Edição 435 | 16 Dezembro 2013

O bóson de Higgs como condição necessária para o universo “fértil”

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Márcia Junges / Tradução: Isaque Correa

A existência do bóson de Higgs confirma o papel que o campo de Higgs desempenhou bem na fase inicial do universo e representa uma parte final e principal necessária para completar o modelo padrão da física de partículas, acentua William Stoeger

Embora a descoberta do bóson de Higgs não possa ser considerada como o início de um novo capítulo na Física, ela completa, de fato, uma longa e importante parte — ao completar e confirmar o modelo padrão da física de partículas. A ponderação é do cientista norte-americano William Stoeger, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line, refletindo sobre a condecoração de Peter Higgs e François Englert com o Prêmio Nobel de Física de 2013. “O bóson de Higgs pode ser considerado uma das condições necessárias para que nosso universo seja ‘fértil’, tal como P. George Coyne, SJ, o caracterizou. Para o universo gerar complexidade, e por fim a vida e a consciência, tem de haver química. Para haver química, tem de haver uma variedade de partículas massivas (prótons, nêutrons, elétrons) que podem se combinar para formar os elementos, os quais, por sua vez, se juntam em milhões de modos diferentes para formar moléculas. O campo de Higgs, bem como o bóson de Higgs a ele associado, possibilitou que estas partículas massivas emergissem nos primórdios do universo. Um universo feito somente de partículas sem massa seria muito chato e sem vida!”.

William Stoeger é cientista do Grupo de Pesquisas do Observatório do Vaticano (VORG) e especialista em Cosmologia Teórica, Astrofísica de altas energias e estudos interdisciplinares relacionados com a Ciência, a Filosofia e a Teologia. É doutor em Astrofísica pela Universidade de Cambridge, Inglaterra. Entre 1976 e 1979, foi pesquisador associado ao grupo de física gravitacional teórica da Universidade de Maryland, em College Park, Maryland. É membro da Sociedade Americana de Física, de Astronomia e da Sociedade Internacional de Relatividade Geral e Gravitação. Atualmente, leciona na Universidade do Arizona e na Universidade de São Francisco. É também membro do Conselho do Centro de Teologia e Ciências Naturais (CTNS). Publicou, entre outros livros, As Leis da Natureza — Conhecimento humano e ação divina (São Paulo: Paulinas, 2002). Em 11-09-2009, dentro da programação do IX Simpósio Internacional IHU: Ecos de Darwin, proferiu a conferência Da evolução cósmica à evolução biológica. Emergência, relacionalidade e finalidade.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Alguns cientistas disseram que o bóson de Higgs  não resolve todas as incógnitas atuais, e inclusive cria novos problemas. O que a comprovação dessa partícula explica e o que continua em aberto?

William Stoeger - Certamente o bóson de Higgs não resolve todos os problemas atuais da física de partículas e da cosmologia. No entanto, a confirmação experimental de sua existência é um passo central na solidificação e no entendimento das partículas físicas fundamentais, o que é peça-chave para a nossa compreensão detalhada daquilo de que é feito o mundo material. A existência do bóson de Higgs confirma o papel que o campo de Higgs desempenhou bem na fase inicial do universo e representa uma parte final e principal necessária para completar o modelo padrão da física de partículas. Em especial, explica como quarks, léptons e os campos fracos de bóson W e Z adquiriram massas e por que a força nuclear é fraca, assim como a razão pela qual ela tem tal alcance. Sua existência confirma a solução do modelo padrão a estes problemas. Ao mesmo tempo, vários detalhes desta descoberta precisam ser confirmados, e conexões com outros aspectos da física de partículas e da cosmologia precisam ser investigados. Por exemplo, a relação entre o campo de Higgs e a energia do vácuo do universo, junto da possibilidade de que haja uma família de bóson de Higgs. 

Gravidade de fora

Questões tais como a forma que os neutrinos adquiriram suas massas muito pequenas também precisam de pesquisa, o que provavelmente nos levará para além do modelo padrão. Por fim, está claro que esta descoberta não é a “palavra final” na física de partículas. O domínio da matéria escura no universo não está explicado, e é quase certo que nos force a olhar a física, o mundo natural, para níveis significativamente mais elevados de energia para obter uma resposta (talvez para as partículas supersimétricas, como descrito abaixo). O modelo padrão da física de partículas, do qual o bóson de Higgs é um elemento-chave, inclui interações envolvendo forças nucleares eletromagnéticas, fortes e fracas. Entretanto, deixa de fora a gravidade. Incluir a gravidade em relação a estas três forças requer quantizar a gravidade e fazer a relação com elas. Isso exigirá um modelo mais fundamental ainda, que vai descrever o mundo mesmo em temperaturas ou energias mais altas. A teoria das supercordas é uma das candidatas para levar isso a cabo, mas ainda não foi adequadamente elaborada.

