Edição 436 | 10 Março 2014

Vigência e divergência do contratualismo de Rousseau

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Márcia Junges e Andriolli Costa

Ricardo Monteagudo chama atenção para as divergências do pensamento contemporâneo com o do autor de O Contrato Social, o que pode classificá-lo inclusive como um anticontratualista

Ao abordar o contratualismo, é comum que a primeira obra que venha a mente seja justamente O Contrato Social, publicado pelo filósofo franco-suíço Jean-Jacques Rousseau em 1762. No entanto, Ricardo Monteagudo, filósofo e pesquisador de Rousseau, aponta para uma divergência com o pensamento vigente. Ainda que trate de contratos sociais, Rousseau não encara o próprio governo como um contrato. “Em relação aos contratualistas modernos, Rousseau poderia ser qualificado de anticontratualista”. 

Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Monteagudo reforça aspectos atuais e superados do pensamento de Rousseau, o herdeiro intelectual de Montesquieu, critica a má compreensão da relação que o genebrino constrói entre ética e política e ressalta os embates ideológicos entre a filosofia de Rousseau e a de Maquiavel. “A atualidade de Rousseau está em mostrar que a história é feita pelos homens e que a compreensão da natureza também é um produto histórico”, defende. “Em termos modernos, Rousseau não é hobbesiano ; em termos contemporâneos, Rousseau não é fascista.”

Outro importante apontamento de Monteagudo é o de destacar os modos como o pensamento de Rousseau formou bases que ainda hoje compõem a sociedade, como a concepção de amor familiar e conjugal ou a proposta de que o devaneio permitiria reflexões filosóficas e poéticas igualmente ricas — indo contra os raciocínios necessariamente matemáticos ou rigorosamente lógicos que o antecederam. Além disso, “em termos políticos, Rousseau apresentou os problemas do liberalismo e da representação política antes que este sistema se tornasse hegemônico no mundo, portanto contribuiu para pensar formas mais humanas de liberalismo e mais eficientes de republicanismo”, conclui ele. 

Ricardo Monteagudo possui graduação, mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP com a tese Retórica e política em Rousseau. Cursou pós-doutorado na Universidade Paris I – Pantheon-Sorbonne e, atualmente, leciona na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp, campus de Marília. É autor de Entre o direito e a história: a concepção de legislador em Rousseau (São Paulo: Editora Unesp, 2006). 

Monteagudo participa da mesa redonda Contratualismo moderno, parte do evento Neocontratualismo em Questão, no dia 26-03-2014, às 14h30 na sala Conecta, no Centro Comunitário da Unisinos. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Qual é a contribuição e atualidade de Rousseau no desenvolvimento do pensamento contratualista?

Ricardo Monteagudo - A atualidade de Rousseau está em mostrar que a história é feita pelos homens e que a compreensão da natureza também é um produto histórico. Assim, é preciso sempre desconfiar quando economistas ou advogados qualificam certos comportamentos humanos ou problemas políticos como “naturais”, tais como a guerra, a concorrência, a violência. O contratualismo de Rousseau é peculiar porque prevê limites éticos de riqueza e pobreza e limites políticos de concentração de poder. Embora individualista, trata-se de uma perspectiva democrática e antiliberal, no sentido de que a riqueza é uma questão ética e precisa ser politicamente limitada.

 

IHU On-Line - Retomando uma de suas declarações à entrevista que nos concedeu na edição especial sobre Rousseau, por que esse filósofo preferia "a democracia como forma de governo ou como modelo compartilhado de decisão" e quais implicações esse posicionamento reflete nas teorias contratualistas?

Ricardo Monteagudo - Há a ideia segundo a qual o contrato legítimo é operado pelos princípios de utilidade, reciprocidade e equanimidade, ou seja, precisa sustentar a liberdade pública e preservar a liberdade individual que não atente ou contrarie a liberdade pública. Assim, a democracia direta está na origem da sociabilidade , mas pouco a pouco precisa ser adaptada às novas condições históricas e permanecer como horizonte conceitual para a liberdade política. À medida que a sociedade se torna mais complexa e sofisticada, formas de participação popular no governo e vigilância do governo pelo povo precisam ser mantidas ou criadas, como compensação pelas diferenças inexoráveis que surgem. Teorias contratualistas que não limitam, de um lado, o poder do governo e, de outro, o poder oligárquico (ou plutocrático) não seguem o pensamento de Rousseau. A partir daí, há, por exemplo, uma questão interessante que surge na discussão do decisionismo e do estado de exceção: o que acontece com a zona escura do contrato? Excluída a violência (“violência das coisas”), tomemos a capacidade simbólica do homem (“força da voz”) para a compreensão da justiça (“justiça divina” ou natureza como força reguladora).

 

IHU On-Line - Qual é a peculiaridade do contratualismo de Rousseau ao considerar sua afirmação de que "o povo não deve admitir nenhum abuso do governo, sob pena de tornar-se servil e perder a liberdade política"?

Ricardo Monteagudo - Rousseau é um contratualista peculiar porque escreve uma obra com o título Contrato social, com um capítulo sobre o “pacto social” e outro intitulado “A instituição do governo não é um contrato”. É interessante: a obra é sobre o contrato, mas o governo não é um contrato. Isto é, em relação aos contratualistas modernos, Rousseau poderia ser qualificado de anticontratualista. No jogo político há uma luta contínua da vontade particular contra a vontade geral, dos benefícios particulares contra o bem comum; então o príncipe — ou as pessoas que ocupam o governo — tende a utilizar o poder político do governo para obter vantagens privadas e eventualmente aumentar seu poder pessoal. Trata-se de “um vício inerente”, segundo Rousseau. Aliás, é justamente este o raciocínio de Maquiavel  em O Príncipe. Assim, é preciso encontrar mecanismos para coibir ou manter este “vício” sob controle, sob pena de cairmos na tirania. No Discurso sobre a desigualdade , Rousseau chega a falar em “círculo”, ou seja, ciclos históricos entre governos legítimos e governos arbitrários.

 

IHU On-Line - Qual é o fundamento da "acusação" que alguns pensadores fazem a Rousseau por supostamente ter "moralizado" a política?

Ricardo Monteagudo - Trata-se, a meu ver, de uma compreensão insuficiente da relação entre ética e política no pensamento de Rousseau. A noção de bem comum existe desde os primórdios da Filosofia, não se deve confundi-la com o bem moral. Quando Rousseau se refere à boa política, ele pensa no aumento da liberdade pública ou da legitimidade. E má política é aquela que reduz a legitimidade e aumenta a arbitrariedade. Há o critério do pacto social, ou seja, a democracia direta como fonte conceitual de justiça (natural ou “divina”) manifestada pelos princípios de utilidade, reciprocidade e equanimidade; mas, em sociedades sofisticadas e complexas, a referência é a legitimidade no sentido de compartilhamento de decisões. Em termos modernos, Rousseau não é hobbesiano; em termos contemporâneos, Rousseau não é fascista. Em outras palavras, a legitimidade depende do comportamento ético dos atores políticos. Senão, saímos do campo simbólico e entramos no território da violência. Há, sim, uma luta simbólica pela concepção de bem comum, mas esta é uma luta pela “opinião pública”, não uma guerra contra o contrato.

 

IHU On-Line - Nesse sentido, quais são os principais embates que sua filosofia estabelece com o pensamento de seu predecessor, Nicolau Maquiavel?

Ricardo Monteagudo - Rousseau disse que Maquiavel ensinou aos povos como os príncipes se comportam. O principal acréscimo foi feito por Montesquieu , segundo o qual um poder só pode ser combatido por outro poder, ou seja, a sociedade se compõe de instituições e cada instituição tem seu príncipe, seu jogo de poder, desde um inofensivo clube de xadrez até um partido político, o Parlamento ou o Governo. Numa palavra, o jogo político moderno é um jogo institucional; Maquiavel só podia exprimir esta questão filosoficamente por meio de outros conceitos. Rousseau mostrou que cada instituição tem um fundamento contratual democrático apoiado pela opinião daqueles que com ela interagem ou se vinculam. Ora, se você não gosta de um clube, você não entra nele; ou se não pode evitá-lo, a maneira de mudá-lo é mudar a opinião das pessoas a respeito dele. Diderot  falava em “mentalidade” de um povo, de uma época. Vejo, assim, continuidade entre Maquiavel e Rousseau. Cito, por exemplo, duas famosas frases. “Há em todos os governos duas fontes de oposição: os interesses do povo e os interesses da classe aristocrática” (Discorsi, 4) e “A sociedade nascente deu lugar ao mais horrível estado de guerra entre os ricos e os pobres” (Segundo discurso, II).

 

IHU On-Line - Rousseau criticava a sociedade de seu tempo como uma ilusão de sociedade. Qual é a pertinência dessa crítica às sociedades do nosso tempo e ao neocontratualismo?

Ricardo Monteagudo - Rousseau criticava o Antigo Regime e elogiava princípios republicanos. Nosso tempo de capitalismo financeiro exacerbado criou talvez três tipos de humanidade, os triliardários (pessoas cujo patrimônio ultrapassa um bilhão de dólares), os miseráveis (famélicos e ignorantes) e a classe média entre os dois extremos (pequenos proprietários e trabalhadores em geral). A sociedade defendida por Rousseau é uma sociedade de classe média em que “nenhum homem tenha dinheiro suficiente para comprar outro homem e nenhum seja carente o suficiente para deixar-se vender”. Essa é a lição maior de Rousseau a nosso tempo.

 

IHU On-Line - Em que medida Rousseau ajudou a construir a base intelectual da sociedade em que vivemos, sobretudo em termos políticos?

Ricardo Monteagudo - Pergunta muito interessante e importante. Rousseau inspirou a formação da família nuclear pequeno-burguesa e vitoriana do século XIX que organiza a vida social até hoje desde a queda do Antigo Regime e o fim do feudalismo. A concepção de amor familiar e conjugal provém de Rousseau, embora a função social da mulher seja, para ele, doméstica; isto pode ser lamentado. Outro ponto são os devaneios, a ideia segundo a qual um devaneio pode conter uma reflexão poética ou filosófica, contra os raciocínios necessariamente matemáticos ou rigorosamente lógicos que o antecederam. Em termos políticos, Rousseau apresentou os problemas do liberalismo e da representação política antes que este sistema se tornasse hegemônico no mundo, portanto contribuiu para pensar formas mais humanas de liberalismo e mais eficientes de republicanismo. O principal talvez seja o de aprofundar as reflexões de Montesquieu sobre as relações entre as instituições e os poderes republicanos (legislativo, executivo e judiciário) no sentido de maior legitimidade, ou seja, uma crítica mais eficaz ao direito natural moderno, uma definição mais rigorosa de liberdade política, a distinção entre Estado e Soberano, entre Governo e Príncipe, entre instinto natural e vontade moral, e sobretudo a concepção de exercício de poder contra a concepção absolutista de concentração de poder. Do ponto de vista ético, a crença da possibilidade do amor e da amizade em pequenos grupos. O pensamento político e moral de Rousseau é uma máquina libertária que assusta e afasta enormemente os defensores de formas contemporâneas de despotismo, de hobbesianismo.

 

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Ricardo Monteagudo - Gostaria de observar que há uma escola contemporânea de comentadores de Rousseau que o qualifica como “mais hobbesiano do que Hobbes”. Penso que a leitura cuidadosa do genebrino mostra que ele pensa e escreve contra Hobbes e Grotius  e a favor de Montesquieu, de quem se considera herdeiro intelectual.

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