Edição 427 | 16 Setembro 2013

Maquiavel e as instituições estáveis como objetivo da ação política

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Márcia Junges

Para Maquiavel, um bom príncipe é aquele que consegue estabelecer “um domínio capaz de sobreviver-lhe”, adverte Alessandro Pinzani. A preocupação do florentino era o vivere civile, ou seja, a existência política de uma comunidade, mesmo que fosse preciso o uso de meios tidos como imorais

“Foi um verdadeiro choque cultural, também pela linguagem crua e pela maneira direta na qual Maquiavel expressava seu pensamento. Até hoje certas passagens podem chocar o leitor contemporâneo, pouco acostumado ao estilo conciso e direto dos historiadores romanos que inspiraram o florentino. O uso de expressões típicas do italiano falado em Florença, que até hoje é bastante direto e cortante, contribui para dar a impressão de um realismo que beira o cinismo. Mas é uma falsa impressão: Maquiavel é sempre movido por um profundo senso da dimensão ética da política e por uma grande preocupação pelo vivere civile”. A ponderação é do filósofo Alessandro Pinzani na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Segundo ele, “o erro típico de certa interpretação do pensamento maquiaveliano é o de fazer dele um autor maquiavélico, interessado somente na conquista do poder sem nenhuma consideração de caráter ético ou moral, enquanto na realidade a ação do príncipe (do governante, em geral) deve orientar-se por esta preocupação para com a criação e manutenção de instituições políticas capazes de garantir uma vida livre e gloriosa à comunidade política regida por elas. Neste sentido, sua atualidade deveria consistir em indicar aos políticos a primazia da dimensão institucional sobre a do seu poder pessoal”.

Alessandro Pinzani nasceu em Florença (Itália). Doutorou-se em Filosofia na Universidade de Tübingen, na Alemanha. De 1997 até 2004, trabalhou como pesquisador e docente em Tübingen, onde, em 2004, obteve a habilitação e a livre-docência em Filosofia. Em 2001-2002, foi Visiting Scholar na Columbia University de Nova Iorque, Estados Unidos. Desde julho de 2004 é professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. É autor de Maquiavel e “O Príncipe” (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004), Diritto, politica e moralità in Kant (Milão: Bruno Mondadori, 2004), Ghirlande di fiori e catene di ferro. Istituzioni e virtù politiche in Machiavelli, Hobbes, Rousseau e Kant (Firenze: Le Lettere, 2006) e An den Wurzeln moderner Demokratie. Bürger und Staat in der Neuzeit (Berlim: Akademie Verlag, 2009), entre outros.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Em que aspectos O Príncipe continua atual 500 anos após seu lançamento? 

Alessandro Pinzani - O Príncipe representou um desafio à maneira de pensar a política e, sobretudo, a figura do governante já no século XVI, quando apareceu, primeiro em versão manuscrita, difundida quase clandestinamente nas cortes e nos palácios dos governos, e depois em versão impressa. Foi um verdadeiro choque cultural, também pela linguagem crua e pela maneira direta na qual Maquiavel expressava seu pensamento. Até hoje certas passagens podem chocar o leitor contemporâneo, pouco acostumado ao estilo conciso e direto dos historiadores romanos que inspiraram o florentino. O uso de expressões típicas do italiano falado em Florença, que até hoje é bastante direto e cortante, contribui para dar a impressão de um realismo que beira o cinismo. Mas é uma falsa impressão: Maquiavel é sempre movido por um profundo senso da dimensão ética da política e por uma grande preocupação pelo vivere civile. O erro típico de certa interpretação do pensamento maquiaveliano é o de fazer dele um autor maquiavélico, interessado somente na conquista do poder sem nenhuma consideração de caráter ético ou moral, enquanto na realidade a ação do príncipe (do governante, em geral) deve orientar-se por esta preocupação para com a criação e manutenção de instituições políticas capazes de garantir uma vida livre e gloriosa à comunidade política regida por elas. Neste sentido, sua atualidade deveria consistir em indicar aos políticos a primazia da dimensão institucional sobre a do seu poder pessoal. Infelizmente não é esta a lição que muitos tiram desta obra, como demonstram livros estúpidos com títulos como Maquiavel para executivos e que fazem dela um simples manual de estratégia para obter o poder através da astúcia ou da força. Nada mais longe da intenção originária de Maquiavel.

 

Contínua mudança

Outro aspecto negligenciado, mas que merece reflexão, é a ideia de que nada é eterno neste mundo. Seguindo os antigos, em particular Platão (que Maquiavel conhecia indiretamente), o florentino está convencido de que na esfera sublunar tudo está envolvido em um processo de contínua mudança e, portanto, está fadado a perecer: não somente os indivíduos, mas também os estados e os impérios. Por mais que Maquiavel se preocupe com a questão da estabilidade das instituições, ele sabe que nenhuma instituição durará eternamente. Pelo contrário, nós, modernos, pensamos que nossos Estados sejam imortais. Nunca pensamos que no futuro o Brasil possa deixar de existir, por exemplo, ou que a democracia, assim como a conhecemos, possa ser substituída por outras formas de governo. Tendemos a pensar que não haja alternativas ao presente.

 

IHU On-Line - Qual é a novidade dessa obra no que diz respeito ao tratamento que dispensou à ética e à política? Como o contexto político daquela época influenciou na redação de O Príncipe?

Alessandro Pinzani - A obra representa a primeira tentativa de pensar a relação entre ética e política de maneira diferente da tradição anterior.  Exteriormente se apresenta como um “espelho dos príncipes”, ou seja, como um dos tantos manuais para governantes que formam um gênero literário bastante comum na Idade Média e na Renascença; contudo, ele se distancia profundamente deles. Em vez de recomendar ao príncipe que siga os ditames da doutrina cristã para melhor exercer o poder que Deus lhe confiou para governar os súditos (como faziam os autores destes manuais, de Tomás de Aquino  a Patrizi  ou Pontani ), Maquiavel elabora sugestões que têm como finalidade a conquista e a manutenção do poder independentemente de qualquer consideração referente à doutrina cristã ou às virtudes que a tradição atribuía ao bom príncipe. Um bom príncipe é, para ele, aquele que sucede em sua obra de conquista e que consegue estabelecer um domínio capaz de sobreviver-lhe. Por isso, não é verdade que para Maquiavel o fim justifica os meios, como pensa certa interpretação vulgar. A ação do príncipe deve ser submetida ao fim superior da criação de uma entidade política capaz de durar no tempo, não ao fim meramente individual da conquista do poder pelo poder.

 

Interpretação errônea

Por esta razão, ao observar, no capítulo VIII de O Príncipe, que o cruelíssimo tirano Agátocles  era um homem dotado de virtù, isto é, do conjunto de qualidades necessárias a um governante bem-sucedido (audácia, prudência, dissimulação, capacidade de interpretar corretamente a situação histórica e de aproveitar a ocasião certa para agir, bem como capacidade de ser friamente cruel para eliminar seus inimigos), Maquiavel diz que não deveria ser tomado como exemplo, contrariamente a outros príncipes que também souberam usar da crueldade para alcançar o poder, como César Bórgia. 

Embora Maquiavel não o diga explicitamente, a diferença consiste no fato de que Agátocles quis o poder pelo poder, enquanto Bórgia tentou criar um principado novo que unificasse os vários estados italianos.  Justamente a referência a Bórgia mostra como Maquiavel escreveu com a intenção de oferecer indicações concretas para a ação daqueles homens políticos do seu tempo que tivessem a intenção de constituir um principado novo. Em particular, sua esperança era que alguém tentasse unificar a Itália, até então dividida em estados fracos em luta entre si e, portanto, à mercê das grandes potências estrangeiras: da França, da Espanha e do Império.

Perante esta situação, a preocupação de Maquiavel é de que a Itália acabe sendo terra de conquista e dominação para estes sujeitos políticos, cuja força principal consiste precisamente em ser o que a Itália não conseguiu ainda ser: um Estado territorialmente extenso, governado por instituições estáveis. Maquiavel percebe a importância da formação do Estado nacional moderno, mas não consegue identificar todos os fatores necessários para a sua formação: pensa que se trata somente de uma questão militar e política, como se a obra de reunificação nacional operada pelos reis da França ou da Espanha fosse reduzível unicamente à conquista de novos territórios ou à submissão de príncipes e repúblicas preexistentes. Faltam a Maquiavel as categorias intelectuais (históricas e sociológicas) para pensar o Estado moderno; por isso ele nunca usa o termo italiano stato para indicar o Estado, mas somente para indicar a situação de poder na qual se encontra um governante. Contudo, a maioria dos tradutores (para português ou para outros idiomas) traduz stato como Estado — o que não somente constitui um anacronismo, mas pode levar a interpretar erroneamente o pensamento de Maquiavel.

 

IHU On-Line - Em que sentido Maquiavel desvendou a lógica da ação política?

Alessandro Pinzani - Em primeiro lugar, Maquiavel pretende identificar algumas regularidades presentes na ação dos homens políticos da Antiguidade e de seus tempos.  Isso não significa que haja leis históricas imutáveis, embora haja em Maquiavel uma filosofia da história, a saber, a visão cíclica inspirada por Políbio  (que, por sua vez, seguia Platão). Porém é inegável que, para Maquiavel, nada de verdadeiramente novo acontece neste mundo: os homens permanecem os mesmos e, em geral, nada apreendem do passado. Somente alguns indivíduos podem servir-se do estudo da história antiga e recente para trazer lições relevantes para sua ação. É a eles que Maquiavel endereça seus escritos. Para agir de maneira efetiva no âmbito político é necessário conhecer a natureza humana (imutável) e os exemplos dos que tentaram realizar os mesmos fins que nos propomos. Por isso, é necessário saber como agiu Agátocles, apesar de ele ser um exemplo que não deveria ser seguido. 

Em segundo lugar, Maquiavel afirma a independência da política da moral tradicional, em particular da moral cristã. Isso não significa que a política é imoral ou que o homem político deve ser malvado. Como já disse, a ação política deve ter como fim a criação de instituições estáveis (na medida em que algo pode ser estável neste mundo) e isso pode levar os governantes (os criadores de novos estados ou os que tentam reformar estados existentes) a praticar ações que seriam inaceitáveis, se consideradas a partir de uma moral pessoal ou individualista. Um ato de crueldade é condenável, do ponto de vista desta moral, mas pode ser justificado, se serve ao fim superior da criação ou da salvaguarda de instituições políticas. Neste sentido, embora Maquiavel não pense minimamente no conceito de razão de Estado (que surgirá no fim do século XVI), podemos dizer que há no seu pensamento a possibilidade de desenvolver tal conceito. 

 

Chama forte e brilhante

Botero  ou Paruta  (os primeiros teóricos da razão de Estado) tiraram esta conclusão de sua leitura de Maquiavel, mas é provável que o florentino questionasse a ideia de que a estabilidade do Estado deve ser garantida a qualquer preço, inclusive sacrificando a liberdade dos cidadãos. Repito, a preocupação principal de Maquiavel não era com a estabilidade, mas com uma forma de vivere civile, de existência política de uma comunidade, que merecesse ser realizada inclusive com meios considerados imorais. Por isso, ele prefere o modelo de Roma àquele de Esparta ou Veneza. Estas duas repúblicas tiveram vida muito mais longa e pacífica do que aquela, mas o preço disso foi uma vida obscura, com instituições estáveis, mas que sufocavam a iniciativa dos indivíduos e, sobretudo, impediram que estas cidades alcançassem a glória de Roma. Aliás: quando tentaram dedicar-se à conquista de um império, perderam rapidamente sua liberdade (Esparta, conquistada por Tebas) ou fracassaram miseramente (Veneza, cuja derrota em Agnadello  é citada várias vezes nas obras de Maquiavel como exemplo negativo). Roma, pelo contrário, soube conquistar um império e a glória eterna. Além disso, embora sua vida como república tenha sido menor do que a de Esparta e Veneza, garantiu aos seus cidadãos uma maior liberdade, chamando-os a participar não somente de suas empreitadas militares, mas também do governo da cidade.  Poderíamos dizer que na opinião de Maquiavel é melhor para uma república ser uma chama forte e brilhante, embora de curta duração, do que uma vela fraca que se consome lentamente. 

Ora, é neste sentido que devemos entender a importância superior dos fins políticos sobre os fins morais. O poder pelo poder não constitui, aos olhos de Maquiavel, um fim político que merece ser alcançado a qualquer preço.

 

IHU On-Line - Qual é a compreensão desse pensador sobre as utopias políticas e em que medida essa ideia nos ajuda a compreender o atual rechaço à democracia representativa?

Alessandro Pinzani - Creio que respondi a esta questão anteriormente, quando mencionei a incapacidade atual de pensarmos em alternativas à situação existente. Por mais realista que Maquiavel possa ser, ele não acredita na imutabilidade e inevitabilidade de qualquer forma de governo ou de qualquer situação de poder. Além disso, para ele a única forma de vida política aceitável é a que garante a liberdade política dos cidadãos. Se a democracia representativa se revelar incapaz disso, deveríamos pensar em alternativas. Contudo, não tenho certeza de que ela tenha esgotado suas potencialidades. Parece-me, antes, que estamos perante uma crise de identificação dos cidadãos com as instituições políticas em geral, já que eles percebem que suas vidas são muito mais atingidas por mecanismos aparentemente subtraídos ao controle da política, como os da economia. Sem contar que a corrupção dos representantes é sempre expressão da corrupção dos representados que os elegem (particularmente no âmbito local, onde mecanismos como o voto de troca, o clientelismo e o nepotismo são mais frequentes). Contudo, duvido que Maquiavel possa ajudar-nos a entender os problemas do mundo contemporâneo: falta-lhe qualquer atenção para a dimensão econômica propriamente dita (ele vê na riqueza somente mais um instrumento de poder, sem perceber a existência de uma esfera econômica em si) e para a complexidade social (reduz as tensões sociais que caracterizavam a Florença do seu tempo à luta entre grandi e popolo, entre aristocratas ou ricos, por um lado, e povo simples, pelo outro).

 

IHU On-Line - O que o recurso ao raciocínio por dilemas expressa sobre o pensamento político maquiaveliano?

Alessandro Pinzani - Em suas argumentações Maquiavel segue os modos próprios da retórica clássica, que era uma das matérias principais na educação humanista do seu tempo. Contudo, Maquiavel está sempre consciente de que há na realidade humana e política restos não elimináveis de irracionalidade, que tornam impossível enfrentar questões políticas servindo-se unicamente da lógica (que para ele é a lógica clássica aristotélica) ou encontrar leis imutáveis que permitam prever sempre os resultados de nossas ações (Fortuna é o principal obstáculo, neste contexto). Poderíamos dizer que, para Maquiavel, a ideia de uma técnica do governo no sentido dos tecnocratas contemporâneos não faria sentido nenhum.

 

IHU On-Line - Que aproximações e distanciamentos são perceptíveis entre Maquiavel e Hobbes?

Alessandro Pinzani - Diversamente de Maquiavel, Hobbes vive em uma época na qual os estados nacionais são plenamente formados e organizados com base na ideia de que existe um soberano que concentra em si todos os poderes. A preocupação principal de Hobbes não é para com a existência de uma forma de governo que garante o máximo de liberdade aos cidadãos, mas para com a existência de uma forma de governo que garanta o máximo de paz, segurança e estabilidade. Os dois pensadores passaram por experiências muito diferentes: Maquiavel, pelas lutas internas das cidades-estados italianas e pelas invasões estrangeiras, Hobbes, pelas lutas religiosas na Europa e pela Guerra Civil inglesa. Os dois compartilham certo realismo, particularmente no que diz respeito às relações internacionais. O breve escrito de Maquiavel Parole da dirle sopra la provisione del danaio antecipa em tudo a visão que passará à história como visão hobbesiana: os estados são sujeitos egoístas que pensam somente em seus interesses e não se sentem plenamente vinculados pelos tratados, considerando-se justificados em quebrar sua palavra quando isto for do seu interesse. E os dois acreditam que a natureza humana é imutável. Contudo, Maquiavel baseia esta crença em sua filosofia cíclica da história, enquanto Hobbes a baseia em uma visão mecanicista do ser humano (se o homem é uma máquina suas peças não mudam no tempo). Contudo, considero problemático comparar dois pensadores tão distantes cultural e temporalmente (os 140 anos que passam entre a publicação de O Príncipe e a de Leviatã são marcados por mudanças cruciais para a história do Estado moderno e, portanto, para a filosofia política).

 

IHU On-Line - Maquiavel é um autor incompreendido ou mal interpretado?

Alessandro Pinzani - As duas coisas. Há toda uma literatura sobre as interpretações de Maquiavel, que às vezes são tão interessantes quanto a própria obra do florentino. Poderíamos dizer que cada época teve seu Maquiavel e que cada teoria política teve que tomar posição implícita ou explicitamente perante seu pensamento, mas muitas vezes as interpretações em questão se baseiam sobre mal-entendidos ou erros de leitura ou de tradução, como já mencionei. Até leitores que gostavam dele e tentavam resgatá-lo da imagem diabólica de certa tradição (o Old Nick dos ingleses) basearam frequentemente suas defesas em leituras extremamente questionáveis: pensem em Rousseau e sua afirmação de que o Príncipe seria uma obra irônica, que pretende denunciar a imoralidade dos soberanos absolutos fingindo recomendar ações absolutamente abomináveis (Rousseau era moralista demais para entender deveras Maquiavel). Poder-se-ia discutir por horas sobre as interpretações de Maquiavel e nunca chegaríamos a uma conclusão sobre qual delas seja a mais correta ou, pelo menos, a mais razoável. Isso também faz parte da grandeza e da fascinação deste pensador.

 

Leia mais...

Alessandro Pinzani já concedeu outra entrevista à IHU On-Line.

* Os rumos do republicanismo. Entrevista especial com Alessandro Pinzani. Notícias do Dia 05-12-2006.

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