Edição 435 | 16 Dezembro 2013

“Igualar a religião a Deus é idolatria”, segundo A. J. Heschel

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Márcia Junges e Luciano Gallas

Para a psicóloga Maria Cristina Guarnieri, que estuda a obra de A. J. Heschel, a religião deve desafiar a ciência a encarar os limites da razão e sua incapacidade de explicar a totalidade da existência

“Religião, para Heschel, é uma resposta ao mistério; e a fé, a certeza de que há um sentido além do mistério. A religião para Heschel, portanto, seria uma resposta para as principais questões humanas. A crise, segundo o autor, se instala justamente quando desqualificamos estas questões e, por isso, a religião perde sua importância. A tarefa de uma filosofia da religião seria, nesse sentido, redescobrir as questões para as quais a religião poderia ser uma resposta, aprofundando a investigação em relação à consciência humana, aos ensinamentos, à deliberação das tradições religiosas e, principalmente, contribuir para uma metaética: uma profunda reflexão sobre nossos feitos. Para ele, apenas por sua vontade, o ser humano pode se tornar o mais destrutivo dos seres; em suas palavras: ‘o nascimento de uma criança é um mistério; matar milhões de pessoas é, apenas, uma questão de destreza e perícia’”, pondera Maria Cristina Guarnieri.

A psicóloga, nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, investiga a filosofia da religião na obra de Abraham Joshua Heschel. “Heschel manteve, com grande habilidade, a tensão entre sua tradição religiosa e uma posição política, pois entendia que a posição do religioso na sociedade moderna era de denunciar, criticar e se posicionar contra a injustiça, em nome da reverência a Deus e da sua imagem no mundo, o ser humano. Para ele, não podemos nos manter alheios das atrocidades cometidas contra o próximo, pois, quando desumanizo o outro, desumanizo a mim mesmo, o que o leva a dizer que nossa maior ameaça, hoje, é a insensibilidade diante do sofrimento do outro”, afirma Maria Cristina Guarnieri. “Para ele [Heschel], não existe verdade sem humildade, nem certeza sem contrição, o que ele entende estar faltando onde mais se precisa delas: na teologia. A religião é um meio, não um fim, e igualar a religião a Deus é idolatria”, enfatiza a entrevistada.

Maria Cristina Guarnieri é psicóloga, possui mestrado e doutorado em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. É professora no Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa – IJEP e no curso de Psicologia e Religião na Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão da PUC-SP. É coordenadora e editora da revista Agnes: caderno de pesquisa em teoria da religião e pesquisadora do Núcleo de Estudos em Mística e Santidade – Nemes, vinculado à PUC-SP.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Em que consiste a filosofia do judaísmo de A. J. Heschel ?

Maria Cristina Guarnieri - A filosofia do judaísmo, para Heschel, é basicamente uma filosofia que busca compreender a religião a partir dela própria, que busca o que ela tem a nos ofertar, especialmente em considerar o que Deus quer de nós. A filosofia da religião deve, portanto, aprofundar a reflexão sobre a religião, um esforço de autoesclarecimento e de autoexame, isto é, um esforço em analisar o conteúdo religioso, assim como de examinar, minuciosamente, a atitude religiosa. Já a religião, segundo o autor, deve ser um desafio para a filosofia, e não só um objeto de exame ou pesquisa. Ela deve ser inspiradora ao próprio autoexame da filosofia, pois a razão, quando questiona a religião, questiona a ela mesma, realiza uma autocrítica que permite, segundo o autor, analisar suas próprias premissas, objetivos e autoridade. Não é uma questão de fornecer uma base racional para a religião, mas sim de observar que há uma referência transcendente ao ato de raciocinar. É necessário, segundo Heschel, distinguir a ignorância do sentido de mistério, observar que a ciência é incapaz de explicar a totalidade da existência, que a razão tem limites, embora a fé seja dependente da razão para um discernimento mais apurado e útil para a nossa existência concreta.

É na tensão entre os pensamentos bíblico e grego que Heschel sustentará sua filosofia da religião e elevará o pensamento bíblico como categoria crítica sobre os valores do homem moderno. Sua filosofia da religião sustenta a interação entre a filosofia e a tradição sapiencial . Heschel lê os primeiros rabinos e isso influencia toda a sua reflexão filosófica. O pensamento que marca a filosofia hescheliana nos apresenta que estar diante de Deus é estar sem tranquilidade e sem autonomia, é estar em uma desconfortável tensão que caracteriza a experiência religiosa — esse ‘desconforto’ dá-se em virtude de o sujeito ser confrontado com questões existenciais profundas, as quais ele poderá responder ou fugir e se eximir. Heschel afirma que há dois tipos de pensamentos: o pensamento conceitual e o pensamento situacional. O primeiro tem por objeto os conceitos da mente, e o outro, a situação do ser humano. O pensamento conceitual é um ato da razão, que nos possibilita conhecer, definir ou explicar o mundo. Já o situacional envolve uma experiência interior e é necessário quando se precisa fazer um esforço para compreender os problemas sobre os quais delimitamos toda nossa existência. Se a atitude do pensador conceitual busca a imparcialidade, a do pensador situacional é a de preocupação, pois necessita compreender a situação em que se encontra. 

 

IHU On-Line - Quais as relações do pensamento de Heschel com a mística para uma abertura ao sagrado?

Maria Cristina Guarnieri - Heschel cresceu em ambiente religioso; seus pais descendiam de rebbes hassídicos  e ele próprio afirma que seu pensamento sofreu a influência de dois mestres, com visões de mundo opostas: Baal Shem Tov  e Menahem Mendel de Kotzk [ou Kotzer] . Do primeiro, o hassidismo se manifestaria como misericórdia e alegria, uma visão mais otimista que reconhece a presença divina, a Shekhiná, no mundo. Já o segundo experimenta o exílio da Shekhiná, a dor do mundo, onde o hassidismo será experimentado como sede de justiça e por uma ânsia de redenção da condição humana. Segundo Heschel, esses "dois professores" representam os dois extremos da concepção hassídica do mundo. Kotzer reage à ênfase de Deus na imanência presente no pensamento hassídico, tal como Kierkegaard  no pensamento protestante. Para Kotzer, Deus é total transcendência. Já em Baal Shem Tov, encontramos transcendência e imanência: ele é intoxicado pela proximidade de Deus, o que acaba por favorecer uma visão imanentista que se sobrepõe à transcendência de Deus. Apesar de Kotzer enfatizar o abismo da separação, ele irá afirmar, segundo Heschel, que esse pode ser atravessado a partir do nosso coração para Deus.

Heschel lê os primeiros rabinos, e isso influencia toda a sua reflexão filosófica. Ele, como outros na modernidade — Cohen, Lévinas  e Rosenzweig  —, volta-se para a literatura talmúdica, algo que antes era reservado apenas aos talmudistas. Mas será no estudo da Torá, com as lendas dos rabinos e mestres, e na influência do hassidismo que sua filosofia se constituirá. Os hassidin praticavam o daven (oração meditativa) cujo objetivo era a união mística com Deus (devekut). O homem piedoso, o hassidim, foi colocado em oposição ao rabino, o intelectual talmúdico. O hassidim é aquele que está embriagado por Deus, algo que é alcançado pelo daven — a natureza existe em Deus, sem Deus nada existe. “O mundo é um véu que, se retirado, só há Deus. O mundo do espírito é a eternidade, o mundo aqui e agora é vaidade” . Sua reflexão seguirá a experiência consciente de Deus e como esta altera o seu pensar sobre o mundo; é um filósofo que pensa sob o olhar de Deus.

 

IHU On-Line - Em que aspectos a convivência de Heschel com Martin Luther King  possui, além de contornos políticos, contornos místicos?

