Edição 428 | 30 Setembro 2013

A formulação do Brasil como Estado nacional

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Andriolli Costa e Ricardo Machado

Para o cientista político Simon Schwartzman, apesar do esforço para construir uma identidade nacional, nosso país nunca foi um Estado-nação

“O Brasil é o resultado de um processo colonial em que Portugal destruiu boa parte da população originária. Então o Brasil certamente é um Estado, no sentido de que consegue criar um sistema político de organização e controle do território, e um monopólio bastante completo da violência — que é outra definição do Estado, aquele que é detentor do monopólio da coerção física. Porém, do ponto de vista de nação, nós não temos essas características. Não temos uma unidade cultural, uma unidade linguística”, considera o professor e pesquisador Simon Schwartzman, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.

Ele lembra que nossa identidade nacional surgiu da invenção de mitos históricos e da construção de determinados “heróis”, que resultou em uma história que nunca existiu. “Há certa homogeneidade linguística no país, mas ao mesmo tempo ele continua muito diverso do ponto de vista social, com essa marca brasileira que é uma desigualdade muito profunda, quer dizer, uma sociedade muito estratificada do ponto de vista econômico e social”, explica. É dentro deste contexto que o entrevistado situa a racionalidade que marca nossa Constituição Federal, que, em alguma medida, buscou atenuar tais diferenças. “Ela (a Constituição) atende a todas as demandas da sociedade, mas também cria uma situação que, ao mesmo tempo, é complicada. Isso porque você não tem os recursos públicos necessários para colocar em prática tudo aquilo que foi escrito na Constituição como direito das pessoas”, argumenta. 

A ideia de patrimonialismo, conceito também discutido pelo professor na entrevista, revela-se, segundo ele, nas práticas políticas de nossa sociedade. “Penso que o conceito de patrimonialismo é importante também, porque está associado à ideia de que a política é basicamente uma maneira de apropriação de bens públicos por determinados públicos. Isso é diferente de uma noção de um estado democrático moderno, de base contratual, em que no setor público, os funcionários tem um mandato, tem uma obrigação definida por lei e devem cumprir aquilo que é interesse coletivo, e não simplesmente defender interesses individuais”, explica.

Simon Schwartzman é pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade no Rio de Janeiro. Foi, entre 1994 e 1998, Presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE e, entre 1999 e 2002, diretor para o Brasil do American Institutes for Research.  Estudou Sociologia, Ciência Política e Administração Pública na Universidade Federal de Minas Gerais, tem mestrado em Sociologia pela Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais — Flacso , Santiago do Chile, e doutorado em Ciência Política pela Universidade da Califórnia, Berkeley. Foi professor da Universidade Federal de Minas Gerais — UFMG, tendo sido afastado pelo golpe militar de 1964 e reintegrado em 2000, quando se aposentou. É autor, entre outros livros, de Brasil: A Nova Agenda Social (Rio de Janeiro: LTC, 2011) e Bases do Autoritarismo Brasileiro (Rio de Janeiro: Editora Campus, 1982).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Embora seja comum ouvir falar em Estado-nação e sociedade, como tais construtos surgiram? Que diferenças há entre Estado, nação e sociedade? Como se relacionam?

Simon Schwartzman - O conceito de Estado-nação, que data da Revolução Francesa , é uma ideia de que você teria uma unidade cultural, linguística, unificada por um regime político e ocupando certo território. É um Estado que, ao mesmo tempo, tem estrutura de Estado e o conteúdo cultural é o sistema de nação. Essa definição na verdade não se aplica a todos os Estados que vão se constituindo, pois existem muitos Estados com sistemas políticos e sociedades muito diversificadas. O caso da África talvez seja o mais extremo, em que os impérios coloniais foram divididos em pedaços. Cada pedaço virou um Estado sem nenhuma correspondência com nações, no sentido de que dentro desses estados se tem uma variedade de culturas, ou sociedades, colocadas em estados distintos. Essa correspondência não se mantém na maioria dos casos. O conceito de sociedade está mais associado à ideia de que as pessoas não formam necessariamente uma unidade cultural, linguística ou ética, mas que convivem segundo certas regras de convivência, dentro de um estado, se associando em função de seus interesses, com liberdade individual de pensamento, de mobilidade e de propriedade. Essa é uma ideia mais moderna nesse sentido. Eu diria que é a única compatível com os Estados modernos, no sentido de que você pode ter uma sociedade que funciona bem, instituições sociais que funcionam bem, e ela pode ter uma diversidade cultural linguística e étnica muito grande. 

 

IHU On-Line – Na nossa experiência brasileira, podemos pensar o Brasil como Estado-nação?

Simon Schwartzman - O Brasil é o resultado de um processo colonial em que Portugal destruiu boa parte da população originária. O que nós temos hoje são apenas resquícios, coisas muito pequenas. O Brasil foi o maior importador de escravos do século XIX, uma população gigantesca que também viveu essa situação de dominação e teve a sua cultura praticamente destruída por este processo. Então o Brasil certamente é um Estado, no sentido de que consegue criar um sistema político de organização e controle do território, e um monopólio bastante completo da violência — que é outra definição do Estado, aquele que é detentor do monopólio da coerção física. Mas do ponto de vista de nação, nós não temos essas características. Não temos uma unidade cultural, uma unidade linguística. O que o Brasil avançou foi no sentido de tentar constituir uma sociedade igualitária em que estes elementos, essas diferenças de origem passassem a contar menos do que os direitos de cidadania, os direitos individuais. Eu entendo o Brasil muito mais nesse sentido, e por isso nós não tivemos os conflitos nacionais, éticos e culturais que marcaram tanto no passado como hoje em dia a situação de muitos países. 

 

IHU On-Line – No contexto de globalização, como pensar os conceitos de Estado nacional e de sociedade? Que tensões se estabelecem na formação sociocultural? 

Simon Schwartzman - O que temos hoje é que o controle que os Estados têm sobre seu território não é absoluto, é cada dia mais limitado. Há uma série de coisas que escapam, desde fluxo de informações, de capitais, de comunicação. O que os estados conseguem controlar, até certo ponto, é a imigração, que é controlar as fronteiras, mas mesmo assim muitos países não conseguem controlar direito. Então você tem um fluxo de comunicação, de ideias, de informação, de dinheiro, de investimentos, que em boa parte escapam ao controle dos estados nacionais. Por outro lado, não há instâncias supranacionais suficientemente fortes para compensar isso. As instâncias supranacionais que nós temos — as Nações Unidas , o Mercado Comum  — são normalmente estruturas relativamente débeis, que conseguem funcionar no máximo quando há consenso. Isso cria uma situação de que os Estados, apesar de não terem o controle tão grande quanto no passado, ou quanto poderiam ter no passado, são a instância mais importante de desenvolvimento de políticas públicas, de garantia da segurança, das liberdades individuais e de uma série de valores das sociedades modernas que têm que ser exercidos pelos estados, porque você não tem outra instância para fazer isso. Isto cria para os estados uma dificuldade, pois eles têm que poder se integrar e de alguma forma participar deste mundo aberto, de comunicações e de fluxos, pessoas e dinheiro, e ao mesmo tempo trabalhar com uma população muito diferenciada e muito complexa também. Então digamos, a tarefa de um estado nacional é difícil, mas nós não temos um substituto para ela. Não se pode dizer “vamos acabar com o estado nacional”.

 

IHU On-Line – Como o Brasil se constituiu historicamente em Estado-nação no período pré-Constituição de 1988 e que marcas desta construção são perceptíveis na atual Carta Magna?

Simon Schwartzman - Houve uma tentativa, como aponta José Murilo de Carvalho  e alguns outros, de se tentar deliberadamente montar símbolos nacionais. Para construir uma identidade nacional foram inventados certos mitos históricos, certos heróis. Tudo muito fabricado para tentar inventar uma história que na verdade nunca existiu, pelo menos não desta forma. Mas isso foi só até certo ponto, quer dizer, você tem certa homogeneidade linguística no país, mas ao mesmo tempo ele continua muito diverso do ponto de vista social, e com essa marca brasileira que é uma desigualdade muito profunda, ou seja, uma sociedade muito estratificada do ponto de vista econômico e social. Uma das coisas fundamentais do estado moderno seria uma igualdade de oportunidades efetiva para a população, e nós não chegamos lá ainda.

 

IHU On-Line – Nem mesmo depois da nova Constituição?

Simon Schwartzman - A nova Constituição foi resultado de um momento em que o sistema de poder anterior seria desfeito e o poder civil ainda não estava muito bem estruturado. Era um período de descontrole financeiro, descontrole econômico, e foi uma ocasião em que todo mundo conseguia colocar na Constituição aquilo que queria. Como ninguém se opunha, e não havia restrição de dinheiro — porque naquele momento não estava envolvendo dinheiro diretamente —, a nova Constituição é muito generosa. Ela atende a todas as demandas da sociedade, mas também cria uma situação que, ao mesmo tempo, é complicada. Isso porque você não tem os recursos públicos necessários para colocar em prática tudo aquilo que foi escrito na Constituição como direito das pessoas. 

 

IHU On-Line - Em que medida os conceitos de patrimonialismo e homem cordial, de Sérgio Buarque de Holanda , continuam categorias importantes para compreendermos a política e a aplicação das leis em nosso país?

Simon Schwartzman - O que eu entendo é que o sentido que ele leva não é o que normalmente usamos para a cordialidade. É mais no sentido de evitar conflitos, de acomodar-se, de evitar ter clareza na definição das coisas. Este é um problema brasileiro. Vivemos frequentemente dilemas complicados, e a tendência o tanto quanto possível é evitar qualquer decisão que possa afetar interesses. Nós temos uma discussão nesse momento de redistribuição de recursos, reforma tributária, que não se faz. Porque você não consegue ter uma maioria capaz de dizer “o que o País precisa é isso, e vai ter gente que vai ganhar e vai ter gente que vai perder”. Então como você não consegue tomar essas decisões, ela acaba sendo postergada, e os custos, a distribuição de benefícios, quem sai ganhando e quem sai perdendo, ficam ocultos. É difícil identificar exatamente o que está acontecendo porque não há uma consciência da sociedade sobre quais são as opções, o que interessa, o que vai ser cortado, etc. Essas decisões no geral não vão ser tomadas porque não se criam situações de confrontação direta. 

Patrimonialismo

Penso que o conceito de patrimonialismo é importante também, porque está associado à ideia de que a política é basicamente uma maneira de apropriação de bens públicos por determinados públicos. O conceito de patrimonialismo burocrático é que o poder público é apropriado por determinados grupos e exerce o poder em benefício próprio. Isso é diferente de uma noção de um estado democrático moderno, de base contratual, em que no setor público, os funcionários, tem um mandato, tem uma obrigação definida por lei e tem que cumprir aquilo que é interesse coletivo, e não simplesmente defender interesses individuais. Creio que a política brasileira se faz em grande parte com a noção de que as pessoas estão ali para defender seus interesses privados, e isso cria uma situação de grande desmoralização e descrédito da política em relação à população como um todo. 

 

IHU On-Line – Como a ideia de “patrimonialismo”, um traço marcante da sociedade brasileira, constitui-se como uma espécie de ethos das relações entre Estado, sociedade e mercado no Brasil? Como o autoritarismo brasileiro se revela neste espaço?

Simon Schwartzman - Esse é o tema da minha tese de doutorado e do meu livro Bases do autoritarismo brasileiro (Rio de Janeiro: Editora Campus, 1982). Eu me apoiei muito em um trabalho pioneiro de Raymundo Faoro , que é um trabalho clássico sobre o patrimonialismo brasileiro. A diferença que eu vejo em relação ao que tentei fazer, é que Faoro dá essa tradição patrimonialista como uma coisa inevitável. Algo que está em tudo, que não tem jeito, que é uma coisa da cultura e não tem como mexer. Eu tentei mostrar que não é assim, e que à medida que uma sociedade vai se tornando mais complexa, vai se desenvolvendo, cria-se necessidade, demanda e pressão para outro tipo de organização social. Então eu pensei que isso poderia ser um contrabalanço a esta tendência, a esta carga histórica do patrimonialismo. Inclusive, mais recentemente, vários economistas têm trabalhado a diferença entre as origens da pobreza ou da riqueza, o que na verdade retoma uma discussão que para os economistas é novidade, mas para a área da ciência política não: a ideia de que a história e o passado, da forma como o sistema político foi organizado, explica muito do presente. No entanto, penso que não a ponto do extremo que chegou Faoro, que enxergava isso como uma espécie de defeito de nascimento que não tinha solução. 

 

IHU On-Line – O senhor considera que nossa sociedade tecnocientífica com suas dinâmicas de mercado põe em xeque conceitos básicos de Estado nacional? Por quê? O que isso significa em termos de soberania?

Simon Schwartzman - A soberania é um conceito limitado, quer dizer, o papel do governo é administrar a participação do país na comunidade internacional e no mercado internacional. Eu não vejo essa oposição entre Estado e nação. Penso que as tentativas de criar estados nacionais fechados para o mercado redundam em fracasso absoluto e em coisas piores. Creio que hoje em dia todos entendem que a economia do mundo funciona em mercados, mas que agora os mercados podem ser regulados. Os Estados têm recursos legais e recursos internos para poder regular o mau uso do mercado, e não são completamente desarmados em relação a isso. Agora, os estados que funcionam bem, os países que estão bem, são aqueles que conseguem se integrar bem aos mercados internacionais e criar um mercado interno que funcione segundo regras claras e manobras jurídicas adequadas, e isso não é uma coisa que eu vejo em contradição à soberania. Na verdade é um fator muito importante para as sociedades modernas. 

 

IHU On-Line – Qual a importância do Estado-nação no contexto contemporâneo e quais são os desafios postos?

Simon Schwartzman - Não vamos falar em Estado-nação, vamos falar em Estado nacional, que frequentemente tem dentro de si uma variedade às vezes cultural e ética muito diferente. Penso que ele tem que administrar um pacto social ali dentro, as pessoas precisam ter garantias fundamentais de liberdade individual, liberdade de expressão, liberdade de propriedade, liberdade de comércio. E também que tenham um controle sobre sua moeda. Nós conhecemos a experiência do Mercado Comum Europeu, que está com problemas muito sérios porque abriu mão do controle da moeda e não criou instituições suficientemente fortes em nível supranacional para controlar a parte financeira. Ou seja, os Estados têm que ter uma moeda, têm que ter um banco central. Eles têm políticas de investimento, coletam impostos e precisam usar bem os impostos. Há uma série de funções do Estado nacional que são fundamentais e não se pode abrir mão delas. 

Funções do Estado

O Estado tem uma responsabilidade muito grande por regular, por garantir direitos, e não mais para comandar a economia e tomar decisões, porque, na verdade, cada vez mais isso fica a cargo dos indivíduos em um mercado que é internacional e aberto. Uma função muito importante dos Estados nacionais é capacitar e educar as pessoas para você poder participar desse circuito mundial de formação, de conhecimento, e estar associado a um fluxo de bens e compras, de comércio internacional. Essa é a função dos sistemas educativos, onde parte é feita de maneira privada, como o mercado da educação, mas que também tem uma função muito importante do sistema público. Então a agenda do setor público é uma agenda importante e continua sendo. 

 

IHU On-Line – No que se refere à democracia, o senhor considera, levando em conta o período de redemocratização recente, que ultrapassamos a democracia formal para uma democracia mais profunda? 

Simon Schwartzman - Democracia profunda? Quando se fala em democracia, é formal. Democracia tem a ver com regras, com leis e com obediência às leis. Tem a ver com o sistema eleitoral. Então você pode discutir se o nosso sistema formal funciona bem enquanto sistema formal. A minha resposta é que não funciona muito bem, no sentido em que temos um Judiciário que é lento e moroso; um Parlamento que funciona de maneira precária, muito sujeito à corrupção; um Executivo que não consegue se organizar de maneira muito eficiente. Basicamente, temos uma legislação muito confusa, inclusive do ponto de vista de regulação do mercado. Nós temos muito que avançar na organização dos aspectos formais que são os que definem os direitos das pessoas, o espaço das pessoas, etc. Depois você tem outros aspectos das sociedades modernas que têm a ver com os direitos sociais, como o direito à educação, à saúde, a uma proteção da velhice. Em relação a isso avançamos alguma coisa, mas estamos longe do que gostaríamos. Às vezes as pessoas colocam isso em contraponto, uma ideia de que o que importa são os direitos sociais e não a organização política, e penso que isso é um equívoco grave. Claro que alguns países socialistas, como a antiga União Soviética e Cuba, que avançaram bastante na educação, mas esses países todos criaram sociedades autoritárias que finalmente se arruinaram, por que não conseguiram criar uma sociedade moderna, dinâmica e contemporânea. Nós não podemos olhar os aspectos sociais da democracia como contraponto aos aspectos formais. 

 

IHU On-Line – Os protestos ocorridos em junho deste ano revelaram certa crise de representação com os legislativos, em suas diferentes instâncias. Tais manifestações são sintomas de uma democracia mais participativa? O que elas significam?

Simon Schwartzman - Significam muita coisa, pois tinha muita gente com cabeças muito diferentes. Havia certamente, pelo menos em certos grupos, a ideia de que você deveria substituir o sistema de democracia representativa por um tipo de democracia direta. Que o povo nas ruas poderia substituir os sistemas institucionais de partidos, Câmara dos Deputados, etc. Eu penso que isso é um equívoco muito sério, pois, se levado ao extremo, isso cria uma situação de caos que pode ser aproveitada por alguns grupos oportunistas que acabam tomando o poder em benefício próprio. Esse é um aspecto muito negativo dessas manifestações. Outro aspecto é a ideia de que cabe ao governo atender a tudo o que as pessoas querem: transporte “zero”, meia entrada para todo mundo no cinema, tarifa “zero”, etc. Também é um tipo de demanda muito ingênuo porque não leva em consideração que as coisas têm custo. O que se gasta aqui, não se gasta lá. O governo pode segurar as tarifas e daqui a pouco vai estourar lá na frente em déficit, inflação, etc. É uma sensação muito imediata que as pessoas têm, que se traduz logo em um movimento, mas quando você pensa um pouco mais a longo prazo, você vai ter uma liderança que não reage só em função das emoções do momento. 

Lado positivo das manifestações

O lado positivo é que isso reflete o fato de que temos um sistema político representativo que funciona mal, no qual, se for perguntar para alguém em quem votou para deputado, ninguém lembra, e se perguntar o que o político está fazendo, ninguém tem a menor ideia. Então, digamos, o sistema representativo está muito corrompido por dentro e o sistema partidário é um sistema em que as pessoas também não se sentem muito identificadas. Creio que isso contribui para esta sensação generalizada de que o sistema político não deveria existir. O que eu acredito não é que ele deveria deixar de existir, mas deveria funcionar bem. Eu não acredito em democracia não representativa. Democracia direta talvez tenha existido em Atenas, se é que existiu. Mas isso, nas sociedades modernas, é impensável. Outra coisa que esses movimentos também refletem é uma situação que deriva da estagnação econômica. Ou seja, nós tivemos um período longo em que o governo usou suas energias para melhorar um pouco a situação de pobreza da população em situação mais extrema, como Bolsa Escola, Bolsa Família, muito voltados para a população rural, a região Nordeste, etc. Então a classe média urbana ficou meio achatada nesse processo. E, com os custos de serviço aumentando continuamente, as condições de vida nas cidades foram se deteriorando, o problema de violência que na verdade não se consegue controlar, o sistema de saúde pública precário, etc., creio que isso começa a afetar as pessoas e levam à situação de protestos. Se conseguirmos aproveitar, identificando essas insatisfações, e isso resultar em melhores serviços públicos, melhor transparência dos gastos públicos, um sistema político reorganizado para se tornar mais representativo e mais autêntico, eu penso que vai ter um ganho importante.

 

IHU On-Line – Em que medida o senhor considera necessária uma reforma política consistente em nosso país?

Simon Schwartzman - Eu creio que é necessária. Temos um debate sobre o voto distrital e eu participo daqueles que acreditam que seria um avanço para o nosso sistema de representação proporcional, que é pouco transparente. O atual sistema é uma concepção que ninguém entende direito, que dá margem para muita corrupção. Na verdade, ele tira o direito de representação das populações dos estados maiores. Você precisa de muito menos gente para eleger um deputado ou senador em um pequeno estado do que em São Paulo. É uma discriminação com os grandes centros urbanos do país. Então creio que isso deve ser alterado, e a ideia do voto distrital é uma parte importante em relação a isso. 

Proliferação dos partidos

Também creio que temos um problema em relação à proliferação de partidos, que eu considero nocivo. Muitos desses partidos não passam de legendas de aluguel. Muitas pessoas dizem que é preciso defender a liberdade de as pessoas se organizarem. Penso que ninguém nunca propôs impedir que as pessoas se organizassem, mas sim que, ao se constituir um partido, observar que existem critérios presentes na legislação e que devem ser cumpridos. Então nós precisamos de um sistema partidário mais simplificado, não permitindo esse tipo de partido de aluguel, no qual o eleitor possa ser mais claramente em quem está votando e o eleito tenha um público específico ao qual ele tenha que atender e dar satisfações. Tem uma questão complicada do financiamento de campanhas, e aí eu penso que é complicado porque você corre o risco de ter o governo financiando toda a campanha dos partidos majoritários, o que perpetua uma situação de monopólio desses partidos. Então penso que é importante não fechar desse jeito. Por outro lado não se pode deixar assim, em que o dinheiro de campanha na verdade são lobbys que financiam deputados para defender seus interesses. Então essa é uma questão difícil que precisa chegar a um meio termo.

 

IHU On-Line – Qual o papel da educação na construção/reconstrução da cidadania na sociedade brasileira? Que atenção deve ser dada aos diferentes níveis — básica, técnica e superior?

Simon Schwartzman - Essa é uma questão fundamental, porque o que caracteriza uma sociedade moderna é uma cidadania educada, que possa entender as questões da sociedade e que tenha competência inclusive profissional para gerar riqueza para si e para a sociedade. Então penso que a educação é fundamental. Nós temos no Brasil um sistema educacional público muito ruim, que não consegue andar para frente. Há varias razões para isso, nós sabemos. Em parte tem a ver com precariedade de recursos, mas não é só isso e nem é principalmente isso. Nós temos um problema sério de uma burocracia educacional onde as pessoas não estão ensinando o que elas deveriam. Temos um problema complicado aí. E o Brasil não desenvolveu o ensino técnico. Desenvolveu muito pouco e isso tem a ver com aquela famosa questão do homem cordial, talvez. Nos países que desenvolveram o ensino técnico, as pessoas quando chegam aos 15 anos de idade fazem opções; alguns vão mais para um curso acadêmico e outros vão para a formação profissional de capacitação para o mercado de trabalho. E isso, no Brasil, foi entendido principalmente por muitos influentes da área da educação como se você estivesse dividindo a sociedade, que você está dando educação de segunda classe, dando educação para o mercado de trabalho que é uma coisa muito ruim. Isso leva a situação que nós temos hoje, em que o governo federal lançou um programa de ensino técnico onde você precisa primeiro passar no ENEM  para depois poder, conforme a sua classificação, escolher se vai fazer um ensino técnico. Isso vira essa formação de cabeça para baixo. O Brasil é o único país do mundo que exige um currículo acadêmico completo, que o Enem representa, como condição para o ensino técnico. E as pessoas que conseguem passar no Enem não vão querer fazer o ensino técnico, vão querer fazer uma universidade. Vai ter muita gente que não consegue fazer o Enem e nem está interessada nesse currículo acadêmico que leva para o Enem. Nós acabamos não desenvolvendo este espaço de formação de nível médio um pouco por uma questão de preconceito, por não querer colocar claramente que algumas pessoas vão para um lado e outras vão para o outro.

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