FECHAR
Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).
Luciano Gallas
“Eu sou defensor da ideia de que, se nós queremos realmente transformar, no sentido prático, a vida das pessoas, fazer com que as pessoas tenham respeito aos seus próprios direitos, aos direitos dos outros, temos que fazer com que haja um diálogo entre as culturas, por mais que isso seja difícil”, afirma o professor e pesquisador Jayme Benvenuto Lima Júnior, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Para ele, é necessário lançar o olhar para nós mesmos enquanto lançamos o olhar para a cultura do planeta, porque só podemos entender o mundo se tivermos um lugar de referência que nos dê sentido.
Conforme Benvenuto, os estudos pós-coloniais buscam construir esta explicação sobre nós mesmos e sobre o que gostaríamos ou não gostaríamos de ser, além de oferecer subsídios para o debate em torno da nossa transformação a partir de nossas colonialidades. “Eu diria que esta é uma perspectiva que busca valorizar as culturas, valorizar, sobretudo, as culturas invisibilizadas”, aponta o pesquisador, para quem as marcas coloniais impedem uma maior interação entre culturas em regiões de fronteiras nacionais como a existente entre o Brasil, o Paraguai e a Argentina. “A interação tem que ser antes de tudo pela cultura, porque, se a gente for depender da interação pelo Estado, começa pelas estruturas, e não pelo sentimento. O sentimento, que consiste nos elementos culturais, pode nos trazer algo de diferente, algo que permita fazer com que essa integração aconteça em outras bases”, enfatiza.
Jayme Benvenuto Lima Júnior possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco, mestrado em Direito pela UFPE, doutorado em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos. Atualmente, é professor adjunto da Universidade Federal da Integração Latino-Americana – Unila, instituição na qual exerce o cargo de pró-reitor de Pesquisa e Pós-graduação. É autor de Manual de Direitos Humanos Internacionais (São Paulo: Loyola, 2002) e Os Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (Rio de Janeiro: Renovar, 2001).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - No livro Os Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (Rio de Janeiro: Renovar, 2001), há uma leitura dos direitos humanos tomada em seu conjunto, a partir da ampliação das conquistas sociais. O conceito de gerações de direitos está de fato superado?
Jayme Benvenuto Lima Júnior – Eu acredito que há uma crítica muito pertinente à classificação geracional dos direitos humanos. O livro, seguindo Cançado Trindade , diz que a classificação prestou um desserviço aos direitos humanos, o que talvez seja uma das mais fortes afirmações no que diz respeito a esta classificação, e com a qual eu concordo plenamente. T. H. Marshall , que foi, digamos assim, o grande artífice dessa classificação, não chegou propriamente a falar em classificação geracional. Ele atribuiu ou criou duas ou três grandes categorias e, a partir daí, outros autores foram trabalhando e chegando a esta definição de categoria de direitos humanos. Marshall estava pensando na realidade inglesa, que é a realidade que ele descreve, e, evidentemente, a partir da visão dele, os direitos humanos surgiram daquela forma. Entretanto, muitos autores, em diversas partes do mundo, tomaram aquela visão como sendo uma visão universal. E, portanto, começaram a entender que isso se aplicaria a todo o universo, a todos os lugares do mundo, em todos os cantos do mundo. A criação dos direitos humanos, sua validação, pressuporia passar por cada uma daquelas fases na primeira, segunda e terceira gerações de direitos humanos. Eu entendo que não se confirma isso: os países têm histórias diferentes, contextos diferentes de exigência de direitos. Se aquilo se aplicou ou se aplica ao padrão ocidental ou ao padrão francês, especificamente, não se aplica a todos os lugares do mundo.
Outra crítica que se faz dentro deste campo, e o professor Cançado Trindade é um dos autores que nos auxilia neste sentido, mostra que, durante a Guerra Fria, nós ficamos como que aprisionados dentro desta discussão, aprisionados em torno de entender os direitos humanos como sendo possíveis apenas dentro destas possibilidades de direitos civis e políticos ou de direitos econômicos, sociais e culturais. E que, com o fim da Guerra Fria, passamos a entender que não tem sentido esta disputa: os direitos humanos são um todo e têm diversas dimensões. Portanto, é muito mais adequado falar em dimensões de direitos do que em categorias de direitos (como algo muito aprisionante). É neste sentido que eu venho fazendo esta crítica e acho, inclusive, que talvez seja essa a grande contribuição do livro, de impulsionar a utilização dos direitos humanos em uma perspectiva mais ampla, com a visão mais ampla dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais ou então dos direitos humanos civis e políticos. Ou seja, introduzindo este elemento “humano” nas categorias, como forma de mitigar a força que estas categorias têm.
IHU On-Line - Como se dá o respeito aos direitos humanos em uma sociedade marcada pela hegemonia do capital?
Jayme Benvenuto Lima Júnior – É evidente que nós não temos o pleno respeito aos direitos humanos. Tanto no plano nacional quanto no plano internacional, temos padrões diferenciados de se fazer valer os direitos humanos. No Brasil, eu diria que temos feito alguns avanços, tanto na área dos direitos civis quanto na área dos direitos econômicos, sociais e culturais, se a gente insiste em vê-los dessa forma. É necessário fazer referência a estas formas por conta de pactos, por conta de leis, por conta do que está estabelecido por aí. Embora eu esteja querendo desmarcar esta força que as categorias têm, eu ainda tenho que me valer das categorias. Então eu diria que temos tido alguns avanços, embora não na altura da necessidade. Estes movimentos que temos tido nos últimos tempos no Brasil inteiro dão conta disso. Os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, todos ao mesmo tempo, como que demonstrando na prática que não têm sentido estas marcas, têm estado no meio da rua no âmbito das lutas sociais. Ao mesmo tempo que se disputam espaços, que se disputam sentidos sobre questões relacionadas, por exemplo, a direitos civis, como o direito de determinados grupos sociais, o casamento igualitário, entre tantas outras coisas, nós temos também toda uma disputa e uma reivindicação de direitos sociais. Então, mostra o quanto o Brasil está ainda necessitado de fazer valer os direitos humanos.
IHU On-Line – Chomsky mostra que o racionalismo ocidental nos levou a uma organização político-econômica de ordem autoritária. De que forma podemos pensar o respeito efetivo aos direitos humanos nesta sociedade?
Jayme Benvenuto Lima Júnior – Eu acredito na força das culturas. O que implica dizer que não temos outras alternativas que não a de fazer uma discussão sobre direitos humanos no âmbito da educação, evidentemente educação enquanto cultura. Sou defensor da ideia de que, se nós queremos realmente transformar, no sentido prático, a vida das pessoas, fazer com que as pessoas tenham respeito aos seus próprios direitos, aos direitos dos outros, temos que fazer com que haja um diálogo entre as culturas, por mais que isso seja difícil. Então, a minha resposta é, evidentemente seguindo por um caminho muito difícil, a transculturalidade. Eu acredito que as pessoas têm que conversar sobre si mesmas, têm que conversar sobre as outras, e é dessa conversa que pode nascer um novo padrão de respeito aos direitos humanos.
IHU On-Line – Os direitos humanos e os princípios do direito internacional muitas vezes são utilizados como justificativa para a realização de intervenções militares ditas humanitárias. Nestes casos, como fica a questão da soberania dos países invadidos em relação aos acordos e tratados internacionais?
Jayme Benvenuto Lima Júnior – Os tratados, neste aspecto, são muito fluidos, são pouco claros, tanto a possibilidade de se interpretá-los com base no respeito pleno à soberania quanto diante de determinadas situações em que se caracterize, por exemplo, a existência de genocídio, de crimes contra a humanidade ou de graves violações aos direitos humanos. Há a possibilidade de utilização da força nestas situações muito restritas, muito graves. E o Conselho de Segurança da ONU seria o órgão autorizado a tomar este tipo de decisão extrema. O que eu chamo a atenção é para os condicionantes, digamos assim, mais políticos e, sobretudo, econômicos que são utilizados na definição destas intervenções humanitárias. Eu, particularmente, sou favorável a que se utilize a força em situações graves, porque não ser favorável implicaria ficarmos assistindo às atrocidades, ou pelo menos aos relatos sobre as atrocidades, às notícias sobre atrocidades em determinados lugares do mundo.
Quando eu falo isso, lembro-me da situação que ficou muito registrada em determinados livros e em determinados filmes, do massacre que houve em Kosovo — em toda a ex-Iugoslávia, de modo geral — e em Ruanda, que foram os dois grandes genocídios da década de 1990. Um destes filmes, que é uma verdadeira denúncia, chama-se, em inglês, Shooting Dogs — em português, Tiros em Ruanda. O que o filme está dizendo, o diretor, enfim, os realizadores, é que a ONU foi ali para atirar em cachorros, porque não podia fazer nada, não podia intervir no conflito em função da ideia de soberania. Ou seja, ali as pessoas, conduzidas ou não por governos, podiam agir como quisessem, podiam matar, torturar, e o máximo que se podia fazer era atirar em cachorros para que eles não comessem os corpos das pessoas, como de fato estavam fazendo e, no fim, tornar o espetáculo mais degradante ainda. Há um chamado, no filme, para que a ONU faça alguma coisa.
O problema está, do meu ponto de vista, nas determinações, nos determinantes políticos e econômicos, e não nas questões que a gente poderia chamar de humanitárias. Chomsky tem dito que as definições são dadas em função de questões políticas e, sobretudo, questões econômicas. Ninguém coloca recursos financeiros para depois não tirar de uma outra forma, colocando suas empresas lá, colocando todo o seu aparato econômico e, antes de tudo, subordinando aquele país às decisões que lhe interessam. Isso é o que tem acontecido. Nós precisaríamos de um sistema “menos politizado”. Esse é o grande desafio. Eu não sei exatamente como nós conseguiríamos isso. O que eu sei é que precisamos de um sistema menos politizado na ONU e nos outros organismos internacionais.
IHU On-Line – Qual é a contribuição possível do pensamento descolonial para a construção de um modelo mais justo e equilibrado de comunidade internacional?
Jayme Benvenuto Lima Júnior – Quando falamos de pensamento pós-colonial ou descolonial, há algumas questões, alguns temas, que para mim são fundamentais. A primeira coisa, a primeira necessidade que se precisa levar em consideração é promover uma espécie de revisão histórica ou crítica à construção da história como nós a temos percebido no ambiente tradicional, ou seja, nos cursos de história, nos cursos de filosofia. A própria constituição da filosofia atende, mais do que tudo, a uma lógica, a uma necessidade do Ocidente, que procura se impor sobre todo o universo. Está aí, portanto, uma crítica ao universalismo ocidental. Não que seja uma crítica absoluta ao universalismo. Nós podemos chegar, digamos, a alguns consensos contingentes, à ideia de que algumas coisas devem permanecer como são ou como estão, ou ser mudadas em função de uma discussão, de um consenso, de um acordo no âmbito das comunidades sociais, das culturas mundiais. Neste tipo de universalismo eu acredito. O que eu não acredito é no universalismo ocidental que se define a partir dos valores ocidentais e que os impõe a todo o resto do mundo.
Isso coloca a necessidade de, em primeiro lugar, revermos a história, rever na forma como fez, por exemplo, Siba N’Zatioula Grovogui , que tem alguns livros neste campo da teoria pós-colonial e que busca reescrever a história, os fatos históricos, sobretudo, sob o ponto de vista do direito internacional. Que elementos da história — por exemplo, em relação ao Haiti — ficaram esquecidos no contexto da libertação dos escravos? Nós conhecemos muito mais a libertação dos escravos, ou as lutas pela libertação dos escravos, no âmbito dos Estados Unidos do que no Haiti. Siba então se embrenha pelo Haiti para buscar documentos, depoimentos, buscar refazer a história para mostrar que, em algumas situações, até mesmo antes que nos Estados Unidos, grupos humanos estavam buscando no Haiti dar significado a estas lutas que a gente pode entender como lutas contra a escravidão. Neste sentido, esta é uma atitude pós-colonial, como é pós-colonial também, e aí já seria uma segunda forma, buscar este novo humanismo que consiste em um olhar a partir de nós mesmos. Ou seja, além de reconstruir a história, estaríamos interessados também, ou estamos interessados, em olhar para nós mesmos ao mesmo tempo que olhamos para toda a cultura universal, para tudo que foi produzido ou tudo que venha a ser produzido no planeta, em todos os lugares do mundo, mas tendo um lugar de referência e tendo, antes de tudo, um lugar que nos dá sentido.
Este novo humanismo que os estudos pós-coloniais buscam construir tem esta perspectiva de buscar explicar melhor como nós somos e como não gostaríamos de ser, como nós queremos ser e em que medida poderíamos transformar a nós mesmos a partir de nossas próprias colonialidades, que foram tão estabelecidas ao longo do tempo. Eu diria que esta é uma perspectiva que busca valorizar as culturas, valorizar, sobretudo, as culturas invisibilizadas. Por exemplo, nos últimos anos eu venho estudando os sistemas internacionais de direitos humanos. E, por estar localizado na fronteira trinacional entre Brasil, Argentina e Paraguai, achei que deveria mudar meu objeto de pesquisa e trabalhar a perspectiva da integração, entender a percepção da integração regional nas cidades de fronteira.
IHU On-Line – E como se dá a questão dos direitos humanos nas regiões de fronteiras nacionais?
Jayme Benvenuto Lima Júnior – Eu diria que as fronteiras são um campo ainda sem proteção, sem uma definição propriamente legal que facilite o respeito aos direitos humanos. Na fronteira trinacional, entre as cidades de Foz do Iguaçu (Brasil), Ciudad Del Este (Paraguai) e Puerto Iguazú (Argentina), nós temos padrões diferenciados. Uma coisa é a fronteira entre o Brasil e o Paraguai, que tem muito mais permeabilidade em todos os sentidos, para o bem e para o mal, e outra coisa é a fronteira controlada entre o Brasil e a Argentina, em que, digamos assim, tem muito mais ordem, mas muito na perspectiva tradicional. E temos, evidentemente, padrões diferenciados de respeito aos direitos nesta fronteira.
Dentro desta ideia de valorização das culturas, que eu vou procurar entender a partir da percepção de algumas comunidades destas cidades sobre a integração regional, eu tenho uma suposição, a de que nossa marca colonial nos impede de ter uma maior interação entre as culturas nesta região, nesta perspectiva pós-colonial de como interagir melhor. Eu acho que a interação tem que ser, antes de tudo, pela cultura, porque, se a gente for depender da interação pelo Estado, começa pelas estruturas, e não pelo sentimento. Eu acho que o sentimento, que consiste nos elementos culturais, pode nos trazer algo de diferente, algo que permita fazer com que essa integração aconteça em outras bases. A interação pelos Estados tem inúmeras limitações. A interação jurídica também pode ficar só nas externalidades, nos tratados, e acredito que se a gente cria, no seio das comunidades, esta necessidade de valorizar as culturas, vamos caminhar por possibilidades melhores de construção desta ideia de integração.
Nesta perspectiva, claro que é um desafio enorme criar novos conceitos, talvez até mesmo novos métodos, mas, sobretudo, novas práticas em torno da visão pós-colonial e, no nosso caso, uma visão pós-colonial no contexto atual latino-americano. Digamos que uma grande busca será a de construção de uma visão do que é ser pós-colonial no contexto atual e a partir da própria América Latina e talvez, ainda, a partir da fronteira trinacional Brasil-Argentina-Paraguai, de modo a construirmos uma visão e uma prática pós-colonial, tendo como referência o lugar em que estamos vivendo e que pode criar ondas para além do espaço restrito da fronteira.
IHU On-Line – É possível afirmar a existência atual de uma integração cultural entre Brasil, Argentina e Paraguai na fronteira trinacional?
Jayme Benvenuto Lima Júnior – Existem algumas tentativas, digamos. Há, uma vez por ano, alguns festivais que são transfronteiriços, como, por exemplo, o festival de corais, os quais se apresentam em um local em cada cidade. Eu diria que é uma forma válida, mas ao mesmo tempo limitada, porque não mistura as pessoas e as experiências. Cada população vai ver aquilo que lhe é oferecido, aquilo implica algum tipo de interação, mas é algo ainda muito limitado. Há ainda feiras de livros e, evidentemente, a circulação de pessoas é muito mais fácil.
Do centro de Foz do Iguaçu para o Paraguai são 14 quilômetros, enquanto de Foz do Iguaçu para Puerto Iguazú são 17 quilômetros. Para ir ao Paraguai, as pessoas não enfrentam quase nenhuma barreira. Claro, há uma fronteira física, mas é muito simples cruzá-la. Com a Argentina, tem que mostrar documentos, tem uma fila, tem um controle rigoroso que é feito pela aduana argentina. Na volta, o Brasil não faz este tipo de controle por conta de uma atitude de favorecer a integração. É possível circular, mas não existem linhas de ônibus com frequência nem funcionamento à noite. Depois das 20 horas, as linhas cessam e, portanto, a circulação fica restrita ao carro. Quer dizer, você não encontra tantas pessoas dos outros países depois deste horário porque isso não é favorecido.
Eu diria que pensar numa integração é pensar na integração do transporte, na integração das pessoas e, antes de tudo, na integração do sentimento. As pessoas ouvem rádio e assistem à tevê dos vários países e há também alguns sites que mostram as atividades culturais, mas este intercâmbio cultural não é tão forte quanto poderia ser. Eu diria que, e aí é uma suposição, o que não é favorecido propriamente é o sentimento de integração entre as pessoas. Eu acho que há mais desconfiança do que propriamente um sentimento de proximidade.
IHU On-Line – E este sentimento de desconfiança seria uma herança da colonialidade...
Jayme Benvenuto Lima Júnior - Com certeza.