Edição 430 | 21 Outubro 2013

“A realização da liberdade humana é um produto da história humana”

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges e Luciano Gallas/Tradução: Luís Marcos Sander

Para Tom Rockmore, os seres humanos, na maior parte das vezes, não estão conscientes do que está ocorrendo no processo histórico, o qual descarta os homens após estes serem superados

“O legado de Hegel no tocante à filosofia da história consiste em oferecer uma forma de entender a história humana como algo que não está encerrado no duplo movimento de afastamento de Deus e de retorno a ele, que é a concepção cristã padrão, ao mesmo tempo em que rejeita a concepção anticristã de que a história humana não é racional, e não é irracional, mas basicamente arracional, pois nada acontece”, declara o filósofo Tom Rockmore. Segundo ele, Hegel entende que, em sua maior parte, a história humana parece estar além da compreensão dos seres humanos, que não percebem o que está ocorrendo — ainda que os seres humanos sejam os atores de sua própria história.

“O que está acontecendo é a realização da liberdade humana, que é, ela própria, um produto da história humana. Esse resultado geral se manifesta num processo histórico em que os seres humanos muitas vezes não estão conscientes do que está ocorrendo e em que o processo histórico parece tomar conta dos indivíduos — segundo Hegel, os grandes homens da história — que servem à finalidade desse processo durante certo tempo como um veículo através do qual a história progride e depois, como Napoleão — e, em nossa própria época, talvez Gorbachev —, são descartados à medida que a história vai além deles’, expõe Rockmore em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Dessa forma, os homens seriam ao mesmo tempo atores e instrumentos do processo histórico que realizam.

De nacionalidades estadunidense e francesa, Tom Rockmore possui doutorado em Filosofia pela Universidade de Vanderbilt, Estados Unidos, e leciona nas universidades de Duquesne, em Pittsburgh, EUA, onde é professor emérito, e de Pequim, em Beijing, China, onde é professor visitante. Embora negue a distinção habitual entre a filosofia e a história da filosofia, ele tem interesses acadêmicos na história da filosofia moderna e defende uma visão construtivista da epistemologia. Estuda Kant, Fichte, Hegel, Marx, Lukács e Heidegger. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Em que medida se pode falar em inteligibilidade da história em Hegel?

Tom Rockmore - Hegel é, com frequência, entendido como um pensador religioso, para o qual o ator último da história é o Deus cristão ou, ao menos, um fator religioso, que ele aborda sob o título de “o Absoluto”. De acordo com a teologia cristã tradicional, Deus não é cognoscível, e sim inescrutável, estando para além da capacidade de cognição humana. O interesse de uma teoria hegeliana da história na atualidade é que ele apresenta uma concepção de história como inteligível, baseando-se no fato de que a história humana, que é feita por seres humanos, é, por esta razão, inteligível. Neste sentido, embora sua posição careça do pano de fundo teológico que é central em Vico , há uma profunda semelhança. A análise da história feita por Hegel começa com sua adaptação da concepção aristotélica de história como uma história que está sempre e intrinsecamente voltada para um alvo, destinada a produzir a felicidade humana como alvo último de tudo que fazemos. A partir dessa perspectiva, os seres humanos, que agem individualmente ou em grupos, procuram realizar sua felicidade em grupos sociais, ainda que, como destaca Hegel, o que intencionamos e o que produzimos são, com frequência, duas coisas muito diferentes, pois a história tem uma espécie de lógica intrínseca, que muitas vezes frustra nossos melhores esforços. Este é um aspecto que Marx ressalta através da atenção que dá à subestrutura econômica do capitalismo moderno e que Hegel ressalta de modo mais geral através do conceito de astúcia da razão.

 

IHU On-Line - Como esse pensador se posiciona sobre o debate a respeito da história em seu tempo e quais são suas proposições fundamentais a respeito desse tema?

Tom Rockmore - A relação entre a concepção hegeliana de história e sua própria época é complexa e, muitas vezes, entendida erroneamente. Hegel estava, em parte, entusiasmado com a Prússia de sua época por ao menos duas razões. Em primeiro lugar, todo governo, de qualquer tipo, encarna uma forma de racionalidade, o que não significa que ele constitua qualquer coisa assim como o fim ou alvo da história humana. Em segundo lugar, Hegel, que tem uma concepção teleológica da história humana, pensa que os seres humanos são livres, mas só se tornam cientes de que são livres num tempo e lugar determinado, a saber, na então Alemanha moderna do século XIX. Entretanto, esses dois aspectos, que são razoáveis, foram, muitas vezes, entendidos erroneamente. É paradoxal que a concepção marxista de que Hegel vê na Alemanha de sua época a realização da história seja refletida por Popper , que é um inimigo declarado tanto do marxismo quanto de Hegel. A concepção marxista de que Hegel pensa que a Alemanha de sua época seja o alvo histórico reflete a tese jovem-hegeliana de que a filosofia chega a um ápice e a um fim no pensamento. É claro que Hegel, que pensa que toda posição, inclusive sua própria, faz parte de um debate contínuo, nunca reivindica isso. A concepção de que Hegel, que estava basicamente preocupado com a realização da liberdade humana no processo histórico, estava, antes, profundamente comprometido com a Prússia de sua época é uma grave leitura errônea de sua posição, que foi corrigida por pesquisadores marxistas importantes, inclusive por Lukács  e Marcuse .

 

IHU On-Line - Qual é a importância do legado filosófico de Hegel no que diz respeito à filosofia da história?

Tom Rockmore - O legado de Hegel no tocante à filosofia da história consiste em oferecer uma forma de entender a história humana como algo que não está encerrado no duplo movimento de afastamento de Deus e retorno a ele, que é a concepção cristã padrão, ao mesmo tempo em que rejeita a concepção anticristã de que a história humana não é racional, e não é irracional, mas basicamente arracional, pois nada acontece. Como se sabe, Shakespeare  diz que a história humana está repleta de som e fúria que não significam nada. Hegel resiste apropriadamente a esta e a concepções semelhantes ao dizer, essencialmente, que algo de fato está acontecendo na história humana, ainda que, em sua maior parte, a história pareça estar além da compreensão dos seres humanos, que são os atores históricos da história humana. O que está acontecendo é a realização da liberdade humana, que é, ela própria, um produto da história humana. Esse resultado geral se manifesta num processo histórico em que os seres humanos muitas vezes não estão conscientes do que está ocorrendo, e em que o processo histórico parece tomar conta dos indivíduos — segundo Hegel, os grandes homens da história — que servem à finalidade desse processo durante certo tempo como um veículo através do qual a história progride e depois, como Napoleão  — e, em nossa própria época, talvez Gorbachev  —, são descartados à medida que a história vai além deles.

 

IHU On-Line - Como pode ser compreendida a epistemologia circular de Hegel?

Tom Rockmore - A epistemologia circular de Hegel é um aspecto central de sua teoria geral da cognição. Desde Aristóteles , ao longo dos séculos se acreditou que a circularidade fosse viciosa e, portanto, uma falha básica. Durante séculos, pensou-se que, apontando para a circularidade de uma teoria, poder-se-ia mostrar que ela era insustentável e precisava ser abandonada. Essa atitude para com a circularidade foi revertida por Fichte num estudo importante intitulado Sobre o conceito da ciência do conhecimento, que foi publicado em 1794, ao mesmo tempo em que ele estava elaborando sua primeira versão da Doutrina da ciência. Hegel, que chegou a Jena quando Fichte estava sendo forçado a ir embora por causa de seu suposto ateísmo, assume a concepção de circularidade, inicialmente em sua resposta a Reinhold  em seu primeiro texto filosófico, chamado Differenzschrift. Reinhold, que deu início à reação crítica à Crítica da razão pura de Kant, estava preocupado, sob a influência de Bardili , em fundamentar, na verdade reformular, a filosofia crítica como sistema fundamentado, de acordo com o modelo cartesiano. Hegel, que se opunha à leitura da filosofia crítica feita por Reinhold, que ele considerava estar baseada numa compreensão errônea e superficial de Kant, assumiu de Fichte a concepção de circularidade a fim de defender a pretensão de conhecer, na ausência de uma fundamentação, [o que era contrário ao] que Reinhold favorecia. De acordo com Hegel, as teorias surgem como uma matriz conceitual em resposta à experiência, que visam explicar. A cognição deveria ser entendida como um processo em que uma teoria é elaborada em resposta à experiência e depois testada mediante confronto com a experiência ulterior. Essa concepção de cognição é claramente experimental e circular, já que há um ajuste contínuo da teoria com base na experiência ulterior. De acordo com Hegel, uma teoria não é justificada no início, como sustenta o fundacionalismo, mas é justificada progressivamente à medida que a teoria é progressivamente ampliada. O interesse da abordagem circular de Hegel consiste em oferecer uma forma de justificar pretensões ao conhecimento como função do que elas explicam à medida que são desenvolvidas em grau crescente. Como corolário dessa abordagem, a justificação não está presente no início, mas é, antes, um produto histórico que toma forma progressivamente no processo cognitivo.

 

IHU On-Line - Em que consiste a teoria do conhecimento hegeliana? E em que aspectos a influência de Kant, Fichte e Schelling é importante para captar essa problemática?

Tom Rockmore - A abordagem hegeliana da cognição resulta de sua reflexão sobre as posições de Kant, Fichte e Schelling, sendo estes dois últimos, na opinião de Hegel, os únicos filósofos de sua época. Na interpretação hegeliana de Kant, este exige uma abordagem especulativa da filosofia, embora a própria filosofia crítica não seja, como pensa Kant, crítica, mas apenas outra forma de dogmatismo. Hegel pensa que Fichte é o primeiro filósofo crítico na medida em que é, seguindo Kant, o autor da primeira dedução das categorias. A partir da perspectiva de Hegel, a percepção central da filosofia crítica é a chamada revolução copernicana; este é um termo que Kant nunca usa para descrever sua posição, mas que foi usado durante a vida de Kant por contemporâneos como, por exemplo, Reinhold e Schelling. O ponto principal da revolução copernicana é negar que possamos intuir ou representar a realidade que seja independente da mente. Kant, que emprega a distinção platônica entre aparência e realidade, sugere que nós não podemos conhecer a realidade, já que o conhecimento se restringe apenas à aparência. Segundo Kant, que inverte o procedimento usual ao fazer o sujeito depender do objeto, precisamos adentrar num experimento segundo o qual o objeto depende do sujeito, em grande parte da mesma maneira como Copérnico  inverteu a abordagem geocêntrica da terra como centro do sistema solar, colocando o sol em seu lugar. A partir da perspectiva de Hegel, o problema central depois de Kant consiste em interpretar, criticar e reformular a filosofia crucial, que, se estiver centrada na revolução copernicana, exige um desenvolvimento e uma reformulação desse conceito. A revolução copernicana de Kant consiste na afirmação geral de que, como não podemos intuir ou representar a realidade que seja independente da mente, o conhecimento só é possível sob a hipótese de que, de algum modo, nós construímos o que sabemos. De formas diferentes, Fichte e Schelling retomam essa mesma tarefa depois de Kant. A abordagem hegeliana do conhecimento oferece ainda outra formulação do construtivismo cognitivo.

 

IHU On-Line - Em que medida pensadores do idealismo alemão, como Hegel, são importantes para a filosofia dos dias atuais?

Tom Rockmore - É causa de alguma preocupação o fato de que tanto o marxismo quanto a filosofia analítica anglo-americana refutem o idealismo sem dedicar mais do que uma atenção mínima a tentar entender o que pretendem superar. Isso tem consequências importantes para a compreensão do idealismo alemão, como podemos observar no tocante a Kant. As duas mais interessantes abordagens na interpretação de Kant em nossa época se devem a Heidegger e à filosofia analítica, cada um dos quais rejeita o idealismo. Heidegger afirma oficialmente, em Kant e o problema da metafísica, que sua ontologia fenomenológica é a única posição que retoma e amplia a filosofia crítica. Entretanto, Heidegger, que se posiciona como, na verdade, o único kantiano verdadeiro, é de fato antikantiano, pois sua posição se volta para o problema de conhecer o ser, isto é, conhecer o que é no mais profundo sentido — justamente aquilo que, para Kant, está para além da possibilidade do conhecimento. A filosofia analítica não aspira a ampliar o idealismo kantiano, mas rejeita o idealismo de qualquer espécie. Há uma linha direta que leva de Moore , que pensa que todas as formas de idealismo negam a existência de um mundo externo, até Strawson , que reinterpreta Kant como sendo, na verdade, um realista empírico e até como um pensador analítico dos primórdios, e de McDowell , que crê que Strawson está basicamente certo em relação a Kant, até Franks, que sustenta que Kant não é um idealista alemão, visto que ele não é idealista de modo algum, já que o idealismo só tem início mais tarde, em Reinhold, e assim por diante. Ao se afastar do idealismo, os pensadores analíticos se afastam da possibilidade de entender Kant e o idealismo alemão pós-kantiano, incluindo Hegel, que atualmente goza de grande popularidade em círculos analíticos.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição