Edição 428 | 30 Setembro 2013

Para exercitar a crítica sobre nós mesmos e sobre nosso tempo

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Luciano Gallas

Entrevista Na sociedade tecnológica, o caráter coercitivo do exercício do poder assume formas cada vez mais sutis. Isso faz com que os indivíduos assumam suas condutas como resultado de sua livre decisão, ignorando o alcance dos instrumentos de controle.

“Na sociedade tecnológica, a liberdade de mover-se é condição para o controle. Este aparente paradoxo acontece porque o regime de visibilidade utilizado pelo controle não privilegia a vigilância, ao contrário do poder disciplinar”, afirma a engenheira Karla Schuck Saraiva em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “O controle se vale dos rastros deixados pelos movimentos. Assim, os mecanismos de controle produzem liberdade, entendendo-se liberdade como a maximização dos movimentos. A liberdade torna-se assim a condição para o assujeitamento”, complementa a professora.

A docente parte do objetivo de que é preciso “exercitar a crítica sobre nós mesmos e sobre nosso tempo”, de modo a compreender a sociedade na qual estamos inseridos. Neste sentido, argumenta que “o exercício do poder assume formas cada vez mais sutis na sociedade tecnológica” atual e que “o poder torna-se tanto mais eficiente quanto menos visível” for. “Esse tipo de exercício de poder produz o interesse dos indivíduos, a noção daquilo que os beneficia, governando suas condutas por meio de verdades e de informações que apontariam o caminho para que tenham sucesso, saúde, beleza”, afirma ela. 

Karla Schuck Saraiva é graduada e mestre em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutora em Educação, também pela Ufrgs. Atualmente é professora da Universidade Luterana do Brasil – Ulbra, instituição na qual leciona em disciplinas de graduação dos cursos de tecnologia e no Programa de Pós-Graduação em Educação. Participa ainda do Grupo de Pesquisa Currículo e Pós-modernidade – GCPOS da mesma universidade, dedicando-se à articulação entre temas da educação e da sociedade contemporânea, principalmente aqueles relacionados às questões tecnológicas.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Os pensadores modernos consideravam que o sujeito buscava em si próprio a essência, enquanto os pensadores contemporâneos entendem que o sujeito é construído a partir do discurso. Isso implica em dizer que vivemos atualmente uma sociedade do vazio, em que o discurso construído não tem fidelidade com o sujeito que o formulou?

Karla Schuck Saraiva - Ao dizer que nos constituímos como sujeitos por meio de práticas discursivas e não discursivas, entendo que isso chama a atenção para o fato de que aquilo que somos depende dessas práticas. E que aquilo que somos é contingente. Assim, torna-se de fundamental importância discutir as práticas que hoje nos constituem e governam. Os discursos tornam-se campos de luta nesta perspectiva. Cada vez mais grupos com identidades em situação de desvantagem reivindicam o poder de narrar-se de outros modos. Penso que Marcha das Vadias  seja um bom exemplo. Algumas mulheres querem mudar as práticas discursivas que nos constituem e promover outros discursos sobre o feminino.

 

IHU On-Line - A sociedade contemporânea é marcada pela busca do indivíduo por novas experiências. O “show do eu" nas redes sociais, em referência ao grau de exposição e à experimentação pelo indivíduo de novas formas de constituir-se, corresponde ao mesmo fenômeno contemporâneo de oferta e consumo de novas experiências?

Karla Schuck Saraiva - Creio que o "show do eu" esteja efetivamente vinculado a questões relacionadas ao consumo. Porém, também penso que talvez este fenômeno possa ser problematizado de modo mais complexo. Ainda que a exibição de corpos esteja ligada a modelos normativos e marcados muitas vezes pelo signo do consumo, seria possível questionar se os processos de relação do ser consigo aí colocados em movimento são um bloco homogêneo, pautado sempre pelos mesmos valores. Ainda que eu não tenha realizado investigações mais aprofundadas, creio que um estudo mais detalhado poderia nos mostrar outras experiências de si nas redes sociais. Considero que analisar possíveis contracondutas e rupturas com os modelos privilegiados de subjetividade nessas exposições de si possa ser um interessante campo de pesquisa que se abre hoje.

 

IHU On-Line - Que modelos de subjetivação resultam do uso das redes sociais?

Karla Schuck Saraiva - Como apontei, este é um campo que ainda exige estudos mais consistentes. Claro que se pode dizer que na maioria das vezes as relações do ser-consigo que se desdobram nas redes sociais estariam marcadas pelo hedonismo, pelo individualismo e por uma certa superficialidade. Porém, é possível encontrar algumas pessoas, entre elas jovens, que usam as redes sociais também para debater opiniões acerca de temáticas relevantes, ou para promover o ativismo político. Creio que existam diferentes modos de tornar-se sujeito com a mediação das redes sociais e que essas experiências podem tanto potencializar a capacidade de criação de si, como também obliterar.

 

IHU On-Line - Do conceito foucaultiano de que a principal característica do poder é ser produtivo e não repressivo, podemos afirmar que a sociedade tecnológica atual é um espelho desse exercício do poder?

Karla Schuck Saraiva - O exercício do poder assume formas cada vez mais sutis na sociedade tecnológica. O caráter coercitivo do poder é cada vez menos visível, destacando-se seu caráter produtivo. O poder torna-se tanto mais eficiente, quanto menos visível. As estratégias de condução das condutas dos outros que hoje estão em movimento apelam principalmente para a produção do desejo, fazendo com que os indivíduos cada vez mais assumam que agem de determinadas formas por sua própria e livre decisão. Esse tipo de exercício de poder produz o interesse dos indivíduos, a noção daquilo que os beneficia, governando suas condutas por meio de verdades e de informações que apontariam o caminho para que tenham sucesso, saúde, beleza...

 

IHU On-Line - É deste raciocínio que se pode concluir que escapar da comunicação na sociedade tecnológica atual é escapar do poder?

Karla Schuck Saraiva - No início da década de 1990, Deleuze dizia que seria necessário criar vacúolos de não comunicação para escapar do controle. E me parece que ele esteja certo. O imperativo da comunicação, a necessidade de estar sempre online, sempre disponível e localizável, insere-nos em um campo de visibilidade infinito e permite que se criem informações sobre nós que nenhum dossiê das sociedades disciplinares poderia imaginar. Nesse sentido, romper a conexão é subtrair dos mecanismos de controle a possiblidade de recolher informação. É deixá-los sem alimento, fazendo-os minguar. Cabe saber se efetivamente desejamos nos afastar dos mecanismos de controle ou se vivemos uma condição de alegre sujeição da qual não desejamos escapar.

 

IHU On-Line - Neste sentido, como se dá na sociedade tecnológica atual a relação entre liberdade e formas de controle e vigilância?

Karla Schuck Saraiva - Na sociedade tecnológica, a liberdade de mover-se é condição para o controle. Este aparente paradoxo acontece porque o regime de visibilidade utilizado pelo controle não privilegia a vigilância, ao contrário do poder disciplinar. O poder disciplinar vigiava as multiplicidades, mas as arranjava de modo a poder localizar cada indivíduo. Para isso, restringia-se os movimentos para potencializar a vigilância. A vigilância visava garantir o assujeitamento dos indivíduos aos regulamentos prescritos. Já o controle não pretende vigiar cada um, mas recolher informações organizadas em gigantescos bancos de dados que permitem criar estratégias de condução de condutas individualizadas de acordo com o perfil do indivíduo. Ao controle não importa muito saber quem é esse indivíduo, mas sim saber como se constituem seus hábitos, seu comportamento e seus desejos. Portanto, o controle se vale dos rastros deixados pelos movimentos. Assim, os mecanismos de controle produzem liberdade, entendendo-se liberdade como a maximização dos movimentos. A liberdade torna-se assim a condição para o assujeitamento.

 

IHU On-Line - Gostaria de comentar algo que não foi citado nas questões anteriores?

Karla Schuck Saraiva - Gostaria, para finalizar, de destacar que aquilo que expus aqui não é uma condenação às tecnologias e ao seu uso, mas um alerta. Tudo isso é perigoso, mas não necessariamente ruim, como diria Foucault. A ideia é apresentar as questões acerca da sociedade tecnológica a partir de uma outra perspectiva, para fazer com que meus leitores questionem o que estão fazendo deles mesmos e dos outros que os cercam. Ou seja, a ideia é exercitar a crítica sobre nós mesmos e sobre nosso tempo.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição