Edição 426 | 02 Setembro 2013

Peculiaridades de uma secularização ‘à la brésilienne’

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Márcia Junges

A etapa atual do processo de secularização teve início na Europa, sendo impulsionada pela urbanização, a ascensão da burguesia, a revolução comercial e a ocupação das “terras de além mar”. No Brasil, o fenômeno adquire contornos que expressam o tipo de sociedade paradoxal em que vivemos, observa.

Um diálogo entre elementos arcaicos e pós-modernos caracteriza aquilo que Jorge Claudio Ribeiro denomina “secularização à la brésilienne”. Em seu ponto de vista, “esse tipo de secularização apresenta, entre outras, posições firmes quanto à necessidade do uso de métodos contraceptivos e direitos reprodutivos e também uma visão compreensiva acerca das mulheres frente a situações que possam resultar em aborto”. Ele faz inúmeras ressalvas à mistura que se observa no Brasil entre religião e política, no momento em que a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados tem como presidente Marco Feliciano, pastor evangélico que age de acordo com o grupo que representa. O professor sustenta que “as religiões devem ser estimuladas a contribuírem para a sociedade, e não para elas mesmas”. E destaca: “São as pessoas que devem ser servidas pela religião, e não o contrário. As pessoas não estão a serviço das religiões. A religião é mediadora entre uma crença superior e as necessidades cotidianas da humanidade. Isso precisa ser manifestado de modo mais incisivo”. A entrevista foi concedida por Jorge Claudio à IHU On-Line por telefone, de Nova York.

Jorge Claudio Ribeiro é graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, em Jornalismo pela Universidade de São Paulo – USP e em Teologia pelo Instituto Teológico de São Paulo; é mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP e em Teologia da Missão pelo Instituto Teológico de São Paulo. É doutor em Ciências Sociais pela PUCSP. Desenvolveu quatro pós-doutorados, sendo titular e livre docente pela PUCSP, onde leciona no Departamento de Ciências da Religião. De sua produção bibliográfica destacamos A festa do povo: pedagogia de resistência (Petrópolis: Vozes, 1982 – seu mestrado), Sempre alerta: condições e contradições do trabalho jornalístico (São Paulo: Brasiliense/Olho d’Água, 1994 – seu doutorado) e Religiosidade Jovem - pesquisa entre universitários (São Paulo: Loyola e Olho d’Água, 2009).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Em que contexto a secularização surgiu e se aprofundou?

Jorge Claudio Ribeiro - A secularização de que estamos falando surgiu no âmbito a história das sociedades europeias para entender o fenômeno. Não se trata de algo metafísico, mas muito concreto, nascido de processos sociais que se acumularam. A ideia de agir racionalmente ou também de apelar para a própria subjetividade já apresentava importantes indícios na Grécia Clássica, mais tarde em Santo Agostinho e, já na Idade Moderna, nos movimentos pietistas, espanhóis, alemães e, a partir destes, na América britânica. O processo da secularização se apoiou na crescente urbanização, na ascensão da burguesia europeia, na revolução comercial e na invasão de novos continentes. Aos poucos, a vida na Idade Média rural tornou-se mais complexa. A partir do século XVI, a ciência aperfeiçoou seus métodos, primeiro na observação sistemática dos astros e na linguagem matemática; aos poucos, os resultados surigam na física e, paralelamente, nas ciências humanas, como a filosofia, política e economia. A partir da segunda metade do século XIX, a ciência debruçou-se sobre o ser humano, destacando-se os estudos, em áreas diferentes, de Marx, Darwin e Freud. 

Um dado importante nessa equação foi o enorme poder econômico e político da igreja católica, acumulado durante séculos graças à soma da influência religiosa e ao poder político. As reações a esse poder sempre ocorreram, com destaque para Lutero, cuja ação ocorreu no século XVI numa Alemanha, que ainda não era um país, mas um aglomerado de territórios dispersos. Nessa ocasião os príncipes alemães se rebelaram contra a prática da venda de indulgências, que carreava muito dinheiro para Roma. Lutero representou essa revolta do ponto de vista teológico. Esse e outros movimentos culminaram no século XVIII com o Iluminismo, a Revolução Americana e Francesa. Todos esses fatores fascinantes na história do Ocidente resultaram numa atitude secular, que significou o rompimento com a hegemonia da religião na vida social.

 

IHU On-Line - Que nexo une a secularização, o individualismo e a hiper-racionalidade?

Jorge Claudio Ribeiro – A secularização hoje é compreendida mais na perspectiva de Max Weber da autonomização das várias esferas da vida social, que foram “sacudindo” para fora de si a tutela religiosa. É preciso dizer que o cristianismo em geral é muito conservador, fixado no passado. Sob esse ponto de vista o catolicismo é extraordinariamente conservador. As respostas que o catolicismo tentou dar às questões levantadas pela Modernidade do século XVI foram dadas apenas no século XX com o Concílio Vaticano II – com quase 400 anos de atraso, portanto. Isso demonstra por que o catolicismo não tem conseguido responder com agilidade às demandas da vida contemporânea.

Ótica conservadora

A “sacudida” da tutela da igreja católica para fora de esferas da vida social – como a economia, a política, as artes e a subjetividade (e o primado da consciência individual) – já ocorrera em várias áreas da cultura humana. A supremacia da racionalidade já fora proclamada por René Descartes, cujo Discurso do Método, publicado em 1637, é considerado uma das certidões de nascimento da Modernidade. Diante dos desafios que a vida humana nos apresenta, podemos confiar na razão, desde que orientada pelo método correto. A fé, considerada a principal guia durante a era medieval, passou a ser encarada por muitos como um assunto individual, cada vez menos tutelada pelas religiões.  

 

IHU On-Line - Em que medida se pode falar de um processo de secularização em curso na sociedade brasileira?

Jorge Claudio Ribeiro - Como se trata de uma realidade muito desigual, a sociedade brasileira é arcaica em enormes áreas, mas também apresenta avanços na democracia, cultura e universidade. Daí uma convivência – ora tranquila, ora conflituosa – entre setores arcaicos e outros ultramodernos e até pós-modernos. As pessoas que cursaram boas universidades, sobretudo a juventude, estão “assinadas” com a marca da pós-modernidade. Comparativamente, poucas dessas pessoas deverão ir ao encontro com o Papa, por exemplo. 

A secularização tem avançado na sociedade brasileira no sentido de que foi legalmente definida em 1889 através da separação entre Estado e Igreja. Isso se deu no bojo da proclamação da República, já movida por um espírito republicano que tem avançado com dificuldade ao longo da história brasileira.

 

IHU On-Line - O que podemos entender por secularização à la brésilienne? Quais são suas características?

Jorge Claudio Ribeiro - A secularização à la brésilienne agrega elementos arcaicos e elementos pós-modernos. Ela agrega posições firmes quanto à necessidade do uso de métodos contraceptivos e direitos reprodutivos e também uma visão compreensiva ante mulheres que vivem situações que resultam em aborto. Reconhece, também, que cabe ao Estado definir políticas nesse campo. Outra área é a educação, que é regulada pelo governo, via Ministério da Educação, mas que é praticada em várias instâncias, estadual e municipal, por ordens religiosas e pela iniciativa privada. Do lado político, há grupos religiosos que se assemelham a currais eleitorais, que obedecem cegamente as orientações do líder religioso. Acabam por eleger bancadas mais interessadas em seu grupo religioso do que pela sociedade. Daí as posições corporativas assumidas em comissões parlamentares como a das Comunicações e a dos Direitos Humanos. Então, esses parlamentares estão usando a coisa pública para fins particulares, religiosos. Isso representa, a meu ver, um recuo. 

Outro aspecto é a presença de símbolos religiosos em repartições públicas ou da frase “Deus seja louvado” nas cédulas de dinheiro – essa presença é incômoda para cada vez mais gente. Essa postura mistura as áreas e prejudica uma visão mais clara das instâncias que atuam na realidade. É isso que chamo de secularização à la brésilienne: a necessidade de dialogar com mentalidades muito díspares, dentro de um processo ultradinâmico.

 

IHU On-Line – Como vê a atuação do deputado Marco Feliciano para a democracia?

Jorge Claudio Ribeiro - Marco Feliciano é um “mau evangélico”, porque só está defendendo as ideias de sua restrita igreja, ao invés de levar em conta uma situação mais ampla que interessa à sociedade brasileira como um todo, de todas as religiões. Pessoas religiosamente afinadas com Marco Feliciano dão suporte a sua vida parlamentar e partidária. Contudo, não vejo esse fenômeno com bons olhos, já que se trata de um retrocesso, comandado por um partido ou um grupo de pressão evangélico. Lembremos, porém, que chegou a existir o Partido Democrata Cristão – PDC, que era majoritariamente católico. Mas reitero: isso não ajuda a democracia, pois fica algo muito setorizado, e a sociedade democrática é necessariamente aberta. 

Além disso, o segmento evangélico é muito numeroso e se configura num mercado importantíssimo, quase do tamanho da Argentina. Do ponto de vista da comunicação, por exemplo, esse grupo se configura numa audiência significativa. Não é à toa que a Globo, muito “católica” (e de modo errôneo, pois reproduz preconceitos sobre outras religiões), agora começa a adular a audiência evangélica, que não pode mais ser desprezada e que tem sido atendida, sobretudo pela concorrente Rede Record.

Diálogo ecumênico

Penso que seria importante na vinda do papa Francisco que ele adotasse uma atitude ecumênica, cada vez mais afinada com modernidade e dialogasse com líderes religiosos brasileiros, inclusive evangélicos, propondo uma agenda comum para melhorar a sociedade brasileira. As religiões devem ser estimuladas a contribuir para a sociedade, e não para elas mesmas. Seria altamente desejável um diálogo entre as religiões nessa visita de Francisco ao Brasil.

 

IHU On-Line - O que significa o crescimento das pessoas “sem-religião” no Brasil?

Jorge Claudio Ribeiro - As pessoas sem religião formam um grupo fragmentado, disperso e pulverizado. Seu crescimento se dá, em grande parte, nos dois extremos da pirâmide social: o primeiro grupo é mais numeroso entre os mais pobres, oriundos de imigração recente e que ocupam as periferias, majoritariamente jovens e provavelmente perdidos quanto à orientação de vida. Essas pessoas não foram captadas pela rede religiosa que existe nesses ambientes, basicamente evangélica. O outro grupo de “sem religião” ocupa o topo da pirâmide social e tem maior escolaridade, renda familiar e menos idade. Essas pessoas usam a religião conforme suas necessidades íntimas seguindo um critério próprio, algo bem pós-moderno. 

 

IHU On-Line - Frente a esses aspectos, como podemos compreender ideias como a de Peter Berger sobre a des-secularização? O que inspira esse paradoxal retorno ao sagrado?

Jorge Claudio Ribeiro - Peter Berger é um grande intelectual, mas nesse aspecto ele precisaria rever e refinar suas informações. Primeiramente, cada situação tem sua irredutível especificidade. Não dá para se dizer que está havendo uma secularização ou uma res-secularização “em geral”. É preciso analisar cada situação, como propõem David Martin e Charles Taylor. Algumas sociedades apresentam um grau maior de secularização, em outras se fala em re-secularização, des-secularização etc. Hoje, do ponto de vista da religião, se realizam mais pesquisas diferenciadas. Ainda é difícil se ter clareza sobre o quanto as religiões são relevantes, ou não, no mundo moderno. Se tivéssemos feito essa entrevista no final de 2012, eu diria que o catolicismo estava mergulhando perigosa e velozmente em direção à irrelevância. De repente, é escolhido um Papa que suscita um entusiasmo renovado na igreja católica. O que importa é questionar até que ponto as religiões estão, entre elas, ou em diálogo com outras instituições não religiosas, contribuindo para a paz e a felicidade humana. Penso que é preciso perceber até que ponto as religiões estão prestando esse serviço à humanidade. As pessoas é que devem ser servidas pela religião, e não o contrário; as pessoas não estão a serviço das religiões. A religião é mediadora entre uma crença superior e as necessidades cotidianas da humanidade. Isso precisa ser levado em conta de modo mais incisivo.

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