Edição 201 | 23 Outubro 2006

Revoluções cisplatinas. A República Riograndense, de Alfredo Varela

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IHU Online

I Ciclo de Estudos sobre a formação social sul-riograndense

Analisar aspectos da obra Revoluções cisplatinas. A República Riograndense. Porto: Livraria Chardron, 1915. Esse é o objetivo da Prof.ª. Drª. Ana Inez Klein em 25-10-2006 no I Ciclo de Estudos sobre a Formação Social Sul-Riograndense: contribuições à leitura de seus intérpretes. De autoria de Alfredo Varela, a obra é considera um ícone para compreender a formação de nosso Estado.

Graduada em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Klein é mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutora pela mesma instituição com a tese Fronteiras de cristal: um estudo da história e da memória nas crônicas de Antônio Álvares Pereira Coruja (1806-1889). Atualmente, leciona nas Faculdades Cenecistas de Osório. É uma das autoras de Raízes de Osório. Porto Alegre: EST, 2003. 

Uma obra sobre o passado para compreender o presente

Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, a historiadora mencionou que “de forma geral é possível apontar algumas permanências da história do Rio Grande do Sul, desde os primórdios da ocupação portuguesa e espanhola até os dias de hoje, marcas profundas deixadas na porção mais meridional da colônia lusitana na América, que são comuns ao resto do País e, mais, são comuns a todos os países que serviram de colônia da Europa, no período da expansão mercantil européia”.

IHU On-Line - Qual é a atualidade da obra Revoluções cisplatinas. A República Riograndense, de Alfredo Varela?

Ana Inez Klein
- A atualidade de um documento histórico, neste caso Revoluções Cisplatinas (1915), uma obra produzida no passado, não decorre de um valor intrínseco, natural, que o documento possa ter, mas das questões do presente a que esta obra pode responder. A história caracteriza-se por ser um campo do conhecimento que parte do presente para o passado e, por isso, a história dos mesmos documentos se reatualiza constantemente em função das perguntas que o historiador, no presente, faz a estes documentos. A obra de Alfredo Varela, em síntese, apresenta uma versão sobre os debates acerca da organização do Estado Nacional nos primeiros anos da República.

Ao elaborar um estudo sobre a Revolução Farroupilha como movimento separatista, num momento de intensos debates sobre os interesses divergentes na relação entre as forças regionais e a centralização do poder, Varela assume uma posição de defesa de maior autonomia dos estados que compõem a Nação brasileira, contrariando os interesses de quem defende a centralização. Este debate vai gradativamente ganhando importância na medida em que, em 1930, o gaúcho Getúlio Vargas  ocupa a presidência do Brasil e Varela publica A História da Grande Revolução, obra em 6 volumes, onde reafirma sua visão separatista da Revolução Farroupilha. Revoluções Cisplatinas antecipa a polêmica ocorrida por ocasião da publicação da A História da Grande Revolução em 1933, durante os preparativos para as comemorações do centenário da Revolução Farroupilha, ocorrido em plena Era Vargas .

IHU On-Line - Quais são os traços que persistem daquele Rio Grande do Sul que inspirou Varela a escrever?

Ana Inez Klein
- De forma geral, é possível apontar algumas permanências da história do Rio Grande do Sul, desde os primórdios da ocupação portuguesa e espanhola até os dias de hoje, marcas profundas deixadas na porção mais meridional da colônia lusitana na América, que são comuns ao resto do País e, mais, são comuns a todos os países que serviram de colônia da Europa, no período da expansão mercantil européia.  Rapidamente podemos destacar três pontos fundamentais: o acesso à terra, a desigualdade social e a dependência econômica.

A nossa estrutura fundiária é excludente. Os afrodescendentes, utilizados como mão-de-obra escrava no período da Revolução Farroupilha, possuem as piores condições sociais, são as maiores vítimas da desigualdade econômica e social. Por último, a dependência econômica que pode ser percebida na evolução da dívida externa, reduzindo nossa soberania por conta de compromissos contratados com as instituições internacionais, que garantem os recursos. Essa mesma relação de dependência econômica se repete na relação dos estados com a União. Parece que as mudanças têm ocorrido mais na superfície, na modernização, do que na própria estrutura sobre a qual se constroem todas as outras instâncias.

IHU On-Line - De que forma os conflitos cisplatinos são retratados por Varela?

Ana Inez Klein
- Na introdução do segundo volume de Revoluções Cisplatinas, Varela cita Bento Gonçalves : “Eu protesto à face dos céus, e dos homens, acabar antes nas ruínas de minha pátria, do que vê-la escravizada.” A epígrafe dá o tom da obra que mostra homens briosos, lutando para livrar a província da escravidão do império. A história contada por Varela é uma história de homens. Comandados ou estrategistas, leais ou traidores, fortes ou fracos, covardes ou corajosos, é a saga de um povo contada pela ação de alguns líderes. O trabalho foi publicado em dois volumes, mas está originalmente dividido em três tomos, que iniciam apresentando aspectos da natureza da Pampa. Já nesta parte, que enfatiza a geografia do Rio Grande do Sul, o autor constrói a narrativa analisando a atuação de homens, que por seu caráter excepcional, vão, efetivamente, fazer acontecer a história do Rio Grande do Sul.

IHU On-Line - Como o general farrapo Antônio Souza Netto é descrito pelo autor? Que outras figuras históricas importantes ganham espaço nessas páginas?

Ana Inez Klein
- Antônio de Souza Netto  é um destes grandes homens de Varela: um “brioso moço, cuja formosura gozava de fama que chegou até nós e que foi encanto de muitas mulheres no tempo” (página 93), “foi um modelo de perfeição cavalheiresca impecável, nos dez anos da grande guerra civil, durante a qual os liberais da Corte o olharam como um e por fim o nomeavam de a ” (página 96). Esta narrativa de heróis, cavalheiros impecáveis, uma visão romântica da história, inclui muitos personagens como Bento Manuel , David Canabarro , João Manuel e o próprio Bento Gonçalves. É importante destacar que eles não são para Varela defensores de interesses próprios, mas legítimos representantes de uma causa popular.

Ao analisar a participação de rio-grandenses nas lutas na cisplatina, Varela questiona: “A participação dos rio-grandenses é, porém, o solitário impulso de poucas almas generosas, é o puro exaltamento de alguns cavalheiros, enamorados do bem, que correm em socorro dos oprimidos?”. “Não creio”, responde Varela, e apoiado em farta documentação mostra serem as causas das lutas, causas de todas as camadas da população. Nossos heróis não fazem mais do que representar os anseios, as vontades, os desejos e a consciência já presentes nas mentes dos rio-grandenses.  

IHU On-Line - Qual é a explicação de Varela para as cores da bandeira republicana?

Ana Inez Klein
- Em Revoluções Cisplatinas, Varela mostra de que forma o jornal O Republico, de 21 de fevereiro de 1837, interpreta as cores da bandeira: “Os republicanos têm adotado um pavilhão tricolor – verde e amarelo nos extremos, encarnado no centro. Cremos que o verde é esperança de manterem sua independência; o amarelo sinal de firmeza e resolução nos seus planos; o encarnado noticia que levarão o fogo a qualquer parte, que os pretenda incomodar.” Esta interpretação põe em relevo os princípios que justificam a guerra que ocorria no sul do império: independência, firmeza e fogo, ou seja, a defesa da autonomia, a certeza da causa e o anúncio de novas guerras sempre que a independência for ameaçada. Ela representa, em parte, os ânimos que embalam os primeiros anos do movimento. Mais importante é destacar que esta interpretação das cores da bandeira é a interpretação que Varela escolheu, um exemplo de como o autor seleciona e faz uso da documentação para, a rigor, defender a sua versão sobre a guerra.

IHU On-Line - Se tivesse que ser reescrita em nossos dias, quais seriam os principais registros históricos gaúchos, ocorridos de 1915 para cá, dignos de registro em um livro dessa importância?

Ana Inez Klein
- Uma obra não se organiza apenas em função do seu conteúdo, mas também de sua forma: se fosse reescrito hoje seria outro livro, obedeceria a outras motivações, responderia a outras questões. O historiador francês Michel de Certeau  analisa como se dá a operação histórica que resulta na fabricação da história e destaca que existe um lugar social de onde falam estes intelectuais e procedimentos de análise que validam estas interpretações.  Então a obra de Varela só pode ser compreendida no seu lugar – no espaço e no tempo – e todas as hipóteses sobre novos registros que considerarão outro lugar e outros procedimentos, resultarão em uma outra obra, uma segunda obra. O que podemos é analisar possíveis apropriações desta obra que ocorrem sempre que estão em debate a formação do Estado Brasileiro e a identidade do gaúcho ou mesmo como esta identidade se insere numa identidade nacional.

IHU On-Line - É possível dizermos que a obra de Varela ajudou a solidificar o sentimento ufanista dos gaúchos? Por quê?

Ana Inez Klein
- O uso que se faz de uma obra foge, muitas vezes, da intenção de seu próprio autor, mas evidentemente que elementos dos estudos empreendidos e registrados por Varela se oferecem a um tipo de apropriação no presente. É o que ocorre com aqueles que defendem uma maior autonomia do Rio Grande do Sul em relação ao Governo Central. Para estes, o Rio Grande tem uma identidade própria, que o diferencia do resto do País, baseada em uma superioridade forjada no seio desta história de lutas, de guerras, em que se defendeu uma nação considerada muitas vezes injusta com seus defensores. Há aqui um perigo iminente de basear a identidade do gaúcho na discriminação, na inferioridade dos demais brasileiros, e um risco, ainda maior de, no destaque às diferenças, perderem-se as análises das estruturas que sustentam a história comum de toda a América Latina, o que em nada contribui para que alcancemos uma sociedade mais justa.

 

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