Edição 201 | 23 Outubro 2006

José Rogério Lopes

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IHU Online

Caipira com orgulho. Nascido na cidade de Taubaté, interior de São Paulo, o professor de antropologia da Unisinos, José Rogério Lopes, contou um pouco da sua vida à IHU On-Line.

Origens - Nasci e cresci em Taubaté, no interior do estado de São Paulo. Morei lá até os meus 21 anos. É uma cidade que tem características rurais, em uma região que até hoje é considerada ainda caipira, no sentido sociológico, não pejorativo. Isso marcou muito minha formação. Até o meu “ícone”, algo que eu valorizo bastante, na porta da sala tem referência com isso: “Nóis é caipira, mais é jóia.” O caipira se caracteriza por uma formação religiosa muito vinculada à presença de missionários (que têm uma perspectiva evangelizadora), ao mesmo tempo que estabelecem uma solidariedade muito grande, vínculos de solidariedade que são herdados da vida rural. Os meus avós da parte de pai eram da zona rural e da parte de mãe, caiçaras, uma outra cultura também muito próxima. Então cresci nesse modelo, mas nas décadas de 1960 e 70, a minha região acompanhou todo o desenvolvimento industrial do País.  Vivi também esses processos de urbanização que vieram com a indústria, com a urbanização. Esse meu crescimento na região tem um pouco a ver com eles: de um lado, um campo de tradição, de outro, um campo de modernização, de transformações e mudanças. Esse é o caráter da minha formação. A herança do lugar de onde eu vim é essa, eu transito entre essas duas coisas.

Família - Família grande. Do meu pai vem uma tradição de proles extensivas. Minha bisavó teve quinze filhos, minha avó oito, meu pai sete. Da parte da minha mãe não. O meu avô materno eu não conheci, pois faleceu quando minha mãe era pequena. Da minha mãe vem uma tradição de uma família reproduzida a partir de uma única pessoa. A minha avó teve só a minha mãe. Era uma experiência de muita convivência, tanto da parte dos avós do meu pai, pois morávamos junto com eles, quanto da parte dos avós maternos. Tivemos sempre uma convivência grande em torno da figura dos avós. Meu avô paterno é ainda uma figura muito carinhosa na memória.  Desde criança, eu era muito próximo dele, de fugir de casa e ir para o mercado municipal onde ele trabalhava e depois voltava com ele, de carroça. Coincidente, as minhas duas avós eram costureiras. Minha avó materna acabou se casando de novo com alguém que hoje consideramos como avô, que era pescador e o melhor mentiroso que eu vi na vida. Desde que eu era criança, eu ouvia as histórias que ele adorava contar para nós. A casa dele era em Ubatuba, cidade de praia, onde passávamos as férias escolares, quando nosso pai nos mandava para lá. Nós ficávamos na casa dele à noite com o lampião e ele contava histórias. Acho que essa influência é dele, essa necessidade de contar histórias.

Infância - Crescer em cidade do interior é muito bom, do ponto de vista de qualquer criança. Aprendemos a ser bagunceiro, a ser aventureiro, a transgredir, a explorar o mundo, a valorizar o cotidiano, a valorizar as amizades, a resolver problemas, se bem que brigávamos muito naquela época. Eu, particularmente, nunca briguei na infância inteira, pois minha perspectiva era de resolver conflitos, que eram voltados para a produção de lideranças. Eu nunca fui líder,  mas sempre tive uma tendência a escolher as pessoas que eu achava que seriam melhores líderes. Tinha uma qualidade de fazer a mediação, uma influência entre aquele que queira ser líder e o restante do grupo. Tínhamos liberdade, o que é essencial para qualquer pessoa constituir um sentimento de autonomia. A falta de liberdade, principalmente para o desenvolvimento da infância, é muito prejudicial para a criação da autonomia. Ao mesmo tempo havia, dentro das relações de vizinhança com os parentes, uma troca e uma diversidade de valores, de pessoas, cada uma querendo ensinar alguma coisa, característica dessas comunidades rurais. Talvez a única coisa de negativa seja o fato de que era uma família pobre. Como toda família nessa situação, passamos algumas privações, em geral todas elas relacionadas a consumo. Em uma sociedade como a nossa, em que o consumo é colocado como constitutivo da pessoa, essa ausência cria alguns problemas. O modelo de sociedade em que eu cresci era bem organizado para suprir essas privações. Eu nunca passei fome, nunca tive problemas ou privações de necessidades básicas, era aquela pobreza integrada, articulada, que reforçava aquela idéia de solidariedade. Hoje eu posso dizer que tive uma infância boa, alegre e feliz.

Estudos - Esse interesse constante por entender as mudanças, as transformações que acontecem na vida social é que acabou me levando, em um primeiro momento, a fazer faculdade de Pedagogia em Taubaté, depois um Mestrado e Doutorado para estudar Antropologia, esse campo que a gente chama de reprodução simbólica da vida.

Carreira - O primeiro momento foi extremamente aleatório, porque a tradição da minha família não tinha a ver com produção de carreira, reproduzia-se o que existia na época. Meu avô era carroceiro e tentou fazer meu pai estudar, mas ele nunca gostou muito, gostava de ler e fazer as coisas, mas ler o que ele gostava. Ele estudou até o colegial e largou e virou pintor de carro, o que fez a vida inteira. Mas minha mãe valorizava muito a educação, foi ela que insistiu que estudássemos. A escolha da universidade foi em um período em que meu pai tinha uma oficina de carro, então ele bancou o primeiro e segundo ano de faculdade para mim e meu irmão. Nós tivemos a possibilidade de escolher dentro de condições específicas. Como eu não tinha muita preocupação com isso na época, escolhi no dia de fazer o vestibular. Escolhi algo que eu achava uma opção correta, que é ser professor. Escolhi dar aulas para surdos, era uma coisa nova, Pedagogia com Habilitação para Deficientes da Áudio-comunicação, surgiu junto com a habilitação para deficientes mentais, quando começou a educação especial no País. Foram quatro anos de escola. Eu gostei muito, aprendi coisas que até hoje acho fantásticas. Depois fui trabalhar na área, fiz estágio na PUC, voltei e fui trabalhar em Campos do Jordão. Foi no trabalho, no enfrentamento da questão de que a maioria dos deficientes desse país provém de condições pobres, que comecei a despertar para outra área, que era dos estudos com pobreza. A primeira opção foi porque queria ser professor e, na segunda, eu escolhi o que eu queria ensinar e aprender. Daí Mestrado e Doutorado, eu fui para a área de antropologia para trabalhar especificamente com essas questões.

Horas Livres - Ler, ouvir música e retomar um pouco os exercícios.

Esporte - Agora que estou em São Leopoldo, vim de São Paulo no ano passado, aqui estou entrando um pouco no hábito das pessoas aqui do PPG, uma vida comunitária, então jogo futebol de vez em quando, apesar de isso dar uns problemas técnicos. Basicamente meu exercício é andar e correr.

Autor - Um autor acadêmico que me marca muito é Alain Touraine, sociólogo francês de uma tradição de estudos dos movimentos sociais. No último livro dele, “Um novo paradigma para compreender o mundo de hoje”, ele faz uma reavaliação da trajetória dele como intelectual e, junto disso, um diagnóstico das mudanças do mundo ocidental nas últimas décadas. Uma autora de romance: a indiana chamada Arundhati Roy, que é autora de um livro belíssimo, meio autobiográfico, mas ao mesmo tempo uma explicação cultural de como funciona o mundo simbólico na Índia, que se chama “ O Deus das pequenas coisas”.