Maria Cristina Guarnieri - Heschel encontrou Martin Luther King em 1963 pela primeira vez, em uma Conferência Nacional de Cristãos e Judeus. Tornaram-se amigos e, a partir desse momento, Heschel passa a participar ativamente na questão dos direitos civis nos Estados Unidos. Ele participa, em 1965, da marcha pelos direitos civis dos negros, ao lado de Martin Luther King, no Alabama, o que pode ser visto em fotos da época, dado sua presença na primeira fila junto aos demais líderes da manifestação. Sua filha, Suzana Heschel, nos conta que, pouco antes de começar a marcha, um serviço foi realizado em uma pequena capela, onde seu pai teria lido o Salmo 27: "O Eterno é a luz que me guia e a fonte de minha salvação; a quem então temerei?". Para Heschel, a marcha era um movimento religioso, que fica claro em seu famoso comentário na época: "Quando marchei com Martin Luther King em Selma, Alabama, senti que minhas pernas rezavam". Ele dizia sentir nesse ato uma consciência do Sagrado, de sua responsabilidade individual pelo coletivo apreendida com os profetas. 

Na realidade, Heschel reúne com esse encontro questões políticas-sociais e fundamentos éticos religiosos. Podemos dizer que três são os motivos que o fazem ligar suas convicções religiosas com o movimento social e político: a própria perda pessoal com o genocídio nazista, a descoberta que a indiferença ao mal é pior que o mal em si mesmo e o estudo dos profetas. Heschel trabalhou em seu doutorado com os profetas. Para ele, a qualidade mais importante do profeta é a sensibilidade para com o mal e a iniquidade. Seu pensamento é marcado por sua sensibilidade à experiência emocional que tem como ideia central o pathos divino. Esse conceito sugere que o ser humano tem capacidade para transcender, abrir-se para o infinito e para o inefável, mas que também é buscado pelo transcendente. O profeta é aquele que sabe o que Deus quer, ele dá testemunho do pathos de Deus, que é onde se dá o encontro entre o ser humano e Deus, pois Ele, ao revelar-se ao profeta, não revela Sua essência, mas sim Sua presença. Nesse sentido, o profeta é um exemplo e, com eles, afirma Heschel, ele aprendeu que deveria participar dos problemas humanos, principalmente dos humanos que sofrem.

Heschel manteve, com grande habilidade, a tensão entre sua tradição religiosa e uma posição política, pois entendia que a posição do religioso na sociedade moderna era de denunciar, criticar e se posicionar contra a injustiça, em nome da reverência a Deus e da sua imagem no mundo, o ser humano. Para ele, não podemos nos manter alheios das atrocidades cometidas contra o próximo, pois, quando desumanizo o outro, desumanizo a mim mesmo, o que o leva a dizer que nossa maior ameaça, hoje, é a insensibilidade diante do sofrimento do outro. Com essas ponderações, Heschel não pretende defender uma união entre Estado e instituição religiosa, mas afirmar a oração como uma voz pela misericórdia, um clamor pela justiça, que deveria ser espalhada no mundo. Heschel entende que a oração é algo particular, um serviço do coração, mas que a preocupação e a compaixão, nascidas da oração, devem dominar a vida pública. 

Para Heschel, orar significa um lamento pela misericórdia de Deus; louvar torna Deus presente em sua misericórdia, em sua grandeza e esplendor. O ser humano reza e se coloca na relação como objeto de Deus, e esse é seu objetivo, tornar-se digno de ser lembrado por Deus: a verdadeira tarefa do homem não é a de conhecer Deus e sim de ser conhecido por Ele. Heschel nos fala que a reza não pode nos salvar, mas nos torna dignos de sermos salvos. A presença de Deus é ausência de desespero, não só por essa constituir uma autoanálise, mas sim por algo muito caro ao judaísmo: um posicionamento em direção a Deus. Portanto, segundo Heschel, rezamos porque é enorme a desproporção entre a miséria humana e a compaixão humana. Viver é um desafio e rezamos para saber como responder a esse desafio; viver é sagrado, portanto precisamos rezar para saber como responder à questão vital que nos anima: como ser e como não ser.

 

IHU On-Line - A partir do legado de Heschel, que provocações a mística apresenta para as propostas de abertura inter-religiosa?

Maria Cristina Guarnieri - Há um ensaio muito interessante chamado Nenhuma religião é uma ilha, que foi originalmente elaborado como discurso inaugural no Union Theological Seminary, no qual Heschel desenvolve a ideia de que a interação entre judeus e cristãos é urgentemente necessária para desenvolver uma espiritualidade capaz de remover traços pagãos que idolatram e idealizam conceitos que resultam em regimes despóticos como o nazismo. Para ele, nenhuma religião é uma ilha, pois estamos todos comprometidos um com o outro, a traição espiritual de um afeta a fé de todos. Para ele, enquanto resistirmos, como representantes de fé, ao movimento ecumênico, outro movimento cresce em extensão, influencia e atinge o mundo todo: o niilismo. Segundo ele, o objetivo principal das reflexões nesse ensaio é encontrar uma base religiosa capaz de facilitar a comunicação e a cooperação com temas importantes da modernidade, com as inquietações morais e espirituais, com a paz e com manter viva a presença de Deus. Apesar das profundas diferenças entre as religiões, da necessidade que cada uma delas tem de manter a sua própria identidade, Heschel compreendia que, como humanos, temos uma base comum: a consciência de que Deus é o mesmo para todos, acima das particularidades das diferentes tradições. A humanidade, para ele, não é uma abstração.

Heschel usa a Bíblia como crítica à insensibilidade humana. A responsabilidade pelo outro é apreendida na narrativa religiosa com os profetas. Os profetas nos lembram do interesse de Deus pela situação dos seres humanos. Se profano o outro, profano a mim mesmo e, se o ser humano é a imagem e semelhança de Deus, profano também o nome de Deus. Para Heschel, o pré-requisito mais importante para o ecumenismo é a fé. Mas não sem perceber que a fé só cresce na intimidade e se respeitada a individualidade de cada religião, para que ela não seja profanada e não se corra o risco de sincretismo. A finalidade da comunicação religiosa, para ele, é enriquecimento mútuo e acréscimo de respeito e reconhecimento. Para Heschel, a "voz de Deus chega ao espírito em uma variedade de formas, em uma multiplicidade de linguagens. Uma mesma verdade pode ser interpretada e expressa de muitas maneiras" (Nenhuma religião é uma ilha). Para ele, não existe verdade sem humildade, nem certeza sem contrição, o que ele entende estar faltando onde mais se precisa delas: na teologia. A religião é um meio, não um fim, e igualar a religião a Deus é idolatria. 

 

IHU On-Line - Tendo em consideração o conjunto de sua obra, como podemos compreender o significado da fé, da divindade das ações e da sacralidade do tempo?

Maria Cristina Guarnieri - Fé é ato, algo que acontece e não tem explicação. A fé é um momento de comunhão entre a alma do ser humano e a glória de Deus. A fé é um ato do espírito, pois é ele que tem o poder de reconhecer a superioridade do divino, para perceber o transcendente, para amar o mistério. O mistério como a própria condição de existir, uma categoria ontológica, que nos leva a agir como reverência, pois esta é a forma de existência em harmonia com o mistério. A reverência nos aproxima do amor e da alegria e é, também, a raiz da fé. Quando somos guiados pela reverência, somos dignos da fé. A fé é uma resposta a Deus que não pode ser copiada, pois original em cada alma, para quem vive na consciência do inefável. A divindade das ações são aquelas que são comandadas pela Torá: a prática dos mitsvot, que vão atualizar no homem a imagem divina. A Torá é um modo de vida e, para Heschel, é necessário o esforço de aproximar cada judeu do estudo da Torá para que a Aliança se restabeleça entre Deus e Israel. Fazer o que Deus manda é o primeiro passo para reencontrar o caminho da fé no Deus vivo. A observância faz o sujeito sair de si mesmo, da obsessão de realizar a própria vontade, as próprias satisfações e necessidades individuais. A observância é, ao mesmo tempo, uma resposta a Deus, um modo de deixá-lo agir na história humana. Pelas obras humanas, Deus transcendente faz sentir sua presença na imanência, e o humano torna-se parceiro de Deus na grande obra da redenção. O homem é redimido pelo Amor; o amor de Deus revela-se na responsabilidade pelo outro. “Viver é o que o homem faz como tempo de Deus, o que o homem faz com o mundo de Deus.” 

O propósito das mitsvot é aprimorar o homem, dado que a alma é aprimorada pelos atos sagrados. Cumprir uma mitsvot é desfazer-se de si mesmo; é ir além de nossas próprias necessidades e iluminar o mundo. O propósito está vinculado à parceria entre homem e Deus, isto é, ao cumprir uma mitsvot, desempenhamos uma ação, cuja iluminação emana de Deus. Os mitsvot são a chave para abrir os portões da fé — nas palavras do próprio Heschel, pontos de espiritualidade, de eternidade no fluxo da temporalidade. Para Heschel, o tempo é a única coisa que possuímos e, portanto, característica essencial da existência. Mas é a coisa mais frágil que existe, pois é uma sucessão de instantes perecíveis o que nos leva, paradoxalmente, a uma certeza: nunca possuímos a única coisa que temos. Heschel nos lembra que o tempo precisa de categorias para ser pensado, dado que o tempo em si não oferece permanência. Duas diferentes categorias são citadas por ele: processo e evento — temporalidade e eternidade. Os processos são relações causais de ocorrências previsíveis, seguem uma regra. Os eventos são acontecimentos singulares que dizem respeito à relação de Deus com o ser humano, que se dá no presente. Visto como temporalidade, a essência do tempo é separação, isolamento, pois dois instantes nunca podem estar juntos, nem podem ser contemporâneos. Como eternidade é comunhão, união, é onde podemos adorar, amar, é quando um dia vale para toda a eternidade.

 

IHU On-Line - Em que medida fé e piedade são categorias diferentes em Heschel?

Maria Cristina Guarnieri - A piedade é um modo de vida, uma orientação do interior humano para a santidade. Piedade é fé traduzida em vida. O homem piedoso é aquele que é determinado por sua fé, que tem seu coração aberto e atraído para Deus, ele se deixa ser penetrado e atuado pelo sagrado. A piedade é a realização e a verificação do transcendente na vida humana, situa-se no subjetivo e nasce da iniciativa humana. É precedida pela fé, um esforço para colocar em prática as ideias da fé, realizar a fé, buscando a vontade de Deus. Piedade é a fidelidade à vontade de Deus, o que faz do homem piedoso aquele que sabe que seu destino é servir, por livre escolha, pois esse é o sentido de sua existência, que reconcilia o passageiro com o permanente, a temporalidade com a eternidade. O que resulta na visão de que morrer é um privilégio justamente porque este ato é a reciprocidade por parte do ser humano do presente recebido por Deus: a vida.

 

IHU On-Line - E como podemos compreender a consciência do inefável e da alteridade nesse pensamento?

Maria Cristina Guarnieri - O inefável, segundo Heschel, não é criado por nós, é encontrado por experiência própria. Sem a ideia de inefável seria impossível explicar a diversidade humana como tentativa de representar o mundo. O inefável é considerado como universal que só pode ser indicado, e é essa indicação que é passível de comunicação. O inefável não pode ser definido, dele só podemos dizer aquilo que ele não representa. Porém, enquanto conteúdo, aponta para algo que tem sentido, mas que não pode ser expresso, apenas experimentado, geralmente a partir do temor ou da reverência. A religião começa com o sentido do inefável, que começa com a interrogação de Deus e a resposta de cada ser humano. O divino, segundo Heschel, é identificado como uma mensagem que revela unidade onde vemos diversidade, paz onde nos envolve a discórdia. Deus significa que ninguém está só, que a essência do temporal é o eterno, que o inefável é um sentido que nos eleva a um plano em que a presença de Deus pode ser desafiada, mas não negada, onde a única atitude é a fé, onde Deus significa união de todos os seres em santa alteridade.

 

IHU On-Line - Qual é a contribuição desse pensador para uma cultura da paz e da espiritualidade?

Maria Cristina Guarnieri - A parceria com Deus é uma tese hescheliana para assinalar um ponto fundamental: que a vida é um presente, que temos responsabilidade de sermos dignos de ser lembrados por Deus. A maior ameaça que estamos sofrendo hoje, segundo o autor, é a insensibilidade diante do sofrimento do outro. “Tudo que nos resta é ficar horrorizados com a perda do nosso senso de horror”. E talvez esse seja o alerta mais importante para a vigília constante de nossas ações, principalmente quando nos dirigimos ao outro humano, que também foi feito como nós, à imagem de Deus. Pelas obras humanas, Deus transcendente faz sentir sua presença na imanência, e o humano torna-se parceiro de Deus na grande obra da redenção. O homem é redimido pelo Amor; o amor de Deus revela-se na responsabilidade pelo outro. A vida é uma parceria entre Deus e o Homem na luta pela justiça, pela paz e pela santidade. É por necessitar do ser humano que Deus fez um pacto com ele por todos os tempos, um vínculo que une Deus e ser humano e no qual ambos estão comprometidos. Na realidade, a humanidade é dependente do como cada um de nós trata o outro. Os direitos e deveres humanos não se sustentam apenas com uma ideia ou uma declaração; é necessário que o ser humano faça de si mesmo um parceiro de Deus, parceria esta que se manifesta em suas ações.

 

IHU On-Line - Em que aspectos a religião e a consciência religiosa se dão no encontro da pergunta de Deus com a resposta do homem?

Maria Cristina Guarnieri - Para Heschel, o objetivo do ser humano religioso é tornar-se digno de ser lembrado por Deus, de ser conhecido por Ele. Deus é uma suposição ontológica para Heschel, não sendo possível haver um pensamento sobre Deus sem a premissa da realidade da existência de Deus. O ser humano em sua singularidade é tomado a partir da ideia de milagre e mistério, onde toda a existência é uma dádiva e uma dívida, pois é nesta consciência que percebemos que algo é exigido de nós: “somos exigidos a admirar, a respeitar, a pensar e a viver de um modo que seja compatível com a grandeza e o mistério da vida” (Deus em busca do homem). A existência é um mistério. E o mistério é compreendido pelo autor como categoria de pensamento, que pressupõe a presença de Deus e um meio de perceber o mundo. O mistério não serve para a mente especuladora, mas sim para que sejamos confrontados constantemente por ele e, ao mesmo tempo, para que sejamos indagados sobre as nossas ações. Religião, para Heschel, é uma resposta ao mistério; e a fé, a certeza de que há um sentido além do mistério. A religião para Heschel, portanto, seria uma resposta para as principais questões humanas. A crise, segundo o autor, se instala justamente quando desqualificamos estas questões e, por isso, a religião perde sua importância. A tarefa de uma filosofia da religião seria, nesse sentido, redescobrir as questões para as quais a religião poderia ser uma resposta, aprofundando a investigação em relação à consciência humana, aos ensinamentos, à deliberação das tradições religiosas e, principalmente, contribuir para uma metaética: uma profunda reflexão sobre nossos feitos. Para ele, apenas por sua vontade, o ser humano pode se tornar o mais destrutivo dos seres; em suas palavras: “o nascimento de uma criança é um mistério; matar milhões de pessoas é, apenas, uma questão de destreza e perícia”.

 

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Maria Cristina Guarnieri - Apenas que faz parte da condição humana a presença da ambiguidade, ou como fala Heschel, de viver em polaridades. A polaridade imagem-pó revela a natureza profunda do homem: ele é formado da matéria mais baixa, porém, conforme a imagem mais elevada. Para Heschel, devemos amar o ser humano porque este foi feito à imagem de Deus. Isso significa que cada ser humano deve considerar a si próprio muito precioso para ser desperdiçado pelo pecado. Preciosidade é um conceito que caracteriza a dignidade da condição humana. Para Heschel, ninguém é substituível, o que está relacionado com outro conceito — a singularidade, que diz que todo ser é original, único e sempre uma nova possibilidade. Para Heschel, ser “criado à semelhança de Deus” é um segredo divino, ao passo que “criado do pó” refere-se ao diálogo entre Deus e o ser humano. Quando Deus criou o ser humano, Ele o fez à sua semelhança, o que, segundo a tradição judaica, é uma afirmação fundamental sobre a natureza e o significado do homem. O ser humano, ao ser uma imagem de Deus, torna-se o lugar da lembrança de Deus: seu significado e sua missão.

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