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Ricardo Machado
Quando John Kennedy apertou pela primeira vez um botão escondido à lateral da sua mesa, que abria um microfone no Salão Oval da Casa Branca e acionava um gravador nos porões da residência, não imaginava que tal invenção era uma espécie de bomba-relógio à imagem democrática dos Estados Unidos. A primeira conversa gravada, ainda em 1962, tinha como pivô do assunto nada mais, nada menos que João Goulart, o presidente brasileiro que seria deposto dois anos mais tarde em uma sofisticada articulação política e militar entre a alta cúpula dos Estados Unidos, militares e civis brasileiros. “Desde que João Goulart assumiu o governo da República, em 1961, com a solução do regime parlamentarista, após a renúncia de Jânio Quadros, houve uma grande preocupação nas elites brasileiras e no governo norte-americano. Estávamos em um contexto internacional de Guerra Fria, então os EUA estavam preocupados com a América Latina e tinham medo de que se instalasse uma ‘nova Cuba’”, aponta Carlos Fico, em entrevista por telefone à IHU On-Line.
Apesar de ser internacionalmente reconhecido como um democrata e de sua trajetória estar mais alinhada a este perfil, foi John Kennedy quem decidiu e autorizou a intervenção militar no Brasil, política esta continuada por seu sucessor, Lyndon Johnson. A partir daí gera-se uma relação de subserviência nacional em relação aos Estados Unidos, sobretudo no governo de Castelo Branco, que, conforme Fico, tinha uma conta a pagar pelo apoio da principal potência econômica e militar do continente americano. Anos mais tarde, com a revelação das gravações feitas na Casa Branca e de documentos comprovando a participação dos EUA nos golpes latino-americanos, o acionamento do botão na mesa de Kennedy transformava o mocinho em vilão, o que exigiu da Casa Branca, ao menos, reconhecer o erro. “O próprio governo dos EUA, de algum modo, se arrependeu — embora não possamos dizer isso tão categoricamente —, mas, ao menos, reconheceram que não foi a melhor política e que gerou muitos prejuízos para o próprio governo norte-americano na América Latina”, ressalta o entrevistado.
Carlos Fico é bacharel em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em história pela Universidade Federal Fluminense – UFF e doutor em História pela Universidade de São Paulo - USP, onde também fez estágio de pós-doutoramento. Atualmente é professor titular de História do Brasil na UFRJ e pesquisador do CNPq. Suas pesquisas são voltadas à ditadura militar no Brasil e na Argentina, historiografia brasileira, rebeliões populares no Brasil republicano e história política dos Estados Unidos durante a Guerra Fria. Entre outros reconhecimentos, recebeu, em 2008, o Prêmio Sergio Buarque de Holanda de Ensaio Social da Biblioteca Nacional. É autor do livro O Grande Irmão: da operação Brother Sam aos anos de chumbo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008).
O professor estará na Unisinos participando do Ciclo de Estudos 50 anos do Golpe de 64: Impactos, (des)caminhos e processos com a conferência Os sistemas repressivos das ditaduras militares na América Latina e o papel dos Estados Unidos, no dia 24 de abril, às 19h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no Instituto Humanitas Unisinos-IHU. Mais informações http://bit.ly/Golpe50Anos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual a importância dos Estados Unidos para o Golpe Civil-Militar no Brasil em 1964?
Carlos Fico - Desde que João Goulart assumiu o governo da República, em 1961, com a solução do regime parlamentarista, após a renúncia de Jânio Quadros , houve uma grande preocupação nas elites brasileiras e no governo norte-americano. Estávamos em um contexto internacional de Guerra Fria , então os EUA estavam preocupados com a América Latina e tinham medo de que se instalasse uma “nova Cuba”. Ou seja, medo de qualquer governo comunista ou mesmo de esquerda. Quando Goulart chegou ao poder, ainda que com poderes limitados, o governo norte-americano começou a atuar no sentido de promover a desestabilização e enfraquecimento do governo de Jango. Isso foi crescendo e culminou na participação do governo dos EUA, através da embaixada brasileira, em uma conspiração para a derrubada de Goulart, o que de fato aconteceu. O governo norte-americano chegou a enviar, em apoio aos golpistas brasileiros, uma força tarefa naval, com o propósito de fornecer armas e até mesmo o desembarque de tropas. Trata-se da operação Brother Sam , que é a parte militar e logística desta ação, mas que também teve uma parte política para promover a desestabilização e articulações com brasileiros para a derrubada do presidente.
