Edição 427 | 16 Setembro 2013

A corrupção política e a falta de virtù

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Márcia Junges

Como uma doença, a corrupção inicia em certa parte do corpo político e, se não for combatida, continua a se alastrar, adverte José Antonio Martins. Entretanto, Maquiavel nunca vinculou esse processo a “desvios morais de um indivíduo ou falta de virtude de um grupo”

“São as possibilidades de retardamento ou postergação do processo da corrupção, por meio da ação política dos homens, que refletem a novidade do pensamento político maquiaveliano. Consequência direta desse argumento é que a corrupção não se coloca na esfera moral ou individual, ou seja, as causas da corrupção não estão em indivíduos isolados, mas se inserem dentro de uma lógica de ação corrupta incorporada pelos diversos atores políticos, um modo de agir corrupto que está disseminado pelos diversos órgãos ou instituições políticas da cidade”. A afirmação é do filósofo José Antonio Martins, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Surgida primeiramente entre o povo, a corrupção passa para as instituições “quando estas não visam mais o interesse público, mas os desejos privados”. Vale ressaltar que, em todos os estágios de corrupção na esfera política, “Maquiavel nunca responsabiliza ou vincula esse processo a desvios morais de um indivíduo ou falta de virtude de um grupo. O que ele indica em várias obras é que isso tudo nasce da falta ou de pouca virtù, conceito este vinculado totalmente ao campo das ações políticas. Assim, ao contrário do que muitos defendem em nossos dias, de que a corrupção decorre de indivíduos corruptos — donde o combate à corrupção concentrar-se na caça ao corrupto —, para Maquiavel a corrupção deve ser percebida na medida em que ela se insere como prática no corpo político, prática caracterizada pela pouca participação nos negócios públicos fundamentalmente”.

Martins analisa, também, o sucesso da obra de Maquiavel logo após seu lançamento, cinco anos depois da morte do autor, sendo até hoje uma das obras mais lidas e comentadas sobre a questão política. Outro tema da entrevista é a incompreensão de O Príncipe, tido como um libelo à monarquia. O fato é que “depois de O Príncipe, inaugura-se um novo modo de pensar o campo do político”. E acrescenta: “o pensamento político maquiaveliano nos revela algo presente ainda no nosso modo de fazer política. Nessa sua capacidade de desvelar a lógica de ação política, Maquiavel consegue retratar e explicar algo que ainda perdura, gostemos ou não, no palco das ações políticas”.

José Antonio Martins é graduado, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo — USP com a tese Os fundamentos da República e sua corrupção nos Discursos de Maquiavel. Docente na Universidade Estadual de Maringá — UEM, é autor de Corrupção (São Paulo: Globo, 2008 e organizador da edição bilíngue de O Príncipe (2ª ed. São Paulo: Hedra, 2009).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Como se apresentam os fundamentos da República e sua corrupção nos Discursos de Maquiavel?

José Antonio Martins - Essa pergunta me leva a recuperar o tema da minha pesquisa de doutorado. Num primeiro momento eu pensava em entender como Maquiavel concebia a corrupção política. Inicialmente eu me baseava em uma informação incompleta, originada da leitura também superficial do The Machiavellian Moment , de John Pocock , que destacava no pensamento maquiaveliano a recuperação de uma noção política clássica, de corte polibiano (do historiador grego Políbio  de Megalópolis), no qual todos os corpos políticos nascem, crescem e, necessariamente, se corrompem e desaparecem ao final deste ciclo. Tinha como hipótese que, segundo Maquiavel, a corrupção atingiria toda e qualquer forma política. O que a pesquisa mostrou é que a corrupção é um fenômeno que atinge, sim, toda e qualquer forma de organização política. Todavia, tendo em vista a ênfase republicana do pensamento político maquiaveliano, é no interior desta reflexão republicana de Maquiavel que a noção de corrupção política encontra sua melhor exposição. De modo sintético, a corrupção decorre primeiramente no povo, na medida em que este deixa de atuar com contundência na esfera pública e passa, num segundo momento, para as instituições, quando estas não visam mais ao interesse público, mas aos desejos privados. Assemelhada a uma doença, a corrupção começa em uma parte do corpo político e, se não for detida, alastra-se por todo ele, levando-o a morte, que no caso, seria a perda da liberdade política na cidade.

 

IHU On-Line - Qual é a peculiaridade da noção de corrupção política nos escritos maquiavelianos?

José Antonio Martins - A noção de corrupção de Maquiavel é herdeira, em grande medida, das concepções políticas clássicas (aristotélica, polibiana e ciceroniana), visto que ele entende esse fenômeno como algo inerente aos corpos políticos. No limite, a corrupção política é um dado natural, ocorrerá necessariamente em qualquer cidade, assim como a doença e a morte ocorrerá em qualquer ser vivo. Para Maquiavel a corrupção política não possui esse caráter determinista tão acentuado como para os gregos. A corrupção no pensamento político maquiaveliano não é uma determinação inexorável da natureza, mas se apresenta em um campo de possibilidades: pode ocorrer como pode ser retardada. São as possibilidades de retardamento ou postergação do processo, por meio da ação política dos homens, que refletem a novidade do pensamento político maquiaveliano. Consequência direta desse argumento é que a corrupção não se coloca na esfera moral ou individual, ou seja, as causas da corrupção não estão em indivíduos isolados, mas se inserem dentro de uma lógica de ação corrupta incorporada pelos diversos atores políticos, um modo de agir corrupto que está disseminado pelos diversos órgãos ou instituições políticas da cidade. 

IHU On-Line - Em que aspectos a cisão entre moral e política formulada por Maquiavel oferece uma chave de compreensão sobre a corrupção política?

José Antonio Martins - O tema da corrupção política é certamente um local privilegiado para perceber essa separação entre as esferas moral e política. Assim como o virtuosismo de um ator político não extingue da cidade a corrupção, do mesmo modo, a tentativa de corrupção de um singular, por si só, não engendra numa corrupção do corpo político. Para Maquiavel, se a corrupção atinge parte do povo, mas não as instituições — que têm por finalidade fazer cumprir as leis e as decisões do corpo político —, essas instituições garantirão a sanidade do corpo, pois a corrupção é principalmente uma doença. Contudo, se a corrupção atingir além do povo as instituições, então teremos um caso de corrupção política endêmica, aquilo que ele nomeia como a “cidade corrompidíssima”. Em todos estes estágios de corrupção na esfera política, Maquiavel nunca responsabiliza ou vincula esse processo aos desvios morais de um indivíduo ou falta de virtude de um grupo. O que ele indica em várias obras é que isso tudo nasce da falta ou de pouca virtù, conceito esse vinculado totalmente ao campo das ações políticas. Assim, ao contrário do que muitos defendem em nossos dias, de que a corrupção decorre de indivíduos corruptos — donde o combate à corrupção concentrar-se na caça ao corrupto —, para Maquiavel a corrupção deve ser percebida na medida em que ela se insere como prática no corpo político, prática caracterizada pela pouca participação nos negócios públicos fundamentalmente.

 

IHU On-Line - Como podemos compreender que uma obra escrita há cinco séculos continue tão atual? Quais são os principais pontos em tal escrito que seguem importantes para a política?

José Antonio Martins - O Príncipe é certamente uma das obras com uma história muito intrigante e curiosa. Maquiavel não viu o seu texto publicado, pois ele somente passa a ser impresso cinco anos após a sua morte, e se torna, já de início, um sucesso estrondoso, primeiramente na península itálica, e depois por quase toda a Europa. Mas, mesmo após sua censura pelo Index da Igreja Católica e da sua proibição por vários governos ao longo desses 500 anos, ele foi um dos textos mais lidos e comentados entre as obras políticas. Podemos elencar algumas razões para esse fenômeno: o tamanho do texto, visto que se trata de um opúsculo com 26 capítulos, o que permite uma leitura rápida; a língua, pois não foi escrito em latim, mas num dialeto italiano (o toscano) de mais fácil leitura, com um estilo de redação elegante, envolvente, com exemplos e metáforas que facilitam a sua compreensão; e, a meu ver, o elemento mais significativo, Maquiavel revela os mecanismos, as lógicas das ações políticas. Essa exposição de como de fato funciona o mundo político, nas suas genuínas razões, sem rodeios ou disfarces, os motivos que levam os atores políticos a decidirem, todos esses aspectos despertam a curiosidade daqueles que querem desvendar esse universo político. Ao explicitar esse mistério (que a tradição interpretativa também nomeia como os Arcana Imperii), Maquiavel faz um texto atualizado, pois a lógica de funcionamento do mundo político pouco alterou nesse tempo. 

 

IHU On-Line - Qual é o contexto da escrita de O Príncipe e o que essa obra reflete da vivência política do próprio Maquiavel e dos homens de seu tempo?

José Antonio Martins - Essa é uma boa questão até para entender o modo como os pensadores elaboram seus textos. A Florença de Maquiavel, do final do século XV e das primeiras décadas do século XVI, foi um palco de lutas políticas intensas, com mudanças de governos, sempre atribuladas. Juntamente com esses fatos históricos, a cidade também se tornou um centro de reflexão e debate sobre o melhor modo de ordenar politicamente a cidade, quais instituições criar ou extinguir, como os grupos políticos poderiam ou não ter acesso às decisões, enfim, um verdadeiro centro de reflexão política. Isolar a produção intelectual de Maquiavel desse contexto é um grave equívoco, pois foi no interior das lutas políticas — nas quais ele tomou parte como membro ativo de um grupo político que governou a cidade, entre 1498 e 1512, sob o comando de Pier Soderini  — e dos debates públicos que se travaram, que a reflexão política maquiaveliana ganha seus contornos definitivos. 

 

Atemporalidade

Com efeito, ao olharmos a sequência de elaboração dos textos, iniciando com os primeiros opúsculos da época em que ele trabalhava na Chancelaria de Florença, passando posteriormente por O Príncipe, os Discursos, os demais textos políticos menores e culminando na História de Florença, encontramos nessas obras as respostas para as demandas teóricas que o seu tempo formulou e que ele, na condição de pensador político, tentou encetar suas respostas. Mais ainda, encontramos nos escritos políticos maquiavelianos o esforço para dar conta de problemas e dificuldades que perpassavam o pensamento político há séculos, como é o caso da questão dos ciclos políticos e da corrupção dos governos, por exemplo. É particularmente por esse aspecto, por tentar dar conta de grandes dificuldades teóricas do pensamento político ocidental, que as obras maquiavelianas não ficam restritas ao seu tempo e às suas circunstâncias, tornando-se de fato universais no tempo e no espaço. O modo como o pensamento político maquiaveliano se estrutura é educativo para nós, visto que nos textos estão evidentes os dramas de seu momento histórico. Contudo, o pensador não se fixa somente nessas dificuldades, mas extrapola a sua reflexão e a insere no quadro dos problemas do pensamento político. Isso é um exemplo de como se comportam os grandes pensadores políticos, pois eles partem de seu mundo, dos seus contextos e, sem negá-los ou ignorá-los, inserem essas dificuldades na história do pensamento político.

 

500 anos

A efeméride dos 500 anos de O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, decorre de uma carta de 19 de dezembro de 1513, endereçada ao seu amigo e funcionário da Santa Sé, Francisco Vettori , na qual ele relata que estava concluindo um livro intitulado De principatibus (cuja tradução correta deveria ser Dos principados ou Sobre os principados). É essa informação sobre o manuscrito, e não a data da primeira publicação (que ocorre somente em 1532), que marca simbolicamente o nascimento da obra. Contudo, mais do que recordar o momento em que ela foi escrita, entendo que devamos considerar, antes de qualquer coisa, como uma obra, um livro se mantém durante longo tempo com tanta força e vitalidade, seja no tempo, seja no espaço. Na verdade, são 500 anos de um texto que foi muito lido e comentado, não somente nos territórios italianos, ao qual faz referência de modo direto, mas em todo o planeta. Este feito, para uma obra não literária e não religiosa, é certamente o fenômeno mais significativo sobre o qual devamos refletir.

 

IHU On-Line - Qual é a importância de se ler O Príncipe tendo em vista, igualmente, os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio?

José Antonio Martins - O Príncipe é, equivocadamente, definido como um livro em defesa da monarquia, enquanto os Discursos são, corretamente, caracterizados como a obra republicana de Maquiavel. O problema é que o principado, tema da primeira parte de O Príncipe e critério para análise da figura desse príncipe, não é necessariamente um regime monárquico. Uma leitura atenta do texto revela que o principado é um regime no qual aquele que lidera a cidade deve estar o tempo todo atento aos movimentos dos diversos atores políticos e trabalhar para conservar a sua legitimidade na disputa política. Nesse sentido, esse comandante político não se assemelha ao monarca clássico, muito menos ao monarca absolutista do século XVI, como alguns tendem a retratá-lo. Compartilho da hipótese defendida por alguns comentadores de que o principado pode ser o regime no qual se transforma a república corrompida, conservando, quanto se trata de um principado civil, várias características da dinâmica política republicana. Donde poderíamos pensar que uma leitura dos Discursos estaria como pressuposto para O Príncipe. Nesse sentido, a república corrompida é o pressuposto do principado civil, modelo de principado do livro, instaurando assim a vinculação e passagem dos Discursos para O Príncipe. 

 

IHU On-Line - Quais são as principais mudanças de perspectiva apontadas em O Príncipe em termos da política?

José Antonio Martins - A primeira e certamente a mais importante é que O Príncipe expõe um mundo desconhecido pelos homens, principalmente se levarmos em conta a tradição anterior a Maquiavel dos manuais “espelhos de príncipe”. Em sua exposição, o Florentino rompe com essa tradição de textos endereçados aos governantes que procuravam orientar a conduta, com destaque para o cultivo das virtudes cristãs. Ao manter aparentemente esse formato, a obra maquiaveliana desconcerta o seu leitor, pois é sim um manual para governantes também, porém não orienta o príncipe neste sentido, mas alerta para práticas e critérios muito próprios do campo político, muitos dos quais contrários ao ideário das virtudes cristãs. Consequência direta desse modo de apresentar o texto é a revelação dos mecanismos de funcionamento do universo político em seus termos verdadeiros, sem floreios. Esse realismo, como muitos gostam de qualificar o texto de Maquiavel, inaugura um novo capítulo, seja na reflexão política, seja no modo como se avalia o mundo político. Depois de O Príncipe, as interpretações e os comentários sobre o modo como os atores políticos tomam suas decisões, suas razões, suas finalidades, seus interesses não evidentes, nunca mais foram os mesmos, pois as boas intenções, o bem comum presente nos discursos do governante que zela pelo seu povo, estarão sempre em dúvida. Enfim, e esse dado é consenso entre os historiadores do pensamento político, depois de O Príncipe, inaugura-se um novo modo de pensar o campo político.

 

IHU On-Line - Quais foram os principais mal-entendidos aos quais o pensamento de Maquiavel foi submetido ao longo dos séculos?

José Antonio Martins - O primeiro mal-entendido, talvez o mais grave, é de que ele foi um defensor de um modelo de governante monárquico inescrupuloso e que a política é um campo de ação sem virtudes ou qualidades, consagrado naquilo que ficou conhecido como o maquiavelismo. Na verdade, essa interpretação surgiu entre seus adversários, que o acusavam de ser um pensador amoral. Essa corrente interpretativa, que se inicia com os católicos do século XVI e perpassa os séculos, perde força quando, no século XIX, os estudos da obra maquiaveliana são retomados com força no contexto da unificação da Itália, e, com maior vigor, no século XX, quando temos de fato o início de estudos e pesquisas acadêmicas. É consenso geral hoje que os adversários intelectuais de Maquiavel não perceberam a força e a profundidade da noção de virtù, fundamento do agir político. Longe de ser amoral, o pensamento político maquiaveliano, ao defender a necessidade da virtù política, essa que exige engajamento e participação ativa na vida da cidade, entre outras qualidades, torna o ator político, cidadão ou governante, uma figura que deve ter qualidades políticas.

 

IHU On-Line - Quais foram os autores fundamentais que influenciaram Maquiavel? 

José Antonio Martins - Maquiavel faz referência direta a alguns escritores romanos, como Tito Lívio, Lucrécio , Salústio , Cícero , Vergézio , bem como aos gregos Políbio, Platão  e, certamente, Aristóteles . Todavia, apesar de ele não nomear vários autores, podemos perceber que vários outros autores romanos e pensadores medievais foram lidos e se tornaram ou fonte para seus argumentos, ou adversários a serem rebatidos, e neste caso claramente podemos identificar os escritos políticos de Agostinho de Hipona . Conforme esclarece Eugenio Garin , é na cultura do Renascimento italiano que está a verdadeira fonte de Maquiavel.

 

IHU On-Line - Em que medida os conceitos de virtù e fortuna são tributários a Tito Lívio e reinterpretados pelo pensador florentino?

José Antonio Martins - Esses conceitos não nascem diretamente de Tito Lívio, mas de outras fontes. Aqui cabe um esclarecimento necessário. Maquiavel comenta apenas os dez primeiros livros da História de Roma de Tito Lívio, que era composta por 142 livros, donde o correto seria nomear Discurso sobre a primeira dezena, e não década, como se adotou nas edições brasileiras. Ele escolhe apenas esses livros para comentar por dois motivos: primeiro, por ser nessa parte da obra que o historiador romano narra o surgimento de Roma e sua transição do período monárquico para o republicano. Tendo em vista que Maquiavel desejava fazer uma exposição sobre a república, essa primeira parte do livro auxiliaria em sua tarefa. O segundo motivo para a escolha do texto liviano foi porque um de seus adversários intelectuais, Bernardo Rucellai , aristocrata e cunhado de Lorenzo de Médici , havia feito também uma exposição sobre esse trecho da obra de Tito Lívio, anos antes, defendendo um modelo republicano cujo centro decisório estivesse na mão da aristocracia. Ora, Maquiavel escolhe o mesmo trecho para comentar a fim de mostrar outra tese, a de que a república romana encontrou sua glória porque foi, ao longo dos anos, dando maior espaço ao povo nas decisões políticas. 

 

Cosmologia do Renascimento

Os motivos pela escolha do texto de Tito Lívio não se calcam na recuperação da noção de virtù e fortuna. Sobre a primeira, como já dissemos, sua elaboração decorre da constatação de que os atos políticos possuem uma lógica de ação própria, com regras e finalidade muito precisas. Razão pela qual tem se tornado praxe não traduzir o termo italiano virtù por virtude, visto que esta muitas vezes se põe como o antônimo da virtù. Todavia, por maior que seja a virtù de um indivíduo ou de uma cidade, ela não é o bastante para conter as forças da natureza que atuam sobre os destinos dos homens, donde sempre ser necessário considerar a fortuna. A noção de fortuna deve ser pensada no interior da cultura do Renascimento, nesse desejo dos homens do período em afirmar suas capacidades ou potencialidades e poderem, assim, controlar a natureza. Apesar dessa crença nas capacidades humanas, vários pensadores do Renascimento, como Maquiavel, reconheciam que a força humana não podia tudo, que a natureza exercia seu poder sobre os destinos humanos. Donde ser necessário ao homem de virtù saber reconhecer e tentar controlar os ímpetos da natureza, a fortuna, que sempre acaba interferindo no destino dos homens. Enfim, os fundamentos da noção de fortuna devem ser buscados na cosmologia do Renascimento, nesta certeza de que a natureza interfere no destino dos homens.

 

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

José Antonio Martins - Apenas insistir que, a despeito do intervalo de tempo que nos separa do momento de confecção de O Príncipe, e não somente dessa obra, mas o corpus político maquiaveliano, a sua reflexão repercute com força em nossos dias, não porque temos semelhanças culturais, sociais, mentais com o “momento maquiaveliano” (para usar uma boa expressão de John Pocock), mas porque o pensamento político maquiaveliano nos revela algo presente ainda no nosso modo de fazer política. Nessa sua capacidade de desvelar a lógica de ação política, Maquiavel consegue retratar e explicar algo que ainda perdura, gostemos ou não, no palco das ações políticas. Mais do que tentar estabelecer vínculos e pontes anacrônicas entre o nosso contexto e o do cinquecento florentino de Maquiavel, cumpre-nos extrair de seus textos essa explicação de como funciona uma parte importante de nossas vidas e utilizar esse conhecimento para criticar e estabelecer modos de conduta política.

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