 

IHU On-Line - Qual é a importância da comprovação da existência do bóson enquanto partícula que gera a massa das outras partículas?

William Stoeger - Sem o bóson de Higgs e o campo de Higgs a ele associado, nós não só não teríamos mecanismo algum ou explicação qualquer para as massas das partículas mencionadas acima, mas também uma elegante teoria baseada em profundas simetrias sem nenhuma explicação de como tais simetrias fundamentais e importantes são “quebradas” quando em energias mais baixas. Tais assimetrias ditam que todas as partículas deveriam ficar sem energia quando em altas energias. Porém, obviamente, em baixas energias elas adquiriram massa! O que permite essa transição? O campo de Higgs e as partículas associadas a ele fornecem uma resposta.

 

IHU On-Line - Em que sentido o bóson de Higgs “reivindica” que se reescreva a definição do “nada”?

William Stoeger - Alguns físicos sustentam que o campo de Higgs fornece um caminho para a obtenção de algo a partir do “nada”, no sentido de que ele dota o universo com massa. No entanto, um universo sem massa está longe de um ser “nada”, visto que há campos e partículas com energia e leis da física que descrevem como tais campos e partículas se relacionam e interagem entre si, em particular eles descrevem a forma como se envolvem e se comportam na medida em que a temperatura do universo diminui. A este respeito, um estado de vácuo físico não é “nada”, pois possui energia e se comporta de acordo com as leis da física quântica. A nadidade absoluta ou real é a situação em que não há energia, não há tempo-espaço, não há mundo físico — nada existindo.

 

IHU On-Line - Como podemos compreender o conceito de supersimetria e o que ele implica em uma nova compreensão do Universo?

William Stoeger - A supersimetria nos leva além do modelo padrão da física de partículas sobre a qual estamos debatendo, nos leva para além de considerações envolvendo o bóson de Higgs e o campo de Higgs. Ela postula que cada partícula que conhecemos tem um parceiro supersimétrico. Se a partícula que escolhemos for um férmion (partícula de spin ½, que é constituinte da matéria, como um próton ou nêutron), então o seu parceiro supersimétrico será um bóson (uma partícula spin integral, que é basicamente o encarregado da interação entre os férmions). A supersimetria deve ser um passo no sentido de incluir a gravidade para a unificação de todas as quatro forças fundamentais. Muitos físicos suspeitam — e esperam — que as partículas supersimétricas remanescentes do momento preciso após o Big Bang sejam os constituintes da matéria escura (e não da energia escura), que parece predominar no universo. Muitos deles esperam que tal partícula supersimétrica (especialmente a partícula de menor massa, um neutralino) possa ser detectada via experimentos feitos no Grande Colisor de Hádrons  (ou Large Hadron Collider – LHC, em inglês). Mas até o momento não se encontrou nada, e um bom número de possibilidades já foram descartadas. Até agora não há, absolutamente, evidência experimental alguma para sustentar a supersimetria.

 

IHU On-Line - Qual é a relação da descoberta do bóson com a ideia de universo fértil, como aquela defendida por George Coyne ?

William Stoeger - O bóson de Higgs pode ser considerado uma das condições necessárias para que nosso universo seja “fértil”, tal como P. George Coyne, SJ, o caracterizou. Para o universo gerar complexidade, e por fim a vida e a consciência, tem de haver química. Para haver química, tem de haver uma variedade de partículas massivas (prótons, nêutrons, elétrons) que podem se combinar para formar os elementos, os quais, por sua vez, se juntam em milhões de modos diferentes para formar moléculas. O campo de Higgs, bem como o bóson de Higgs a ele associado, possibilitou que estas partículas massivas emergissem nos primórdios do universo. Um universo feito somente de partículas sem massa seria muito chato e sem vida!

 

IHU On-Line - Em que medida a comprovação da existência do bóson de Higgs pode ser considerada um novo capítulo da Física?

William Stoeger - Longe de ver a descoberta do bóson de Higgs como o início de um novo capítulo na Física, ela completa, de fato, uma longa e importante parte — ao completar e confirmar o modelo padrão da física de partículas. É claro, como mencionei acima, há muito mais trabalho a ser feito para confirmar e esclarecer aspectos cruciais do bóson de Higgs e do campo de Higgs. É claro também que, na medida em que completamos um importante capítulo na Física, somos levados a iniciar outros novos. Um destes envolve a exploração de possíveis conexões entre o campo de Higgs, o vácuo e a energia do vácuo (a constante cosmológica de Einstein ). Outro explora se há supersimetria em energias além daquelas onde foi encontrado o bóson de Higgs; outro ainda estuda de que são constituídas as partículas interagentes pesadas e lentas e a matéria escura que predomina no cosmos. Nenhuma das partículas que até então descobrimos preencheu esta lacuna. As partículas de matéria escura são, evidentemente, relíquias da física primordial que cai do lado de fora do modelo padrão, razão pela qual muitos físicos especulam dizendo que elas podem ser supersimétricas.

 

IHU On-Line - Por outro lado, em que sentido a existência do Boson de Higgs estabelece um novo ponto de diálogo entre fé e ciência?

William Stoeger - Embora a descoberta do campo de Higgs e do bóson de Higgs seja uma realização extraordinária, ela de fato não estabelece diretamente uma nova área de diálogo entre a fé e a ciência. É útil perceber que, de um ponto de vista teórico, esta descoberta foi esperada durante os últimos 40 ou 50 anos. E a maioria das pessoas engajadas no diálogo entre a teologia e a ciência supõe que uma versão do modelo padrão da física de partículas esteja correta. Ademais, achados específicos novos na ciência física ou biológica muito dificilmente têm impacto direto na teologia. É o caráter geral e a história dos mundos físico e biológico (por exemplo, a física quântica, histórias cósmicas e evolutivas), tal como revelados pelas ciências, que assim o fazem.

 

IHU On-Line - Qual é a importância da transdisciplinaridade, do diálogo entre os saberes para o avanço da ciência, como no caso de uma teoria unificadora?

William Stoeger - Ao refletir sobre descobertas centrais na Física e em outras ciências, fica claro que elas são o resultado de extensa colaboração e diálogo entre grandes e diversificados grupos de especialistas. Imaginação bem informada e persistência são também ingredientes essenciais em tal empreitada. Na medida em que nos esforçamos no sentido de estabelecer novas conexões entre áreas separadas da Física ou outras ciências — na busca por teorias de confirmação que unifiquem o nosso conhecimento e compreensão —, a pesquisa e o diálogo interdisciplinar formam um complemento essencial para o trabalho intenso focado em determinadas subespecialidades. 

 

IHU On-Line - Em que sentido a descoberta do bóson de Higgs altera as pesquisas em cosmologia, como as que o senhor desenvolve em seus estudos?

William Stoeger - A descoberta do bóson de Higgs, embora importante, não tem impacto direto na maior parte do trabalho que é, hoje, feito em cosmologia — certamente não na pesquisa que eu, no momento, desenvolvo. Há um modelo padrão na cosmologia, de acordo com o qual o universo vem se expandindo, esfriando e desenvolvendo estruturas desde o Big Bang. O campo de Higgs e o bóson de Higgs adequam-se naturalmente dentro desse modelo, porém não o afetam diretamente. Por muitos anos, os cosmologistas tinham como pressuposto que o modelo padrão da física de partículas, incluindo o papel do campo de Higgs, estava correto. Pode acontecer que, conforme vamos sabendo mais sobre o campo de Higgs, que existem conexões entre ele e o problema da energia do vácuo, assim como sobre a matéria escura, possa haver um impacto direto em alguns dos detalhes da história e da composição do universo que nós, no presente momento, não compreendemos.

 

IHU On-Line - Como a comunidade científica recebeu a decisão do Prêmio Nobel de Física de 2013 ter sido destinado a Peter Higgs  e François Englert ?

William Stoeger - Eu realmente não prestei muita atenção à reação da comunidade científica em relação à decisão de condecorar, com o Prêmio Nobel, os cientistas Peter Higgs e François Englert pela teoria do mecanismo de Higgs e sua recente confirmação. Passaram-se quase 50 anos desde que eles a propuseram. Levou tanto tempo para, de fato, se encontrarem provas seguras. Nesse ínterim, milhares de físicos contribuíram para a exploração e o refinamento da teoria, assim como para sua confirmação. Sei que a maioria dos cientistas concorda que o prêmio, embora dado a dois dos promotores da teoria, é, na verdade, um reconhecimento a todos aqueles que tiveram contribuições substanciais para com ela e para com a descoberta do bóson de Higgs ao longo dos anos.

 

Leia mais...

William Stoeger já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira.

- Astrofísica, cosmologia e a busca de Deus no universo. Notícias do Dia 26-06-2006;

- “Sem a evolução cósmica não haveria evolução biológica”. Revista IHU On-Line 306, de 31-08-2009.

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