IHU On-Line – Em abril de 1964, João Goulart é informado que os EUA declarariam o apoio a um governo alternativo ao seu, mobilizando as tropas na chamada Operação Brother Sam, que o senhor mencionou anteriormente. Quais motivos levaram os americanos a intervir de forma tão ferrenha na política brasileira?
Carlos Fico - Quando a gente fala da operação Brother Sam, tem gente que duvida e questiona, porque parece ser uma coisa absurda. Antes da Revolução Cubana , em 1958, a América Latina não tinha muita importância para os EUA. O conflito da Guerra Fria tinha um palco principal na Europa tendo em vista todo o contexto que envolvia o domínio comunista e capitalista, com o Muro de Berlim, etc. Mas, com a opção pelo comunismo na revolução em Cuba, as atenções se voltaram para o nosso continente. Em função disso, os EUA decidiram que não poderia haver um governo de esquerda, um segundo país comunista, aquilo que eles chamavam de “segunda Cuba”. Por isso, houve uma série de intervenções, não somente no caso do Brasil, mas também em outros países, inclusive com tropas, como foi o caso da República Dominicana .
IHU On-Line - De que maneira o embaixador estadunidense Lincoln Gordon se tornou um elo chave para a garantia de apoio dos Estados Unidos ao golpe de Estado em 1964?
Carlos Fico - Ele era um desses funcionários do governo norte-americano bastante anticomunista e tinha uma interpretação de João Goulart segundo a qual ele estaria planejando a implementação, no Brasil, do que Lincoln Gordon chamava de “república sindicalista”. Gordon considerava Goulart um presidente que, em sua avaliação, era relativamente fraco. Essa “república sindicalista” acabaria dominada pelo PCB , pelos comunistas. Tal avaliação não tem sustentação empírica. É bastante equivocada, mas ele conseguiu convencer o Departamento de Estado e a Presidência da República dos EUA de que isso aconteceria. Então, a importância dele foi decisiva para convencer o presidente Kennedy e, depois de ter sido assassinado, seu sucessor também, Lyndon Johnson , de que era preciso fazer alguma coisa para fragilizar e depois derrubar Goulart.
IHU On-Line – Em 1963, semanas antes de ser assassinado, John F. Kennedy questionou a Gordon: “A situação está a seguir o rumo certo ou pensa que é aconselhável que façamos uma intervenção militar?”. Quais as implicações da morte de John Kennedy na política intervencionista dos Estados Unidos? Ela se tornou mais intensa a partir de Lyndon Johnson ou isso já era uma estratégia de Kennedy?
Carlos Fico - A decisão de intervenção dos EUA foi do presidente Kennedy, apesar de ele ter uma imagem de democrata e sua história estar mais próxima à defesa da democracia, mas esta foi uma política implementada por ele. Quando ele foi assassinado, seu vice, Lyndon Johnson, somente continuou os procedimentos já definidos no governo Kennedy. Houve uma campanha de desestabilização que começou em 1961 e, logo em 1962, houve eleições parlamentares e o presidente Kennedy autorizou o embaixador Gordon a repassar cinco milhões de dólares aos candidatos que faziam oposição a Goulart, além de muitos outros recursos e meios de propaganda política. Como haveria eleições em 1965, a estratégia era de enfraquecer Jango, para que ele não conseguisse fazer um sucessor e, muito menos, se candidatar.
Porém, depois que Goulart conseguiu retomar os plenos poderes, com a vitória do presidencialismo no plebiscito de 1963 , o governo Kennedy ficou muito preocupado. A partir desse momento, Kennedy começa a autorizar planos que vão além da campanha de desestabilização e que visavam à derrubada do presidente brasileiro. Então, um plano de contingência foi concluído e aprovado por Kennedy, e previa que no caso de uma tentativa de golpe, os golpistas teriam total apoio dos EUA, inclusive defendiam que um grande estado brasileiro tivesse um governo alternativo, o que de fato ocorreu com o mineiro Magalhães Pinto . Desse modo, o plano de contingência previa, além de tudo isso, a Operação Brother Sam. Todas estas questões foram defendidas por Kennedy, e quando ele foi assassinado, em novembro de 1963, Lyndon Johnson somente deu continuidade.
IHU On-Line – Em que medida o Golpe foi reflexo do contexto mundial de polarização frente ao início da Guerra Fria?
Carlos Fico - Os EUA vinham de uma série de problemas decorrentes do início da Guerra Fria, desde a Guerra da Coreia . Eles estavam envolvidos com a Guerra do Vietnã nesse momento do Golpe; o governo norte-americano estava com problemas sérios com vietnamitas, inclusive Lyndon Johnson tentou com Castelo Branco o envio de tropas brasileiras, hipótese que foi cogitada, mas que depois foi descartada. O contexto de anticomunismo tem a ver com o acirramento da Guerra Fria e sua chegada à América Latina por conta da Revolução Cubana, que deixou os EUA em um clima de enorme preocupação com a proximidade tão grande de um país comunista nas suas margens. Como eles viam a América Latina como seu quintal, houve uma decisão, não apenas de governo, mas de Estado, que permaneceu durante muitos anos, de desestabilizar governos de esquerda e apoiar regimes autoritários — mesmo que fosse necessário apoiar ditaduras, como no caso do Brasil, Chile, etc. Eles fariam isso porque, inclusive, tinha um preço, já que muitas vezes o Congresso norte-americano e a opinião pública criticavam o governo. Eles, ainda assim, fariam isso em nome da Guerra Fria. Não podiam admitir que em uma região sob sua influência, a América Latina, houvesse mais um país comunista. No caso do Brasil, que tinha uma relativa importância econômica, embora modesta, em termos de tamanho e presença geopolítica, esta decisão dura foi tomada. Certamente, se João Goulart tivesse resistido, a operação Brother Sam teria sido levada a cabo e haveria desembarque de armas e tropas, o que é um cenário extremamente bizarro de a gente supor: o desembarque de marines norte-americanos no Brasil. Mas havia a decisão de invadir caso fosse necessário, e isso explica o que era todo esse contexto de Guerra Fria.
IHU On-Line – A partir do governo Juscelino , o Brasil passa a promover certa independência ideológica dos EUA, fortalecida mais tarde com a tendência esquerdista de Jânio e Jango. Como avalia a atuação dos governantes brasileiros no teatro sociopolítico mundial da época?
Carlos Fico - Havia esta estratégia do Itamaraty, que deve muito a Afonso Arinos de Melo Franco , de estabelecer uma “política externa independente”, que estaria no contexto do capitalismo, mas que não seria totalmente caudatária dos EUA, que não tivesse uma posição subserviente, embora não se planejasse nenhum descolamento desse contexto de liderança que os EUA tinham. Era uma postura de relativa independência, que, em alguns momentos, buscava alinhamentos com outros países assemelhados ao Brasil. Tratava-se de uma postura que fazia bastante sentido, na medida em que se postulava uma certa autonomia de decisões bastante realista com o contexto.
O golpe rompeu absolutamente com essa política (defendida, inclusive, por governos bastante diferenciados, como os de Juscelino Kubistchek, de Jânio Quadros e de João Goulart), que visava a uma política externa independente. Castelo Branco rompe com isso e se torna um governo de subserviência aos EUA. Além disso, Castelo Branco dependia muito, em termos econômicos, dos EUA e, é claro, tinha essa “conta a pagar” em função do decisivo apoio dos norte-americanos ao golpe de 1964. Foi um passo atrás e isso prevaleceu durante o governo de Castelo, mas, a partir do segundo governo militar, de Costa e Silva , começou a haver problemas de relacionamento, pois ele tinha uma atitude um pouco diferenciada, e muitas das promessas de apoio norte-americano logo após o golpe não se concretizaram, de modo que vários conflitos começaram a surgir. Depois da assinatura do AI-5, as denúncias de tortura no Brasil criaram enormes problemas no Congresso e na opinião pública norte-americana. Foi um crescendo de problemas a partir daí. Podemos citar o governo de Castelo Branco como o momento de auge de uma política de total alinhamento do Brasil com os Estados Unidos. É uma pena porque rompeu com a trajetória anterior, da chamada “política externa independente”.
IHU On-Line – A partir do Golpe de 64, qual a relação estabelecida entre Estados Unidos e os demais golpes na América Latina? Qual a importância do Brasil neste contexto?
