Edição 431 | 04 Novembro 2013

A reconstrução das ruínas após o Apocalipse

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Luciano Gallas e Andriolli Costa / Tradução: Benno Dischinger

Oscar Guardiola-Rivera entende o projeto pós-colonial como um resgate do que ainda é útil no pensamento ocidental para a construção de novas lógicas e perspectivas

Atualmente, a racionalidade ocidental opera sobre a subjetividade aquilo que Oscar Guardiola-Rivera descreve como uma “política perspectivista de verticalidade”. O olhar de cima para baixo, sendo que embaixo estariam todos os povos do sul e os países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, é carregado de preconceitos e estereótipos, pois enxerga o outro não como um igual, mas como “alienígenas, seres exóticos, inércias objetivas no espaço e no tempo”. Por isso, esses povos são apropriáveis e podem ser tomados como colônias conquistadas, ou então “flutuam num limbo de vulnerabilidade e, portanto, requerem proteção, salvação ou, se já não se pode “salvar”, contenção e intervenção (também militar). 

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Guardiola-Rivera critica as formas como esta operação de controle vertical “conspira para fazer da racionalidade um fenômeno “ocidental”, quando na realidade a racionalidade ou o desejo de verdade constituem fenômenos universais”. A solução apontada por ele é o rompimento com esta lógica hegemônica para que surja espaço para o novo. “Seria preciso começar por reconhecer que o Apocalipse já ocorreu e que, então, nosso projeto é, agora, de salvamento”, afirma ele. “Salvar o que nos é útil dentre as ruínas deixadas pelas catástrofes atuais e as do século XX, com o fim de construir perspectivas, lógicas e práticas novas.”

Oscar Guardiola-Rivera é colombiano, graduado em Direito, possui doutorado em Filosofia pelo King’s College of the University of Aberdeen, Reino Unido, é professor no Birkbeck College, Reino Unido, e colaborador do Instituto Birkbeck para as Humanidades. É autor do livro What If Latin America Ruled the World? (Londres: Bloomsbury, 2010), “E se a América Latina governasse o mundo?”, em tradução literal.

Confira a entrevista.

 

IHU On-line - Como se dá o controle da subjetividade, da cultura e da produção do conhecimento sobre a hegemonia da racionalidade ocidental?

Oscar Guardiola-Rivera - O controle da subjetividade dependeu, pelo menos desde o século XVI, do que me agradaria chamar uma “política perspectivista de verticalidade”. Dita política se torna concreta de duas maneiras que constituem os dois lados de um mesmo aparato de captura: De uma parte, se faz predominar uma representação visual do mundo e, no mesmo, de nosso sentido espacial e temporal de orientação, como dependentes de um horizonte ou perspectiva linear e de um olhar “aéreo” ou vertical. Da outra parte, mediante a desqualificação — a partir de cima — de eventos históricos coletivos de organização política coletiva e construção que tem tido lugar em baixo, como se se tratasse de patologias destinadas ao lixo da história. 

Há dois exemplos disso na história recente das Américas: o primeiro ocorreu em 1969. Naquela época o assessor de segurança do governo estadunidense, Henry Kissinger , disse ao embaixador chileno da época que “a história não tem lugar no sul”. Para sustentar sua afirmação, descreveu o que equivale a uma imagem do mundo que, segundo ele, “começa em Moscou ou Beijing, passa pela Europa e culmina na América do Norte”. Segundo Kissinger, somente o que sucede dentro deste horizonte tem sentido histórico. Todo o demais simplesmente não ocorre, não existe ou não tem sentido. 

E, segundo: em nossa época se insiste que os experimentos de subjetividade rebelde que ocorreram durante as décadas dos anos 1960 e 70 de maneira inevitável provocaram respostas violentas — cuja linguagem incluía termos como “luta de classes”, “libertação nacional”, “negritude”, “indigenismo”, “aliança estudantil-camponesa-operária” ou “nacionalização sem compensação” — que os condenam (eticamente) a uma espécie de ignomínia histórica. De tal maneira se apagam memória e história, e estas são substituídas por uma mal nomeada “cultura” (cultura dos direitos humanos e da intervenção para proteger, cultura da autogestão, etc.), com o que se busca retirar da caixa de ferramentas das gerações presentes, especialmente no sul global, quaisquer ferramentas de construção esperançosa de subjetividades e conhecimentos não dóceis. 

Conhecimentos não dóceis

As subjetividades e conhecimentos não dóceis são aqueles que contribuem para dissolver o horizonte linear, para questionar a perspectiva a partir de cima, e inspiram a construção (a partir das ruínas, a partir de baixo) de subjetividades mais universais e inclusivas. O tipo de operações de controle que descrevi antes conspira para fazer da racionalidade um fenômeno “ocidental” (o que quer que seja que isso queira dizer), quando na realidade a racionalidade ou o desejo de verdade constituem fenômenos universais. Isso vai juntamente com a apropriação dos espaços globais do planeta ou seu controle e vigilância a partir de cima, verticalmente. Na atualidade, tal controle tem lugar na verticalização mais geral das relações de raça e de classes intensificada a partir de cima, e vista, como o disse a cineasta Hito Steyerl , através das lentes e das telas das indústrias militares de informação e entretenimento. Por exemplo, a vigilância sobre a internet e as comunicações latino-americanas por parte do NSA  estadunidense. 

 

IHU On-line - Qual é o impacto do colonialismo sobre a existência? 

Oscar Guardiola-Rivera - Numa palavra, inexistência. O colonialismo não é tão só um fenômeno do passado histórico ou a mera extensão dos “centros” sobre as “periferias” do globo. É, antes de qualquer coisa, uma forma de governo de um só através do governo de outros que desqualifica estes “outros” como alienígenas ou outros culturais, seres exóticos, inércias objetivas no espaço e no tempo que, por isso, são apropriáveis, entes que flutuam num limbo de vulnerabilidade e, portanto, requerem proteção, salvação ou, se já não se pode “salvar”, contenção e intervenção (também militar). Estando assim as coisas, o fim último do colonialismo é — como o disseram Nelson Maldonado-Torres  e Eduardo Mendieta ao ler a teoria crítica da sociedade com as lentes de Enrique Dussel e Frantz Fanon  — ontológico: condenar um conjunto de entes ao limbo, ao purgatório, à zona do não-ser ou à inexistência. 

 

IHU On-line - Que relação é possível fazer entre a suposta universalidade das ciências sociais e humanas e a hegemonia do modelo racional eurocêntrico de pensamento? 

Oscar Guardiola-Rivera - É correto que a pergunta se refira à “suposta universalidade” (de um modelo centrado na Europa e nos Estados Unidos), que considero oposta ao caráter realmente universal da razão e o desejo de verdade como projeto inacabado e infinito impulso. Como projeto e impulso infinito, as ciências naturais ou sociais, provenientes do norte ou do sul, não podem, por definição, ser hegemônicas no sentido proprietário de possessão ou soberania. O impulso infinito do saber em todas as suas formas e em todos os lugares nos quais tem lugar resiste a qualquer forma de limitação e, em particular, a limitação proprietária. Esta última reduz o fazer, o ser e o saber – ou, se preferem utilizar termos platônicos , a verdade, a beleza e a bondade – à vontade de acumulação e reprodução viral do dinheiro. Todas as sociedades mal nomeadas de “tradicionais” impunham sérias regras à extensão da lógica monetária, não porque não a conhecessem, senão, ao contrário, porque a conheciam muito bem. Sabiam que a extensão dos procedimentos de apropriação monetária e acumulativa são o que há de mais parecido à loucura que estes provocam e reproduzem até desintegrar o tecido social. E o tecido social – a rede de relações comunicacionais e de outro tipo, nas quais entramos e das quais saímos – é uma condição do pensamento. Isto é válido tanto para as ciências humanas como para as naturais. Isso, não porque o conhecimento das ciências naturais dependa das perspectivas sociais particulares, senão antes porque é precisamente ao romper com o status quo do mundo social que podemos nos aventurar por mundos sociais novos, assim pelos que estão além de nossos constructos sociais e dos quais ignoramos tudo ou quase tudo. 

 

IHU On-line - Que contribuição pode fornecer o pensamento descolonial para a transformação e reconstrução das relações de poder? É possível conceber um modelo de sociedade sem a existência de grupos com acesso privilegiado aos recursos e aos centros de decisão? 

Oscar Guardiola-Rivera - Não só é possível, é atualmente necessário projetar modelos de sociedade que não dependam do acesso privilegiado aos recursos e à tomada de decisão. Isso porque continuar reproduzindo relações de poder baseadas no privilégio e no acesso exclusivo (proprietário) produz políticas de verticalidade que aceitam como natural e inevitável o sacrifício dos muitos inocentes. Ao contrário da tragédia antiga, na moderna sempre são os inocentes que perdem e, ao fazê-lo, se sacrificam também o tempo atual (a possibilidade de algo novo na história e, portanto, de um presente e um futuro) e os espaços. 

As correntes perspectivas e as visões a partir de cima recriam as sociedades e os espaços urbanos e rurais como se fossem abismos (catástrofes a ponto de ocorrer, povos monstruosos, selvagens nas portas da cidade) e terrenos fragmentados de intervenção e ocupação. Mas, assim como as perspectivas lineares começaram a entrar em crise quando os corpos dos escravos foram atirados pela borda para que se afogassem e os comerciantes pudessem cobrar seus seguros (a referência aqui é tríplice: tanto à pintura de Turner  como ao caso do barco negreiro Zong  e à revolução haitiana), da mesma maneira a perspectiva vertical que representa as condições contemporâneas de desorientação e interrupção contêm, elas mesmas, as sementes de sua destruição e de nossos novos projetos construtivos. Assim, por exemplo, a juventude chilena encontrou na perspectiva vertical do “modelo” mal nomeado neoliberal e de “democracia protegida” da época pinochetista, as ferramentas para reclamar o legado interrompido da época de Allende  e projetá-lo no presente; para salvar este presente de protesto e construção de qualquer futuro especulativo tirado da cartola pelos especuladores proprietários. É isto que eu mostrei em meu último livro Story of a Death Foretold. The Coup Against Salvador Allende, September 11, 1973 [NT: História de uma morte anunciada. O golpe contra Salvador Allende, 11 de setembro de 1973] (New York: Bloomsbury, 2013).

 

IHU On-line - O que pode ser dito sobre a reconstrução do pensamento crítico em outros modelos, capazes de dar novas possibilidades em termos de perspectivas, lógicas e práticas?

Oscar Guardiola-Rivera – Que é necessário repensar nossas imagens do mundo em termos de políticas de verticalidade que podem ser subvertidas. É preciso pensar as tecnologias de vigilância, imagem; redes sociais, etc., neste sentido. Isso implica reconhecer com modéstia as causas de nossa impotência contemporânea numa espécie de ético-religiosidade abstrata que condena toda resposta crítica como violenta e historicamente ignominiosa. Examinar criticamente a constante repetição de imagens de inevitável catástrofe histórica que ocorre nas telas de cinema, televisão e internet. Mas, também resgatar o impulso religioso (e popular), imaginário, revisado nos termos da democracia e do sentido bíblico de justiça como um remédio aqui e agora (algo que na América Latina temos recebido, com liberdade, dessa verdadeira Reforma que foi a Teologia da Libertação ). Dito de outra forma: seria preciso começar por reconhecer que o Apocalipse já ocorreu e que então nosso projeto é agora de salvamento – salvar o que nos é útil dentre as ruínas deixadas pelas catástrofes atuais e as do século XX, com o fim de construir perspectivas, lógicas e práticas novas (e não simplesmente novidades). Com o escritor de ciência-ficção China Mieville , me agradaria denominar esse projeto ‘selvagem punk’. Mas, aqui na América Latina e no Brasil, onde temos claro que qualquer revolução que valha a pena deve estar acompanhada de baile, talvez seja melhor valar selvagem-funk punk.

 

IHU On-line - Compreender a matriz colonial e a profunda relação modernidade/colonialismo são fundamentais para a implementação de um projeto de efetiva transformação social e política?

Oscar Guardiola-Rivera - Sem dúvida, essa matriz continua gerando as perspectivas verticais da política (geopolítica, biopolítica, tanatopolítica, virtualpolítica) atuais. Temos que reconhecer tais imagens do mundo, essas visões históricas que nos capturam, com o fim de produzir outras novas em literatura, cinema, artes plásticas, mas também na prática política. E isso é mais possível hoje na América Latina do que o pode ser em outras partes do globo (por exemplo, na Europa do sul), não porque ali seja menos necessário, quiçá até o seja mais, senão porque as comunidades a partir de baixo já tem feito um trabalho e um esforço cujos bons resultados são visíveis e extraordinários. Tendo reconhecido ditos bons resultados, agora nos corresponde reconhecer também que talvez estejam se esgotando, que estejam em perigo (por exemplo, a crise venezuelana, os protestos no Brasil ou na Colômbia) e que por isso mesmo é hora de projetar e dar lugar a uma segunda onda que aprofunde a “onda vermelha” das primeiras décadas deste século. 

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