Edição 431 | 04 Novembro 2013

A conquista da América como centro da história

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Luciano Gallas e Ricardo Machado / Tradução: André Langer

José-Manuel Barreto aborda as tensões entre a crítica descolonial e a racionalidade eurocêntrica

“A crítica descolonial proporciona uma avançada crítica do eurocentrismo em geral e coloca no centro da história moderna a Conquista da América e a colonização do mundo. Por esta razão, a teoria descolonial pode contribuir substancialmente na tarefa de descolonizar os direitos humanos e de pensá-los na perspectiva das vítimas do colonialismo”, avalia José-Manuel Barreto, em entrevista, por e-mail, à IHU On-Line. Segundo ele, tal contribuição do pensamento descolonial pode ser evidenciada pelo conjunto de tratados internacionais à medida que novos países se tornaram livres e puderam ser amparados legalmente. “Entre estes instrumentos internacionais, podem-se citar a Declaração sobre a Descolonização, a Declaração contra a Discriminação Racial e a introdução do direito à autodeterminação e dos direitos dos povos”, avalia.

Para o professor, é importante também considerar que o novo paradigma amplia o espectro de relações, deixando de se estender somente entre indivíduo e Estado, mas também na relação com “impérios” e companhias transnacionais. Por fim, Barreto destaca que “a teoria descolonial dos direitos humanos coloca em evidência o eurocentrismo e os limites da teoria dominante, recupera a tradição que se desenvolveu no mundo colonizado e cria circunstâncias favoráveis para o estabelecimento — ou a continuação — de um diálogo crítico entre estas duas tradições”.

José-Manuel Barreto é professor visitante no Departamento de Sociologia do Goldsmiths College, em Londres, e no Departamento de Ciência Política da Universidade dos Andes, Bogotá. Possui experiência como ativista de direitos humanos e trabalha com a Comissão Colombiana de Juristas. Bacharel em Filosofia pela Universidade Nacional da Colômbia, realizou mestrado em Direitos Humanos no Institute of Commonwealth Studies e doutorado em Direito no Birkbeck College, ambos em Londres. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - De que maneira se deu o encontro entre a teoria descolonial e os direitos humanos?

José-Manuel Barreto - A Teoria Descolonial começou a ocupar-se do tema dos direitos humanos recentemente. Embora a Filosofia da Libertação de Dussel e a Teoria Descolonial deitem raízes na época dos regimes ditatoriais e das guerras civis que grassaram na América Latina na segunda metade do século XX com suas devastadoras consequências para os direitos humanos, a reflexão descolonial sobre os humanos é um fenômeno do século XXI. Aqui é necessário mencionar que Dussel escreveu desde os anos 1970 sobre figuras importantes da tradição do direito natural, como Bartolomé de las Casas, no contexto de seus estudos sobre a história da Igreja e das ideias políticas. Somente a partir do começo do século XXI esta reflexão se deu na perspectiva dos direitos humanos. E aqui é possível citar os trabalhos de Dussel, Mignolo, Mendieta recolhidos no livro que acabo de editar com o título Human Rights from a Third World Perspective: Critique, History and International Law (Newcastle: Cambridge Scholars Publishing, 2013). Da mesma maneira, é seminal o Primeiro Seminário Internacional sobre Pensamento Descolonial e Direitos Humanos . 

Na direção contrária, a teoria dos diretos humanos começou a se interessar pelas teorias descoloniais e pós-coloniais ainda mais recentemente. Nos últimos tempos, desenvolveram-se visões críticas da versão padrão dos direitos humanos, as quais dão conta do caráter eurocêntrico de seus temas, assim como de suas origens e sua historiografia. A crítica descolonial proporciona uma avançada crítica do eurocentrismo em geral e coloca no centro da história moderna a Conquista da América e a colonização do mundo. Por esta razão, a Teoria Descolonial pode contribuir substancialmente na tarefa de descolonizar os direitos humanos e de pensá-los na perspectiva das vítimas do colonialismo.

 

IHU On-Line - Que papel exerce a filosofia da história nesta redefinição dos direitos humanos e da crítica do eurocentrismo?

José-Manuel Barreto - A Teoria Descolonial distancia-se da filosofia da história na qual se baseia a teoria hegemônica dos direitos humanos. A promulgação da Declaração Universal é usualmente vista como uma resposta à crise da modernidade originada na Segunda Guerra Mundial e no Holocausto. Neste sentido, Richard Rorty  define a cultura contemporânea dos direitos humanos como uma cultura Pós-Holocausto. A Teoria Descolonial, como no caso de Sabine Broeck  e do meu trabalho, situa a crise da modernidade não somente em meados do século XX, como o entenderam Adorno  e Horkheimer , mas mais atrás, no século XVI, com a Conquista da América e o genocídio ao qual deu lugar. A modernidade não teria entrado em crise no final da sua história, mas estaria em crise desde o próprio momento do seu nascimento. Isto porque a capacidade emancipadora da modernidade, que se manifesta com o Renascimento europeu, encontra-se acompanhada pela explosão da força destrutiva da modernidade na Conquista da América e no genocídio colonial. Esta contradição entre emancipação e violência prosseguiu ao longo da história moderna do colonialismo, e ainda vivemos no meio dela. Com base nestas ideias, pode-se falar de uma teoria dos direitos humanos ‘Pós-Conquista’, no sentido de uma concepção dos direitos humanos que toma como contexto histórico e horizonte de interpretação a Conquista da América e a colonização do mundo na época moderna.

 

IHU On-Line - Como se veria a história dos fatos humanos desde este horizonte de interpretação pós-conquista?

José-Manuel Barreto - Uma historiografia descolonial ou Pós-Conquista dos direitos humanos torna a narrativa dos eventos centrais da sua história mais complexa. A história eurocêntrica tem como balizas a adoção da Carta Magna, a Guerra Civil Inglesa  e o Bill of Rights , a Revolução Francesa  e a Declaração dos Direitos Humanos , entendidas como uma resposta ao genocídio europeu. Aqui se pode ver como a história eurocêntrica dos direitos humanos está composta por eventos que ocorreram na Europa e que estão relacionados com as lutas contra o absolutismo e o totalitarismo. Neste contexto, os direitos atuaram como proteção dos indivíduos ante a violência do Estado.

De maneira paralela e com frequentes entrecruzamentos, ao lado desta narrativa clássica emergiu outra corrente dos direitos humanos ligada ao processo de colonização do mundo na época moderna. Já no período da Conquista da América, a teoria do direito natural foi usada tanto para defender os indígenas — no caso de Bartolomé de las Casas e Francisco Suarez  — como para justificar a invasão e o genocídio — no caso dos escritos de Francisco de Vitória e Juan Gines de Sepúlveda . De maneira similar, desde os primeiros esforços para acabar com a escravidão no século XVIII, o direito natural foi uma das doutrinas às quais acorreram escravos libertos, como Olahuda Equiano  e Ottobah Qugoano , para criticar o tráfico de escravos e justificar sua extinção. A ideia dos direitos também foi central na justificação das lutas pela independência que se deram nas Américas no final do século XVIII e começo do século XIX. A luta pela independência dos Estados Unidos, em 1776, do Haiti, em 1804, e da maioria dos países latino-americanos justificou-se em grande parte com o discurso do direito natural e dos Direitos Humanos. As cartas de direitos ocuparam, depois, um lugar central nas constituições adotadas no momento do nascimento das repúblicas americanas e contribuíram para a formação dos novos Estados. Outro momento chave constituiu o processo de descolonização que avançou na África, Ásia, Oriente Médio, Caribe e Oceania, sobretudo na segunda metade do século XX. A contribuição do processo de descolonização para os direitos humanos pode ser vista, sobretudo, no conjunto de tratados internacionais que foram aprovados em consequência da presença dos novos países liberados nas Nações Unidas. Entre estes instrumentos internacionais, podem-se citar a Declaração sobre a Descolonização, a Declaração contra a Discriminação Racial e a introdução do direito à autodeterminação e dos direitos dos povos. Nesta corrente histórica, os direitos humanos trabalham como barreiras que protegem os colonizados diante da violência perpetrada por impérios e companhias multinacionais.

 

IHU On-Line - Que consequências para a concepção dos direitos humanos pode ter esta dupla narrativa de tradições ou correntes dos direitos humanos que avançam paralelas e se cruzam?

José-Manuel Barreto - A recontextualização dos direitos humanos de acordo com uma filosofia da história que coloca a Conquista da América como horizonte de compreensão, assim como a elaboração de uma historiografia que tem o colonialismo como um dos seus eixos de interpretação, sentam as bases para uma nova concepção dos direitos humanos. Esta compreensão distinta dos direitos humanos, por sua vez, tem uma série de consequências sobre a maneira como podemos pensar aspectos particulares da teoria dos direitos, tais como seus temas, seu âmbito de sua existência, seus fundadores, sua natureza e a produção de direitos. Dentro deste novo paradigma podemos pensar os direitos não apenas no âmbito das relações entre o Estado e o indivíduo, mas também na esfera do encontro entre impérios e companhias transnacionais, de um lado, e povos e indivíduos colonizados, de outro. O cenário da vida dos direitos humanos não seria apenas o Estado-nação, mas também o mundo moderno — entendido como sistema-mundo no sentido de Wallerstein , ou como mercado mundial no sentido de Marx — ou a ordem legal global. Na medida em que a tradição eurocêntrica dos direitos humanos tem uma forte influência do liberalismo, os direitos foram concebidos principalmente como direitos individuais. No entanto, pode-se dizer que os direitos tiveram também, desde o começo da modernidade, uma natureza coletiva, pois o direito de autodeterminação dos povos colonizados foi empunhado desde os tempos de Bartolomé de las Casas para proteger os povos indígenas americanos. Uma visão descolonial dos direitos humanos, finalmente, modifica o discurso da produção de direitos na qual se dá a prerrogativa aos direitos da primeira geração ou direitos individuais, se tivermos presente que os direitos dos povos já foram mencionados no século XVI.

 

IHU On-Line - Nas circunstâncias atuais, como é possível descolonizar a produção do conhecimento e, em especial, a teoria dos direitos humanos?

José-Manuel Barreto - A descolonização dos direitos humanos pode ser feita através de um processo complexo que envolve ao menos três momentos: crítica da teoria eurocêntrica; recuperação, reconstrução ou reconhecimento da tradição não-europeia; e promoção de um diálogo crítico entre as duas tradições. O primeiro momento consistiria em despojar a teoria europeia de sua suposta validade universal e em demonstrar que a Europa não é o único lugar a partir do qual se pode teorizar sobre os direitos humanos. Aqui é oportuno esclarecer que, quando falo de Europa, faço-o no sentido filosófico do termo desenvolvido por Habermas, para quem este conceito não inclui apenas a Europa geográfica, mas também os países que adaptaram e desenvolveram em maior grau os padrões básicos da modernidade europeia, como no caso dos Estados Unidos, da Austrália e do Japão. O conceito de Europa seria equivalente ao de Ocidente ou mundo ocidental.

O segundo movimento consiste na elaboração de uma história alternativa e suplementar (no sentido derridaniano do termo) dos direitos humanos que evidencie como a doutrina do direito natural, dos direitos do homem e dos direitos humanos também se imiscuiu na história das relações entre os impérios modernos e os povos colonizados. Uma vez situados neste cenário, pode-se ver como também existe uma tradição anti-imperialista dos direitos humanos, que começa com Montesinos  e Las Casas, no século XVI, e que continua hoje na luta de comunidades indígenas, movimentos sociais e países do Terceiro Mundo contra os impérios contemporâneos e as multinacionais.

A terceira instância deste processo é a do diálogo entre as duas tradições, o que supõe que, embora parcial e limitada, a concepção eurocêntrica é indispensável — como disse Dipesh Chakrabarty  —, mas requer um processo de transformação através do contato com outras visões dos direitos humanos. Reclamar a tradição anticolonialista dos direitos humanos, em especial a do direito à autodeterminação, sem reclamar também a tradição liberal e democrática dos direitos, teve péssimas consequências no Terceiro Mundo. Depois da independência, formaram-se regimes comandados por líderes nacionalistas ou populistas que se converteram em tiranos e ditadores. Este é o caso da história dos últimos 50 anos na Tunísia, Egito, Líbia, Iêmen e Síria evidenciada pela Primavera Árabe , assim como da história de países africanos como o Zimbábue. Por outro lado, propor uma ruptura completa com a tradição europeia seria apenas uma manobra ilusória e demagógica pelo fato de que a teoria não-europeia dos direitos humanos tem, na tradição europeia, uma das suas raízes fundamentais.

Assim mesmo é necessário continuar e promover os diálogos Sul-Sul que aconteceram esporadicamente durante séculos, e que na época da globalização se apresentam com maior frequência e intensidade. Da mesma maneira, é absolutamente crucial criar cenários nos quais a cultura dos direitos humanos entre em diálogo com as culturas indígenas em todos os continentes, com o objetivo de ampliar o conjunto de valores que sustentam os direitos humanos e de evitar que a cultura dos direitos se converta na única matriz de valores válidos. À maneira de conclusão, pode-se dizer que a teoria descolonial dos direitos humanos coloca em evidência o eurocentrismo e os limites da teoria dominante, recupera a tradição que se desenvolveu no mundo colonizado e cria circunstâncias favoráveis para o estabelecimento — ou a continuação — de um diálogo crítico entre estas duas tradições, assim como para a continuação do diálogo Sul-Sul e do diálogo com as culturas aborígenes.

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