Férias - Ultimamente, tenho aproveitado para viajar. Eu acho que viajar hoje é conhecer, isso faz parte da minha forma de ver o mundo como antropólogo, o que atrai é o desconhecido. As últimas foram para Montevidéu e para as Missões.

Dia Perfeito - Um dia sem confusão, em que as coisas acontecem de forma tranqüila, sem atropelos, em que eu possa trabalhar sossegado e, ao final do dia, chegar em casa e ainda ter disposição para ouvir uma música, ler um romance e, se possível, antes de dormir tomar uma cervejinha.

Música - Eu sou um pouco eclético para música, gosto de conhecer o que as pessoas estão produzindo. Hoje eu tenho duas perspectivas que são mais prazerosas, jazz, principalmente essa leva nova de cantoras como Norah Jones, e o que chamamos em São Paulo de música raiz, que tem uma tradição que vem desde Tonico e Tinoco até Almir Sater.

Filme - Um marcante é Laranja Mecânica.

Política - Eu estou gostando do resultado das eleições, da tendência das últimas pesquisas. Mas eu acho que a política hoje no País passa por um processo de transição de um sistema político que ainda é extremamente clientelista, patrimonialista, personalista e populista, para um sistema democrático e pluralista. Todas essas crises que estão acontecendo, qualquer sociedade que passou de um sistema anterior para um sistema democrático, enfrentou. Nós não íamos passar sem enfrentar também. É o resultado de um projeto de governo e de sociedade que está em jogo, e as pessoas estão tendo que escolher e muito sem saber, pois não tivemos essa experiência democrática muito forte na nossa sociedade, então as pessoas se confundem, e alguns aproveitam essa confusão para deturpar o significado do debate. Mas essa passagem é uma situação que iríamos enfrentar a qualquer momento.

Futuro - Tenho muitos planos. O primeiro é viver pelo menos mais a mesma quantidade que vivi até agora, estou com 45 anos. Chegar aos noventa é uma meta. Para isso vou ter que parar de fumar, me estressar menos no trabalho e, talvez, organizar e planejar o futuro, aproveitando mais as conquistas que tive até agora. Chegou o momento de fazer justamente essa reflexão, daqui para a frente, acho que tudo que vier no sentido de complementação da pessoa é extremamente enriquecedor, e o que vier no sentido de complementação financeira passa a ser supérfluo. Estou naquele momento de fazer a avaliação das prioridades, espero poder ter condições de poder optar pela primeira.

Unisinos - É uma novidade e ao mesmo tempo é um desafio. Eu já conhecia a Universidade há seis anos, mas cheguei aqui no momento que ela entrou em crise. No primeiro momento, isso causou um certo espanto, mas agora eu acho que a crise por que a Unisinos passa, como a crise por que a sociedade passa, é um momento para nos enriquecermos do ponto de vista de definição de projetos. Eu trabalho muito nesse sentido, participo de tudo que posso aqui dentro, é um pouco da minha própria personalidade não fugir do trabalho e também não fugir dos desafios que o trabalho gera. Nesse momento, ela é um pouco isso, novidade por causa da mudança que eu realizei e ao mesmo tempo um desafio, não só pela dimensão da crise, que a Instituição tem plena condição de superar, mas porque em toda a crise temos um grande debate sobre os valores que são necessários para que o projeto futuro da universidade se faça de forma consistente.

Instituto Humanitas - Eu valorizo muito o Humanitas. É um dos espaços dentro dessa Universidade mais produtivos e mais instigadores daquilo que é função da universidade: produzir inquietação, gerar problematização sobre as questões sociais e transformar isso em debates sérios e consistentes, e não ficar reproduzindo mesmices como, às vezes, costuma acontecer em fundações e institutos que existem nas universidades. Nesse ponto, o IHU tem sido extremamente aglutinador dos debates nacionais e produtivo, o que gera inquietação, essencial para mover a relação do ensino-aprendizagem e da pesquisa em qualquer universidade.

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