Carlos Fico - Logo depois de 1964, houve esse episódio da invasão da República Dominicana que me parece bastante importante para entendermos esse momento. Houve, também, na sequência, o golpe na Argentina, em 1966, que levou o general Juan Carlos Onganía ao poder. Esse golpe de 1966 tem um aspecto interessante, pois, talvez pelo fato de os Estados Unidos terem sido muito envolvidos no golpe no Brasil, desta vez o governo norte-americano optou por uma postura mais discreta, embora tenham apoiado o regime.
Talvez o episódio mais conhecido seja o de 1973, no Chile, e o apoio ao Pinochet , que contou, inclusive, com uma triangulação que incluiu o Brasil. Recentemente, temos feito descobertas que mostram o apoio do regime militar brasileiro à derrubada de Allende , que contou com a decisiva participação norte-americana. Essas ditaduras militares e esta política intervencionista dos EUA, em diversos momentos, constituíram uma fase muito ruim para a América Latina e para as democracias.
IHU On-Line – Por que a repressão violenta — tortura — tornou-se o expediente de legitimação do poder?
Carlos Fico - A repressão violenta, que aconteceu na Argentina, no Chile e também no Brasil, era uma estratégia dos militares mais radicais, que constituíam, no caso brasileiro, uma espécie de utopia autoritária. Esses militares acreditavam que o Brasil se tornaria uma potência mundial se fosse possível eliminar o que eles identificavam como obstáculo a isso. Eles consideravam dois fatores: os comunistas e as pessoas de esquerda, de um lado, e a corrupção, de outro. Em tudo eles viam os políticos e os civis como corruptos, e a si mesmos como mais preparados e patriotas. Com base nessa crença, evidentemente equivocada, mas que prevalecia na época, setores mais radicais do regime militar propuseram, desde 1964, uma “operação limpeza”, com uma grande quantidade de cassações de mandatos, de prisões de pessoas da esquerda que lhes pareciam cruciais para a concretização dessa caminhada do Brasil. Eles foram na verdade tomando conta do poder. Em 1964, essas cassações foram feitas em um período muito curto, de março a junho de 1964. Os setores mais radicais retomaram a prática com o AI-2 , em 1965, também por um período relativamente curto. E, depois, conseguiram por um período indefinido, em 1968, com o AI-5, que é o momento de auge desse grupo que toma conta do poder e explica essa onda de repressão brutal que permanece entre 1968 e meados dos anos 1970. Claro que, neste processo, paulatinamente, as coisas foram saindo do controle, como sempre acontece nesses casos e, então, a repressão vai atingindo as mais diversas pessoas e se pautando por motivos escusos de perseguição e de manutenção do poder destes militares. O propósito inicial desse grupo, conhecido como “linha dura” e que chegou ao poder em 1968, é o de fazer uma operação limpeza com base nas crenças mencionadas anteriormente.
IHU On-Line – Como funcionaram e quais eram os sistemas repressivos dos militares? Como as técnicas norte-americanas foram apropriadas pelos militares brasileiros?
Carlos Fico - As técnicas de repressão utilizadas no regime no Brasil são bastante brasileiras. A polícia sempre foi muito violenta, desde sempre até hoje. O que aconteceu é que no momento da ditadura, de modo singular, os militares brasileiros se apropriaram desta tradição de brutalidade, de violência e de tortura. Também houve influência muito grande das técnicas e estratégias antiguerrilha francesas. Pouca gente se dá conta de que a França talvez tenha sido mais importante que os EUA na propagação dessas técnicas violentas de combate aos guerrilheiros por conta da Guerra da Argélia . Então, essas técnicas, a partir de 1968, integraram um sistema muito organizado. Criaram-se no Brasil unidades divididas entre os grandes exércitos, o chamado Doi-Codi , que envolviam militares de todas as forças, polícia militar, polícia civil e até corpo de bombeiros. Eram unidades brutais que constituíam uma espécie de polícia-política e que agiam da seguinte forma: faziam prisões e interrogatórios brutais, quase sempre com tortura e muitas vezes resultando em morte das pessoas. O outro lado desse sistema era um aparato de informações e de espionagem as quais eram feitas também pelo Sistema Nacional de Informações, o SISNI . Isso se capilarizou por todo o país, cujo sistema de espionagem estava presente em todos os órgãos do governo, instituições, autarquias, ministérios, e, portanto, era capaz de controlar a vida dos brasileiros. Muitas pessoas foram vítimas desse sistema e nem sabe que foram, como, por exemplo, funcionários públicos que foram tirados da progressão por serem considerados “comunistas”. Muitos nem sabem que foram prejudicados.
Esse sistema foi muito complexo e sofisticado e muito difícil de se desmontar. A parte de repressão e tortura do Doi-Codi foi desmontada ainda durante a ditadura, mas a parte da espionagem só foi desfeita no governo Collor ; era, portanto, uma coisa bastante poderosa e duradoura.
IHU On-Line – Isso significa dizer que o Brasil foi, desde o princípio, uma grande escola de torturadores?
Carlos Fico – A marca principal deste ethos repressivo, violento e brutal da polícia civil e militar é uma tradição, desde o final do século XIX, de violência contra os pobres e negros e que durante a ditadura foi usada pelos militares que, inclusive, se macularam demais com essa experiência. O fato de os militares brasileiros terem participado dessa brutalidade é a principal razão para que a imagem deles tenha ficado comprometida em certos setores da opinião pública. Então, essas referências que existem ao treinamento de brasileiros no Panamá e nos Estados Unidos não são falsas, mas não foram, absolutamente, decisivas para a implementação da repressão brutal que ocorreu no Brasil. Na verdade, a violência na guerra da Argélia era muito conhecida dos militares brasileiros, que usavam essa bibliografia para estudo de combate à guerrilha. Logo, se vamos falar de influência estrangeira, temos que falar também da influência da França, e não somente dos Estados Unidos. Entretanto, o decisivo mesmo foi a própria violência e brutalidade da polícia brasileira.
IHU On-Line – A relação que o Brasil teve com os Estados Unidos naquela época deixou que herança para nossas sociedades atuais?
Carlos Fico – Eu tenho impressão de que a conjuntura e o momento atual são muito distintos. O que aconteceu, na verdade, foi uma ação muito equivocada do governo dos Estados Unidos. E mesmo nos documentos do Departamento de Estado, do final da década de 1960 e início dos anos 1970, vemos esta avaliação dos secretários de Estado e da alta diplomacia norte-americana, de que foi um erro apoiar tão decisivamente o golpe, o governo Castelo Branco e apoiar o regime do Brasil após o AI-5. O próprio governo dos EUA, de algum modo, se arrependeu — embora não possamos dizer isso tão categoricamente —, mas, ao menos, reconheceram que não foi a melhor política e que gerou muitos prejuízos para o próprio governo norte-americano na América Latina. Basta ver a campanha de Jimmy Carter , depois de Nixon , que é toda pautada pela defesa dos direitos humanos. A trajetória da relação entre Brasil e EUA é muito complexa, nesta fase da Guerra Fria, depois no apoio às ditaduras, na fragilização desse apoio aos militares. Quando falamos em apoio dos EUA, não podemos falar de uma maneira unívoca, pois uma coisa é a Casa Branca, o Departamento de Estado e o Departamento de Defesa; outra, é a opinião pública e o Congresso norte-americano. Essa trajetória foi muito complexa, difícil e gerou, ainda no contexto da ditadura, atritos tremendos, por exemplo, quando o Brasil fez acordo com a Alemanha em relação à questão nuclear, o que gerou um conflito enorme com os EUA. Depois, na retomada da democracia no Brasil, a problemática econômica assumiu uma preponderância muito maior, conferindo certo pragmatismo à relação entre os dois países, com toda negociação com a dívida externa que só foi se concluir lá no governo de Fernando Henrique .
Pelos fatos óbvios de os dois países serem os principais do continente, com o crescimento da importância do Brasil e essa trajetória de conflitos do passado, mesmo com o erro que foi o apoio norte-americano ao golpe, as descobertas da operação Brother Sam, etc., tudo isso deixa, evidentemente, a possibilidade de que pequenas questões se tornem conflitos graves, como foi o caso da espionagem recente contra o governo brasileiro. Há uma certa sensibilidade, delicadeza, nessa relação com os Estados Unidos que não é de hoje. Porém, o que tem prevalecido é uma relação mais pragmática, sobretudo pelas questões econômicas e disputas comerciais.
IHU On-Line – Qual a importância no âmbito nacional e mundial do trabalho da Comissão da Verdade ? Há expectativa de revelação de novos documentos sobre a participação dos EUA no golpe?
Carlos Fico – Esses documentos já são muito conhecidos. Não há nada de muito novo, a não ser um detalhe ou outro que ainda possa existir. Não sei bem como vai ser o relatório final da Comissão da Verdade, espero que seja um relatório muito bom, mas os indicadores que nós temos não vão nesse sentido. Tenho a impressão de que a Comissão da Verdade está muito pautada pelo discurso da militância dos direitos humanos e se atendo a episódios clássicos que já são extremamente conhecidos, perdendo, portanto, a oportunidade de chamar a atenção para outras questões. Acredito que a estratégia ganharia muito se tivesse chamado a atenção para outras coisas, fatos novos, e há uma documentação muito grande que foi liberada pela lei de acesso à informação.
Creio que a sociedade brasileira não tem despertado muito o interesse sobre o trabalho da Comissão da Verdade, de um lado porque o trabalho é muito tímido, não convocou cadeias nacionais de televisão para fazer sessões públicas de esclarecimento ou debate. Além disso, deixa de chamar a atenção para o fato de que existem vítimas da ditadura militar que nem sabem que foram atingidas pelo regime de exceção. Estas pessoas precisam ser incluídas no rol das vítimas, porque imediatamente quando se usa a expressão “vítimas da ditadura” vem à cabeça o militante de esquerda, das guerrilhas, das ações armadas, que foram presos torturados e eventualmente mortos. Claro, essas pessoas merecem toda a nossa atenção e empatia, inclusive, os casos são muitos conhecidos. Como disse, houve servidores públicos que iriam progredir na carreira, mas que foram impedidos por conta de espionagem. Existe um dossiê dessas pessoas no Arquivo Nacional e elas próprias nem sabem que existe. Tais pessoas, eventualmente, nem eram comunistas ou de esquerda, mas o serviço de espionagem da época via subversivos até embaixo da cama. Muitas pessoas foram vitimadas dessa maneira. Há outros exemplos, quando uma música era censurada, uma novela era censurada, quando éramos submetidos a propagandas políticas, as crianças doutrinadas em disciplinas como educação moral e cívica, tudo isso, no meu modo de ver, configura uma violência, um ataque à liberdade das pessoas e da sociedade como um todo. Por isso, creio que a Comissão Nacional da Verdade teria sido capaz de interessar a sociedade brasileira se não tivesse ficado restrita ao discurso da militância dos direitos humanos, que evidentemente é respeitável e se pauta pelos casos clássicos da esquerda, mas que não é a única questão posta para a sociedade brasileira naquele momento.
IHU On-Line – Por fim, como explicar a contradição dos Estados Unidos em ser reconhecido como bastião da democracia, tendo apoiado regimes totalitários?
Carlos Fico – O que aconteceu foi, realmente, um erro. Essa avaliação do Departamento de Estado, no final dos anos 1960, de que o apoio ao golpe foi um erro, se fundamenta no seguinte: os EUA saem da Segunda Guerra Mundial como campeões da democracia, na luta contra o nazismo e o fascismo, inclusive com a participação do Brasil no combate, que foi importante simbolicamente para a adesão das lideranças brasileiras a este contexto de liderança norte-americana, não somente na questão econômica, mas também de um ponto de vista político e ideológico como líder da democracia. Quando a questão da Guerra Fria, após a Revolução Cubana, leva o governo dos EUA a optar por essa política intervencionista de apoio às ditaduras, evidentemente essa potência de defesa da democracia cai por terra e isso foi um baque tremendo na imagem dos EUA, em toda a América Latina, inclusive no Brasil. Muitas pesquisas norte-americanas foram feitas para entender o surgimento e a consolidação do que eles chamam de antiamericanismo nos países latino-americanos. Então, esse momento em que os EUA se decidem por essa política intervencionista deixou grandes prejuízos para a imagem norte-americana, que havia saído da Segunda Guerra com uma certa projeção e a perdeu no contexto latino-americano com essa trajetória de apoio aos golpes.
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- A importância de enfrentar o passado. Entrevista com Carlos Fico e Daniel Aarão Reis publicada nas Notícias do Dia, de 09-01-2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos.
- Kennedy e o Brasil. Entrevista com Carlos Fico publicada nas Notícias do Dia, de 29-10-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos.