouxe à formação universitária no Brasil? O que foi rompido com os modelos anteriores e o que foi criado?

Rodrigo Patto Sá Motta - A ditadura implantou um novo modelo universitário, que resultou de uma mistura entre impulsos repressivo-autoritários e modernizadores. Este é o eixo que explica as políticas universitárias da ditadura, e foi a base de minha análise no livro que estou lançando (As universidades e o regime militar, Rio de Janeiro: Zahar, 2014). O primeiro aspecto tem relação com o caráter autoritário do novo Estado, que tinha entre seus fundamentos proteger a ordem tradicional e combater o comunismo (e as esquerdas em geral). Por isso foram feitos expurgos de estudantes e professores, principalmente, por meio de vários mecanismos (as aposentadorias compulsórias e o decreto 477 , por exemplo). A comunidade universitária foi constantemente vigiada, inclusive com agências de informação específicas (Assessorias de Segurança e Informações - ASI ), e nos momentos agudos houve invasões policiais e prisões nos campi. Estudantes e professores foram torturados, e alguns deles, mortos, sendo que a violência maior foi destinada aos envolvidos com as organizações de esquerda revolucionária. 

Paralelamente à violência, o Estado lançou um programa de modernização que tornou as universidades mais modernas e aparelhadas, atendendo a algumas reivindicações antigas dos próprios acadêmicos: criação de um sistema de pós-graduação, reestruturação da carreira docente (o tempo integral), aumento de verbas para pesquisas, entre outras medidas. Algumas mudanças administrativas também foram importantes para a constituição desse novo modelo universitário, como a criação dos Departamentos como células básicas e a concentração do poder nas reitorias (aí incluído seus órgãos auxiliares). Portanto, o sistema superior tornou-se, simultaneamente, mais autoritário e mais moderno, um paradoxo.

 

IHU On-Line – Por que movimentos sociais como a União Nacional dos Estudantes – UNE  foram duramente reprimidos durante o período de exceção?

Rodrigo Patto Sá Motta - Para os militares e a direita civil, a UNE representava a força da esquerda nos meios estudantis, um dos principais focos de oposição ao poder da ditadura. Eles pensavam que a entidade era uma das principais articuladoras do movimento estudantil radical, e por isso resolveram bani-la. A ditadura tentou criar entidades estudantis chamadas “democráticas”, que na verdade eram anticomunistas, com o propósito de concorrer pelo coração dos estudantes, mas sem sucesso . Mesmo proibida, a UNE continuou uma referência importante para as lideranças estudantis, até que foi refundada na época da abertura política (em 1979).

 

IHU On-Line – Como a ideologia vigente durante os governos militares acabou se refletindo na estrutura física (criar campus em áreas gigantes com pouca concentração de prédios) e curricular (cursos separados por disciplinas, não por turmas) das universidades?

Rodrigo Patto Sá Motta - Na verdade, o modelo de cidades universitárias fora dos grandes centros não foi invenção da ditadura, pois já era um desejo de muitos acadêmicos anteriormente. A UnB, que foi criada antes do golpe, e com muita participação de intelectuais de esquerda, foi desenhada como uma cidade universitária, e vários outros campi foram planejados nos anos 1940 e 1950. A ditadura se apropriou desses projetos e os implantou, de forma autoritária e elitista, por certo, mas não era um projeto especificamente militar. Do ponto de vista da contenção política, confinar estudantes em um campus pode ser perigoso também. Quanto à mudança nas estruturas curriculares, foi adotada uma reforma baseada no modelo norte-americano. Talvez houvesse alguma intenção política também, mas o mais importante foi o argumento de que significaria economia de custos para o sistema universitário, com aumento da flexibilidade e otimização de recursos.

 

IHU On-Line – Por que durante e após o regime militar os estudantes das áreas de humanidades são, via de regra, rotulados como marxistas ? Isso está mais relacionado a uma questão teórica ou se trata de um reducionismo com o objetivo de associá-los a um modelo oposto ao Estado vigente?

Rodrigo Patto Sá Motta - Existe um mito nessa representação sobre os estudantes da área de Humanas. Especialmente hoje em dia isso não funciona bem, porque a influência das esquerdas nos meios estudantis diminuiu muito. No entanto, na época da ditadura o quadro foi bem diferente, pois um número expressivo de jovens universitários tinha realmente inclinação esquerdista. Isso está comprovado em pesquisas de opinião (cito algumas no meu livro), e também no fato de que a maioria dos militantes da luta armada vinha dos meios estudantis. 

A ditadura encarou os estudantes como um desafio sério ao seu poder, e por isso as universidades tornaram-se ainda mais estratégicas, pois eram foco de recrutamento para a oposição. Nem todos eram marxistas, claro, muitos eram jovens radicais em busca de referências ideológicas para lutar contra a ditadura, mas o marxismo era bem influente. A ditadura elaborou duas linhas de ação para enfrentar o “problema” estudantil: de um lado, óbvio, investiu em estruturas repressivas e de informação; de outro lado, foram desenhadas políticas para atrair os jovens, ou pelo menos para reduzir seu impulso radical, e aí entraram tanto projetos como o Rondon  quanto a própria modernização das universidades, que atendia também a uma estratégia política (aplacar as críticas da oposição). 

 

IHU On-Line – Que contraste há entre o modus operandi de ensino do regime de exceção e de nosso período atual? Estamos estagnados ou avançamos?

Rodrigo Patto Sá Motta - Em muitos aspectos as coisas melhoraram, é claro. Hoje existe muita liberdade nos campi, e a comunidade universitária influencia bastante as decisões e a gestão das instituições. Outra mudança fundamental: as universidades da ditadura eram mais elitistas, enquanto hoje existem políticas para democratizar o acesso às pessoas mais pobres, o que tem trazido alguns bons resultados. Mas existe um legado negativo; por exemplo, a relação entre o Ministério da Educação e as universidades ainda é muito autoritária, muito impositiva. As políticas de Brasília são impostas de maneira vertical, às vezes com a pressão da ameaça da perda de verbas federais. As nossas universidades têm pouca autonomia diante do governo federal, e agora acabaram de perder a capacidade de selecionar seus alunos, o que tem pontos positivos e negativos. Curiosamente, algumas das políticas modernizadoras da ditadura parecem influenciar os modelos em vigor, inclusive com os mesmos nomes, como o Plano Nacional de Pós-graduação , cuja primeira versão apareceu em 1974.

 

IHU On-Line – Na última década o acesso ao ensino fundamental, médio e universitário se ampliou de modo muito considerável. Diante deste contexto, que desafios estão postos à educação em um sentido global?

Rodrigo Patto Sá Motta - Eu penso que o maior desafio é melhorar a qualidade da formação, em todos os níveis. Nas universidades, o desafio é conciliar o crescimento explosivo com a manutenção e a melhoria da qualidade. No ensino básico, acho que o mais importante hoje é revalorizar a carreira de professor, pois os jovens não querem ser professores. E não é sem motivo, pois, além da violência nas escolas, eles têm que encarar uma carreira com salários ridículos. Os nossos governantes deveriam atentar para isso com urgência, pois a situação é muito grave. É fundamental, para o futuro do país, tornar a carreira docente mais atraente.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição