Edição 427 | 16 Setembro 2013

A atualidade do republicanismo maquiaveliano

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Márcia Junges

Uma das novidades dos escritos de Maquiavel foi a reflexão sobre a política e o Estado enquanto este ainda estava em formação, observa José Luiz Ames. Tais obras podem nos ajudar a entender as manifestações de desagravo que expressam “a vitalidade política de um Estado”

“Enquanto o lugar comum da interpretação de O Príncipe era o de uma obra destinada a orientar os tiranos no poder, Rousseau insiste em que a sua finalidade é de acautelar o povo contra o que os tiranos podem fazer, a fim de ajudá-lo a resistir a eles. Com esta interpretação, Rousseau ajudou a recuperar o republicanismo maquiaveliano, concepção da mais plena atualidade nos debates políticos contemporâneos, e a desfazer a imagem de maquiavélico, isto é, da justificação dos meios pelo fim”. A ponderação é do filósofo José Luiz Ames, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. E acrescenta: “estar ‘condenado’ a viver em sociedade não é uma questão que preocupe o florentino. Interessa-lhe, isto sim, examinar as condições sob as quais a vida em sociedade pode converter-se em um vivere libero, isto é, em uma forma de existência política na qual os homens são regidos por leis autoimpostas e na qual os cargos públicos estão abertos de forma igual a todos”. As obras do florentino auxiliam no entendimento das manifestações de rua, que demonstram “a vitalidade política de um Estado. Cabe à potestas fazer a adequada decifração desta grita e promover as transformações institucionais nela contida”. Segundo Ames, é fundamental analisar a vida política e seu desenvolvimento na esfera da aparência: “a verdade da política é possível de ser captada tão somente pelos efeitos (resultados ou consequências) das ações. E nisto consiste a conhecida ruptura maquiaveliana com a moral e a instituição da política como um domínio autônomo, algo pensado a partir dela mesma”.

Graduado em Filosofia pelo Instituto Educacional Dom Bosco, José Luiz Ames é mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul — PUCRS e doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas — Unicamp com a tese Maquiavel: a lógica da ação política (Cascavel: Edunioeste, 2002). Leciona na Universidade Estadual do Oeste do Paraná — Unioeste e é autor de, entre outros, Liberdade e libertação na ética de Dussel (Campo Grande: CEFIL, 1992) e Filosofia Política: Reflexões (Curitiba: Protexto, 2012). É o criador da página Portal da filosofia, http://portaldafilosofia.blogspot.com.br/, site no qual publica vários artigos sobre filosofia política.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Como podemos compreender o contexto filosófico e político do surgimento das ideias de Maquiavel?

José Luiz Ames - Nicolau Maquiavel nasceu em Florença, Itália, em 3 de maio de 1469 e morreu em 21 de junho de 1527. Pouco sabemos de sua vida antes de 1498, ano em que foi eleito para exercer um importante cargo na república de Florença. Destacaria três aspectos importantes para a compreensão do contexto filosófico e político que influenciaram no desenvolvimento de suas ideias.

Um primeiro é o de que a Itália, neste período, era um mosaico de cerca de 20 Estados de dimensões territoriais e regimes políticos muito variáveis. A Itália como Estado, tal como a conhecemos hoje, não existia ainda. O “Estado” que Maquiavel serviu como Segundo Chanceler por quase 15 anos foi a república de Florença.

Um segundo aspecto é o de que os Estados Nacionais tais como os conhecemos hoje estavam ainda em formação. O conceito propriamente dito de “Estado” como entidade abstrata e soberana ainda não existia. Será apenas bem mais tarde, com Jean Bodin  e Thomas Hobbes, que ele virá à luz. Maquiavel, porém, com suas ideias, contribuirá decisivamente na sua formulação, particularmente com sua defesa enfática da necessidade de uma autoridade suprema como condição de conservação da unidade de um povo sob um território.

 

Reflexão filosófica sobre o poder

Um terceiro aspecto a considerar é a influência exercida sobre o pensamento de Maquiavel pela função pública por ele desempenhada. Maquiavel foi eleito, em 19 de junho de 1498, ao cargo de chefe da Segunda Chancelaria da república de Florença, que tratava dos negócios internos e extraordinários, entre os quais os problemas da guerra. Foi à frente desse cargo, que exerceu até 7 de novembro de 1512, que ele teve a oportunidade de conhecer profundamente os principais Estados europeus graças às mais de 20 missões diplomáticas em que representou sua pátria.

Maquiavel foi, portanto, o pensador que refletiu sobre a política e o Estado num período em que este estava ainda em formação e o fez a partir de um conhecimento adquirido direta e pessoalmente dos acontecimentos de seu tempo. Ele eleva esta experiência ao nível abstrato da reflexão filosófica sobre o poder. Maquiavel pensa filosoficamente sobre a política na perspectiva de oferecer um entendimento do quadro contemporâneo, por um lado, mas também de proporcionar uma compreensão do político como dimensão inerradicável do ser humano.

 

IHU On-Line - Em que medida a necessidade e o desejo estão no cerne da instauração política para Maquiavel?

José Luiz Ames - Maquiavel explica, em O Príncipe (capítulo XV), que todas as formas de vida política nascem do modo como é resolvida a oposição dos desejos (outras vezes ele também se refere a eles como humores) fundamentais de “grandes” e “povo”. Para Maquiavel, esta cisão é constitutiva de todas as sociedades e é de tal grandeza que é impossível encontrar unidade entre ela. Importante destacar de imediato que grandes e povo não são, em Maquiavel, categorias socioeconômicas, e sim ontológicas. No entanto, ainda que o movimento natural do desejo de grandes e povo seja o de aniquilar cada qual ao outro, é contido em seu curso, porque cada parte é limitada pela outra: o desejo de comandar dos grandes encontra, no desejo de liberdade do povo, seu limite e vice-versa. Isso obriga as duas partes ao acordo: nascem dali leis e instituições capazes de dar vazão aos desejos dissimétricos de grandes e povo. 

É preciso ter presente ainda que esse acordo não põe fim ao conflito, não é capaz de neutralizá-lo, mas apenas normalizá-lo em formas sempre precárias e provisórias. O confronto de grandes e povo em uma arena política, isto é, pelas vias institucionais e legais, tem como resultado uma certa ordem político-institucional que é mais favorável ora a uma ora a outra das partes em confronto na totalidade social. O equilíbrio alcançado num momento jamais é tal que não possa ser revertido em uma situação posterior. A impossibilidade de uma parte impor-se plenamente sobre a outra assegura, por um lado, que as leis tenham em vista o bem comum e não o da parte vencedora e, de outro, deixa sempre em aberto a possibilidade de reversão. 

 

Desejo e necessidade

Estas considerações evidenciam, pois, que o desejo, naturalmente desmesurado, de grandes e povo é contido pela necessidade. A necessità é, assim, a coação imposta pelas condições reais nas quais a ação política se desenrola ao forçar os homens a agir em uma determinada direção, ou então de limitar a desmesura de seus desejos. Dessa maneira, ao constranger os homens a seguir a única alternativa viável concretamente nas circunstâncias dadas, a necessidade evita a dispersão a que a ação estaria sujeita se resultasse da livre escolha; por outro lado, a necessidade força a limitação recíproca dos desejos naturalmente inconciliáveis de grandes e povo, fazendo surgir a vida política.

 

IHU On-Line - Como Maquiavel concilia a liberdade do sujeito e a regulação dos desejos do povo via política?

José Luiz Ames - Faz-se presente no pensamento maquiaveliano uma ideia geral de liberdade concebida como atributo do homem, liberdade entendida como algo inerente à condição humana. Contudo, tanto liberdade quanto livre arbítrio, como qualidades do homem (a noção de sujeito é estranha ao contexto maquiaveliano, sendo anacrônico seu uso para explicar sua obra, pois surgirá apenas bem mais tarde, com Descartes  e Hobbes, por exemplo), são sempre compreendidas em um contexto sócio-histórico bem determinado, e não em uma perspectiva individual e subjetiva. É este sentido político de liberdade, liberdade compreendida como uma experiência que se dá em um contexto associativo, que prevalece na obra de Maquiavel.

O homem é livre (ou é capaz de livre arbítrio), para Maquiavel, sempre no quadro de uma vida associada, de uma coletividade humana determinada. Libertà e libero arbitrio não são experiências humanas que podem ser ditas de um singular na interioridade de seu espírito (de um sujeito), mas da relação deste homem com os demais dentro de uma coletividade política. Maquiavel jamais se ocupa dessas expressões como se fossem essências abstratas ou metafísicas. Assim, libertà é algo que se diz, fundamentalmente, de uma cidade: “livre” é uma cidade, e ainda que libertà possa ser uma experiência “do homem”, pressupõe uma comunidade política concreta na qual esta possibilidade se realiza. “Cidade livre”, uma vez que é disso que se trata fundamentalmente, é aquela que vive sob suas próprias leis, e não sob o domínio estrangeiro. O contrário de cidade livre é servitù, termo que Maquiavel utiliza para caracterizar a cidade governada por estrangeiros, independentemente de sob quais instituições governem, ou se agem com clemência ou com crueldade.

A salvaguarda da liberdade está, pois, em evitar cair, internamente, na servidão de uma tirania e, externamente, sob a dominação de outra potência. Consequentemente, a liberdade pode existir em dois planos distintos: a liberdade dos cidadãos sob uma república e a liberdade da república enquanto forma de organização política diante das demais potências. Podemos chamar a primeira de liberdade no Estado, e a segunda, liberdade do Estado. Uma e outra devem ser entendidas, sobretudo, não como liberdade individual, mas como liberdade do corpo político no seu conjunto.

 

IHU On-Line - Até que ponto Maquiavel se aproxima de Rousseau ao perceber que estamos “condenados” a viver em sociedade?

José Luiz Ames - Maquiavel se mostra indiferente em relação à existência “natural” do homem; isto é, de uma existência que os contratualistas, entre os quais Rousseau, denominam “estado de natureza”. Maquiavel parte simplesmente do fato da vida humana sob o Estado; sequer se ocupa em problematizar a necessidade ou não da existência coletiva. Assim, estar “condenado” a viver em sociedade não é uma questão que preocupe o florentino. Interessa-lhe, isto sim, examinar as condições sob as quais a vida em sociedade pode converter-se em um vivere libero; isto é, em uma forma de existência política na qual os homens são regidos por leis autoimpostas e na qual os cargos públicos estão abertos de forma igual a todos.

Rousseau, como sabemos, foi um leitor que tinha a obra de Maquiavel em alta consideração. Reconhecia no florentino um patriota e defensor da liberdade dos povos: enquanto o lugar comum da interpretação de O Príncipe era o de uma obra destinada a orientar os tiranos no poder, Rousseau insiste em que a sua finalidade é de acautelar o povo contra o que os tiranos podem fazer, a fim de ajudá-lo a resistir a eles. Com esta interpretação, Rousseau ajudou a recuperar o republicanismo maquiaveliano, concepção da mais plena atualidade nos debates políticos contemporâneos, e a desfazer a imagem de maquiavélico, isto é, da justificação dos meios pelo fim.

IHU On-Line - Qual é a atualidade da compreensão da violência política dissimulada e da violência originária, constatadas por Maquiavel?

José Luiz Ames - Maquiavel propõe-se a pensar a política desde a ação, ideia que é expressa por ele na famosa proposição de que pretende seguir a verdade efetiva da coisa (O Príncipe, capítulo XV). Em que consiste esta verdade? Para Maquiavel, a verdade política da ação pode ser captada unicamente por meio de seus efeitos, e não pelas motivações; quer dizer, ela se situa nas consequências, nas repercussões — sejam elas afortunadas ou infelizes — sobre o sistema complexo das condições a partir das quais a ação se desenrola. Dessa maneira, não basta colecionar fatos para encontrar a verdade: uma sucessão de acontecimentos apenas significa algo se alguém (um príncipe ou um colegiado de cidadãos sob uma república) lhe revelar o sentido.

Uma vez que a ação política está submetida à lógica da necessidade, o ator político vê-se obrigado a avaliar vícios e virtudes unicamente em relação aos seus efeitos, ou seja, em função de suas possibilidades de conquista e conservação do poder. Assim, por ser a necessidade, e não uma norma do bem, que determina a ação política, a exigência de conservar o poder pode obrigar o ator político a “entrar no mal”.

 

Esfera da aparência

Os capítulos XVI a XIX de O Príncipe completam esta concepção: Maquiavel desenvolve ali a ideia de que o príncipe precisa assumir determinadas qualidades estimadas pelos súditos, quer as possua ou não. Trata-se de desempenhar um papel, como num teatro, parecendo e não sendo de um modo ou de outro. Por que, poderíamos perguntar, o ator político precisa levar a efeito ações que dissimulem aos governados seu verdadeiro objetivo?

A exigência de parecer se impõe como uma necessidade política de construção da imagem. Não pode ser interpretada como pura encenação, ou como desejo puro e simples de ludíbrio. Muito antes, é uma atitude deliberada de evidenciar o caráter virtuoso de que estão revestidas as ações que pratica (ou seja, de que estão a serviço do bem público), sendo irrelevante saber se elas são ou não virtuosas “em si”; isto é, se a intenção com a qual são praticadas está em conformidade com a virtude ou não. Em outras palavras, que a intenção é julgada por seus efeitos e que a ação encontra seu sentido unicamente ao longo do tempo, o que significa dizer que está submetida ao juízo da história.

A concepção de verità effettuale proposta por Maquiavel permite pensar que a realidade se esgota completamente na aparência não porque somente trapaceando o ator político seria capaz de satisfazer suas ambições, e sim porque é o único modo de aceder ao vivere politico. Em outras palavras, a vida política se desenvolve na esfera da aparência: a verdade da política é possível de ser captada tão somente pelos efeitos (resultados ou consequências) das ações. E nisto consiste a conhecida ruptura maquiaveliana com a moral e a instituição da política como um domínio autônomo, algo pensado a partir dela mesma.

 

IHU On-Line - Qual é a origem da compreensão maquiaveliana de que a política é um jogo?

José Luiz Ames - Ernst Cassirer é, talvez, o mais conhecido dos defensores da tese de que Maquiavel é um técnico frio, sem compromissos éticos ou políticos, um analista político objetivo, um cientista moralmente neutro e desinteressado quanto ao uso de suas descobertas “técnicas”, que podem servir tanto a libertadores quanto a déspotas. Para Cassirer, a atividade política se ajustaria tanto ao Estado legal quanto ao ilegal, não sendo imoral nem moral, mas sim amoral. Ele simplesmente ofereceria a todos os soberanos, reais ou virtuais, legítimos ou ilegítimos, conselhos eficazes para estabelecer e manter o seu poder, para evitar as discórdias internas, para prevenir ou para triunfar sobre as conspirações. Maquiavel é apresentado como o profeta da técnica em política, o mestre do realismo amoral. O campo de preocupação de Maquiavel não seria a política em sentido normativo, e sim desta atividade humana no sentido puramente descritivo, abordando-a de modo semelhante a um cientista social que descreve como funcionam de fato as realidades políticas. Indignar-se diante dos meios indicados para a fundação e conservação de Estados enunciados por Maquiavel seria algo tão fora de lugar quanto repreender um físico que enuncia o valor de uma constante.

Esta compreensão maquiaveliana da política como um jogo implica a redução da ação política em uma pura técnica possível de ser aprendida, ensinada e elaborada teoricamente. O objeto dessa técnica é o estudo das regras que conduzem ao êxito sem considerações sobre o sentido e o valor, nem dos meios utilizados, nem da meta visada. A política como técnica é axiologicamente neutra. Os meios utilizados visam apenas preservar a “saúde” do Estado. Assim como o médico que amputa a perna do paciente não pode ser condenado por mutilar um corpo, mas, ao contrário, deve ser louvado por devolver-lhe a saúde, o político que utiliza meios cruéis para o bem do Estado protege a “saúde” da coletividade e merece o louvor quando alcança êxito.

 

Estratagemas e fascinação pelo jogo político

A interpretação da política como um jogo faz de Maquiavel um pensador que considera a ação política como amoral. Com efeito, tal como em um jogo, importa conhecer detalhadamente as regras e aplicá-las com perfeição. Maquiavel teria sido aquele pensador que descobriu estas regras, mas não teria manifestado a menor disposição de mudá-las, considerando-as tão próprias ao jogo político como as leis da ciência em relação aos corpos físicos. Sua experiência teria lhe ensinado que o jogo político sempre foi jogado com fraude, engano, traição e crime. Ele não censuraria, mas também não recomendaria estas coisas. Sua única preocupação seria a de encontrar a melhor jogada — a que ganha a partida. Assim, do mesmo modo que nos encanta a habilidade do jogador que engana seu adversário com toda sorte de ardis e estratagemas, Maquiavel também teria se fascinado com o jogo político no qual os atores se utilizariam de estratagemas para vencer. O criticável na ação dos atores políticos, nesta perspectiva, não seriam seus crimes e sim seus erros, precisamente quando estes os fazem perder o jogo!

É inegável que o componente empírico, próprio da análise do poder, desempenha um papel importante na obra de Maquiavel, mas seu objetivo ultrapassa largamente a mera descrição minuciosa da vida política. Maquiavel percebe o poder em sua inserção ineludível naquilo que considera a atividade mais sublime e enobrecedora dos seres humanos: a política. No entanto, suas afirmativas não são empíricas ou puramente descritivas: não só nos diz que na política o mal está sempre presente, que ele é utilizado normal e impunemente nela, mas sustenta que, em determinadas situações, o mal deve ser feito no âmbito da política. Esta não é uma afirmação de alguém que aspira à imparcialidade científica. É um juízo normativo que é preciso ser interpretado como uma recomendação ética para aquele que age no campo da política. Revela que Maquiavel está longe de mostrar-se indiferente em relação ao fim visado pelas ações humanas. Sua linguagem deixa claro que a política não se mede unicamente pelo êxito, não é um simples cálculo estratégico, mas revela que há um valor a ser realizado através da política.

 

IHU On-Line - Em que consiste a concepção maquiaveliana de “inimigo político”? Há algo de sua influência no pensamento de Carl Schmitt ?

José Luiz Ames - A percepção da dimensão de “o político” leva a admitir que as questões políticas sempre implicam decisões que requerem uma opção entre alternativas antagônicas. Nesse ponto, pode-se reconhecer a contribuição de Carl Schmitt. Uma das ideias centrais de Schmitt é sua tese segundo a qual as identidades políticas consistem em certo tipo de relação nós/eles, a relação amigo/inimigo. No campo das identidades coletivas, trata-se sempre da criação de um “nós” que somente existe em oposição a um “eles”. Ainda que nem toda relação nós/eles se converta numa relação amigo/inimigo (ou seja, numa relação “política”), se torna tal quando o “eles” é percebido como negando a identidade do “nós”. Consequentemente, o que Schmitt nos revela é que “o político” não está limitado a certo tipo de instituição ou concebido como constituindo uma esfera ou nível específico de sociedade. Tem de ser concebido como uma dimensão inerente a todas as sociedades humanas e que determina a nossa própria condição ontológica. 

Muito embora os termos amigo/inimigo sejam novos, o significado é perfeitamente perceptível já na obra de Maquiavel. Com efeito, para o florentino a oposição entre grandes e povo é, a princípio, da ordem da relação entre inimigos; quer dizer, situa-se no plano ontológico e não no plano sócio-histórico. A paixão que move grandes e povo é no sentido de suprimir a força contrária. Este movimento não se conclui unicamente porque (e também na medida em que) cada parte é contida pela outra no seu desejo desmesurado. Deste conflito essencial emerge uma relação política na medida em que as leggi et ordini que resultam do confronto possibilitam um ordenamento político favorável a todos. A criação das leis e instituições não elimina o antagonismo; apenas o “domestica”.

Somente a partir do momento em que reconhecemos esta dimensão de “o político” (ou seja, a relação ontológica de amigo/inimigo) e compreendemos que “a política” (ou seja, a relação histórica entre as forças sociais que institui práticas políticas) consiste em dominar a hostilidade e domesticar o antagonismo potencial que existe nas relações humanas, poderemos colocar-nos a questão fundamental da constituição de um vivere libero, como diz Maquiavel. Não se trata de determinar como chegar a um consenso racional sem exclusões; ou, em outras palavras, como estabelecer um “nós” sem que exista um “eles”. Isto é impossível, porque não pode existir um “nós” sem um “eles”. Em outras palavras, a relação ontológica amigo/inimigo é ineliminável. Trata-se, pelo contrário, de saber como estabelecer esta distinção “nós/eles” de modo a ser compatível com o vivere libero.

 

IHU On-Line - Como a categoria da memória é examinada pelo pensador florentino? Como essa concepção repercute na política de nossos dias?

José Luiz Ames - A principal referência das reflexões de Maquiavel é a história. A vida histórica aparece a ele marcada por um conjunto de nuanças dentre as quais a mais relevante é a convicção de sua radical imanência em oposição à transcendência medieval. O movimento histórico adquire sentido nele mesmo, e não pela realização de desígnios extraterrenos. O estudo da história, para Maquiavel, está voltado para um objetivo prático: estabelecer regras gerais da ação política. Assim, a formação do dirigente político deve seguir um programa de capacitação por meio do conhecimento histórico. Isto significa que Maquiavel desenvolve uma “praxeologia” capaz de explicitar os fatores fundamentais que determinam o campo político. Somente dessa maneira é possível obter uma descrição do âmbito a partir do qual o agente político pode alcançar êxito. Esta preparação supõe uma rede conceitual por intermédio da qual Maquiavel procura captar o material da experiência histórica antiga e moderna segundo o critério de sua utilidade prática.

Para Maquiavel, não interessa o conhecimento histórico como um saber desinteressado dos fatos. Ele se ocupa da história para decifrar, nos acontecimentos passados, meios de ação eficazes para a condução do Estado em seu tempo presente. Desse modo, pode-se dizer que o conhecimento histórico é concebido como mediador de uma estratégia de êxito político: os fatos são selecionados em vista da preocupação de apontar no presente a estratégia de ação mais apropriada para gerar efeitos positivos no futuro.

 

IHU On-Line - Pensando nos 39 ministérios brasileiros da atual gestão presidencial, em que aspectos a ideia de Maquiavel sobre a política de interesses e coalizões se faz notar?

José Luiz Ames - A concepção republicana de Maquiavel faz com que se entenda o exercício do poder político como uma atividade que tem em vista o bem geral. Os interesses divergentes presentes no todo social se fazem presentes no enfrentamento, no embate público. Nada menos republicano do que compor um governo cedendo ao jogo de interesses de partidos como é o caso brasileiro. A existência de 39 ministérios é expressão acabada de um modelo corporativista não republicano de governo. Ali não prevalece o bem geral, e sim os interesses localizados de indivíduos e partidos. O público submergiu e cedeu lugar ao privado: o poder é compartilhado em base à satisfação dos interesses particulares de grupos, e não dos grandes objetivos públicos da nação.

 

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

José Luiz Ames - O evento mais recente da vida democrática brasileira é o das manifestações populares que tomaram conta das ruas. Maquiavel, nos Discorsi (I,4-5), acentua enfaticamente que o tumulto, a grita popular, é o que produz um vivere libero. A manifestação popular é, por definição, desordenada. Sua vitalidade está em ser a expressão mais autêntica do espírito democrático. Para Maquiavel, ela tem sua legitimidade assentada no fato de ser a potentia, isto é, a fonte de todo poder. Quem precisa buscar legitimidade é a potestas, isto é, o poder delegado exercido pelo executivo e o legislativo, e não a potentia, isto é, o povo. A obra de Maquiavel nos ajuda a compreender que a existência de manifestações de rua expressa a vitalidade política de um Estado. Cabe à potestas fazer a adequada decifração desta grita e promover as transformações institucionais nela contida.

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