Edição 201 | 23 Outubro 2006

Brasileiros vivenciaram processo destruidor

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IHU Online

“Vocês brasileiros vivenciaram a hiperinflação, em todo o caso a altíssima inflação até o Plano Real: processo destruidor para a coesão social, que esmaga os mais destituídos, que não podem proteger-se contra a perda vertiginosa do poder de compra de seus rendimentos, porque eles não têm acesso aos instrumentos indexados”. A desordem monetária exemplificada acima foi assunto da entrevista exclusiva concedida à IHU On-Line pelo professor Michel Aglietta.

Na entrevista feita por e-mail, Aglietta explicou suas idéias acerca da moeda e exemplificou seus estudos, usando a América Latina.
Aglietta foi estudado no ciclo Repensando os clássicos da Economia orientado pelo professor da Ufrgs Octavio Augusto Camargo Conceição que concedeu entrevista na edição 191 da IHU On-Line.
Michel Aglietta é o principal expoente da Escola Francesa da Regulação, professor de Ciências Econômicas na Universidade de Paris. Entre suas principais obras está La violence de la monnaie (A Violência da Moeda). Paris, PUF. Trad. bras. ed. Brasiliense: 1990

IHU On-Line - O livro A violência da moeda foi publicado em 1982. Como pensa que este livro poderia ser escrito hoje?

Michel Aglietta
- Evidentemente o livro foi reescrito. Antes do livro de 1982 deve-se consultar o livro La monnaie entre violence et confiance  (2002, Michel Aglietta e André Orléan, edição Odile Jacob). Este livro incorpora a interpretação da globalização financeira, da política Greenspan , das principais crises financeiras que se viveu até a crise Argentina de 2001-2002. Ele também trata da longa história da moeda. Na parte prospectiva, há um capitulo sobre o euro e um capítulo sobre a moeda eletrônica. Na parte teórica, as idéias são semelhantes às de 1982, ou seja, a ambivalência da moeda, ao mesmo tempo bem comum e fonte de apropriação privada da riqueza que acarreta a contradição de todo o sistema monetário que já era percebida por Aristóteles desde a Antigüidade. No entanto, ele apresenta as argumentações da maneira como as entendem os economistas.

IHU On-Line – O que é essa «violência» da moeda ?

Michel Aglietta
– Vocês brasileiros vivenciaram a hiperinflação, em todo o caso a altíssima inflação até o Plano Real: processo destruidor para a coesão social, que esmaga os mais destituídos, que não podem proteger-se contra a perda vertiginosa do poder de compra de seus rendimentos, porque eles não têm acesso aos instrumentos indexados. Vocês vivenciaram a desmoralização social, o enriquecimento dos aproveitadores. Vocês também puderam observar os efeitos da crise mais violenta de seus vizinhos argentinos. Os regimes ditatoriais andam junto com as desordens monetárias. E, ainda em 2002, na Argentina vocês viram as desordens sociais de um outro tipo de crise, a penúria de moeda, que felizmente encontrou sua solução na pesificação.

IHU On-Line – O que desencadeou tal crise monetária? Qual seria, hoje, o maior desafio para os governantes?

Michel Aglietta
– O endividamento em dólares, que coloca o problema da convertibilidade da moeda nacional e submete a política econômica a um dilema: ou o governo procura manter a taxa de câmbio, mas é preciso elevar as taxas de interesse a níveis que sufocam a economia. A carga da dívida pública torna-se cada vez maior, quando o crescimento diminui, o que gera a crise financeira do Estado ou o governo desvaloriza a moeda, na esperança de ganhar receitas de exportação. Entretanto, a crise é desencadeada pelos investidores estrangeiros que retiram seus capitais, o que desencadeia a espiral da inflação e da desvalorização.

IHU On-Line – O que é moeda?

Michel Aglietta –
Para levar a moeda a sério é preciso romper com o pressuposto naturalista da teoria economicista padrão A moeda faz sociedade em grupos humanos em que uma dimensão essencial de suas relações passa pela abstração do número. A moeda é o princípio do valor, supõe-se que o valor não é uma característica natural dos objetos, mas uma relação de pertencimento ao coletivo, de onde uma definição geral: A moeda é aquilo pelo qual a sociedade entrega a cada um de seus membros o que ela julga que ele lhe deu.

Dessa definição decorre que:

- A moeda não é uma coisa, mas uma instituição que nos é exterior e que nos dá o poder de ser membros de uma sociedade à altura dos montantes de moeda que podemos mobilizar.
- A sociedade é uma entidade distinta do conjunto de seus membros, por causa da finitude da vida humana. A sociedade é postulada como imortal/mortalidade dos indivíduos. Daí decorre que os membros da sociedade necessitam de um poder de proteção que está concentrado no Estado. Decorre daí uma dívida social: cada um tem obrigações fiscais diante do Estado em contrapartida às despesas de proteção que obrigam o Estado perante seus sujeitos.

A primeira forma de moeda, a unidade de conta, é a unidade de medida da dívida social. A segunda forma, o meio de pagamento, é o meio de satisfazer as obrigações fiscais. A moeda é, pois, primariamente política, tanto histórica como teoricamente. Ela existe em sociedades que não são mercadoras.

Moeda Privada

A moeda privada desenvolve-se na Europa a partir da Idade Média cristã. Ela está ligada ao crédito, ou seja, à confiança. A moeda privada é uma firma que circula entre terceiros, isto é, uma dívida que pode regular outras dívidas. Daí resulta uma hierarquia das moedas privadas, ou seja, do sistema financeiro, segundo o grau e a extensão da confiança que se tem para aceitá-la. A primeira forma de moeda foi a letra de câmbio. Depois veio a moeda bancária, mas toda moeda privada deve poder comprovar que ela é convertível em moeda oficial que é emitida pela instituição central (hoje em dia os bancos centrais). O processo de criação e de destruição das moedas privadas deve, pois, respeitar as regras definidas pela instituição central. O conjunto de todas as formas de moedas constitui, pois um sistema que é regrado pela política monetária.

Motor do capitalismo

O desenvolvimento da moeda privada, ou seja, do crédito é o motor do capitalismo. O problema da regulamentação monetária é de fazer de maneira que as dívidas privadas saídas do crédito sejam solváveis, para evitar uma perda de confiança que leva às crises financeiras. Diz-se que o sistema de crédito deve ser líquido. Deve aí haver bastante moeda pública, para que as moedas privadas criadas pelo crédito possam ser convertíveis em moeda central. Mas não deve haver liquidez em demasia, sob pena de perda de valor de toda a moeda, o que significa inflação. Esta política de colocar na economia nem moeda demais, nem de menos, é difícil porque ela está sujeita aos conflitos entre os grupos sociais para a repartição do valor.

Retornemos à definição inicial. Se certos grupos sociais não estão de acordo com o julgamento da sociedade a seu respeito, concedendo-lhes retornos que eles consideram injustos, vai haver conflitos e pressões sobre a instituição monetária. Após as grandes inflações do século XX, foi instituído o princípio da independência dos bancos centrais para restaurar a soberania da moeda. O crescimento supõe, pois, uma boa regulação monetária. 

 

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