Edição 426 | 02 Setembro 2013

Laicidade e liberdade religiosa na França

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Márcia Junges / Tradução: Vanise Dresch

Véronique Champeil-Desplats examina a situação francesa, na qual não há proibição para a formação de partidos políticos com base religiosa, mas onde o Estado é estritamente laico e, desde 1905, não subvenciona nenhum culto

Existe uma relação entre a laicização e o comunitarismo. “A afirmação do princípio de laicidade, na França, foi muitas vezes concebida como uma expressão do universalismo da ideia republicana. Está, portanto, relacionada com a vontade de lutar contra o comunitarismo”. A afirmação é de Véronique Champeil-Desplats em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Desde 1905, a partir da promulgação de uma lei, o Estado francês não subvenciona nenhum culto. Portanto, “não existe religião oficial na França”. Em seu ponto de vista, “a religião civil é um meio de conciliar uma necessidade individual e social de crença com a preservação da unidade do Estado”. 

Véronique Champeil-Desplats é professora de direito público na Université de Paris Ouest - Nanterre La Défense, diretora do Centre de recherches et d'études sur les droits fondamentaux - CREDOF e coordenadora da Cátedra Unesco de Direitos Humanos e violência nessa mesma instituição. É autora de, entre outros, Les principes fondamentaux reconnus par les lois de la République - Principes constitutionnels et justification dans les discours juridiques (Paris: Editions Economica, Collection droit public positif, 2001). Véronique esteve na Unisinos em 19-06-2013, quando proferiu a conferência Dos direitos humanos aos direitos fundamentais: a existência da era do neoconstitucionalismo? No dia 20-06-2013 falou sobre Perspectivas contemporâneas de Direitos Humanos na França.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quais são as particularidades da liberdade religiosa na França? O que caracteriza essa liberdade de crença?

Véronique Champeil-Desplats - A particularidade da liberdade religiosa na França é o fato de que seu exercício não recebe nenhum apoio do Estado. Conforme os princípios da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, cada indivíduo é livre para crer e praticar sua religião dentro do respeito à ordem pública, mas desde uma lei de 1905, a República francesa, isto é, o Estado, não subvenciona nenhum culto. Não existe religião oficial na França.

 

IHU On-Line - Em que âmbito se dá o aprofundamento da liberdade religiosa nesse país?

Véronique Champeil-Desplats - Num âmbito estritamente privado. São as diferentes religiões que organizam seus próprios meios de cultos e de educação religiosa. 

 

IHU On-Line - Como compreender essa liberdade religiosa ante a proibição do véu islâmico (niqab) nas escolas e nas universidades públicas?

Véronique Champeil-Desplats - Certamente, a proibição do véu islâmico, assim como de qualquer símbolo religioso ostensivo, é uma limitação à liberdade religiosa. Todavia, por enquanto, essa proibição não vale para a universidade, exceto se o véu cobrir totalmente o rosto. Neste caso, não é uma proibição própria da universidade, ela é válida para todo e qualquer lugar público. As razões dessas proibições são complexas. No caso da escola, ela é justificada pelo princípio de laicidade, mas também pela manutenção da ordem pública, que, na França, são limites tradicionais ao exercício da liberdade religiosa. Na realidade, a lei que proíbe o porte de símbolos religiosas nas escolas e que data de março de 2004 resulta de vários fatores políticos e sociológicos. Por um lado, há um inegável crescimento da força das reivindicações comunitaristas. Estas não são específicas da religião muçulmana, mas nela se revelam por vezes exacerbadas, devido às situações de exclusão social e de crise identitária que os indivíduos imigrantes da África do Norte podem enfrentar na França. Por outro lado, o governo da época teve de responder a demandas cada vez maiores da parte das autoridades escolares e dos seus docentes para a adoção de uma lei que estabelecesse uma regra clara sobre essa matéria. Antes da proibição, os conflitos eram resolvidos isoladamente, o que nem sempre era fácil para as autoridades escolares. A hostilidade por parte destes e de seus docentes à expressão de símbolos religiosos nas escolas deve-se ela mesma a três fatores. Em primeiro lugar, os professores sempre mantiveram uma forte tradição laica nos estabelecimentos escolares. Além disso, alguns deles interpretaram o porte do véu principalmente como um símbolo de submissão da mulher. Por fim, o corpo docente, pelo menos nos últimos vinte anos, tem atravessado uma crise que diz respeito tanto ao exercício quanto à concepção de sua profissão. 

Ampliação da  lei

Quanto à lei que proíbe cobrir o rosto, ela é mais recente, data de 11 de outubro de 2010. Não visa senão o porte de roupas ou acessórios que cubram totalmente o rosto e não se limita especificamente à universidade. Seu objetivo implícito era justamente proibir o niqab e outros símbolos religiosos pertencentes à prática do islã. Entretanto, temendo a condenação pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos pela aprovação de uma lei discriminatória contra a religião muçulmana, a França ampliou o campo da lei. Esta lei se apresenta tipicamente como uma vontade política de controle securitário dos comportamentos sociais.

 

IHU On-Line - Existe uma relação entre a laicização e o comunitarismo?

Véronique Champeil-Desplats - Sim. A afirmação do princípio de laicidade, na França, foi muitas vezes concebida como uma expressão do universalismo da ideia republicana. Está, portanto, relacionada com a vontade de lutar contra o comunitarismo. O enrijecimento das exigências relacionandas com o princípio de laicidade nos últimos anos pode também ser entendido como uma resposta política ao aumento de certas reivindicações comunitárias na França.

 

IHU On-Line - Em que sentido o comunitarismo e a laicização são fenômenos que fortalecem a democracia?

Véronique Champeil-Desplats - É muito difícil dizer, pois, em primeiro lugar, pelo menos do ponto de vista francês, o comunitarismo e a laicização são dois fenômenos que tomam sentidos contrários. Além disso, o comunitarismo e a laicização, de um lado, e a democracia, de outro, não se situam no mesmo nível de análise. Os dois primeiros conceitos dizem respeito à estrutura religiosa do Estado e da sociedade; o conceito de democracia é uma forma de organização política. Conforme se é mais favorável ao comunitarismo ou à laicização, e dependendo do conceito de democracia que se adota, pode-se considerar, então, que o comunitarismo e a laicização fortalecem a democracia ou, ao contrário, a fragilizam, ou ainda não exercem nenhuma influência sobre o seu modo de organização. 

 

IHU On-Line - Que impasses são enfrentados pelas sociedades em que o Estado não aprofundou o processo de laicização?

Véronique Champeil-Desplats - O impasse é duplo: o de uma fragmentação da sua estrutura social e uma imbricação do poder religioso e do poder político.

 

IHU On-Line - Neste contexto, o que podemos entender por religião civil?

Véronique Champeil-Desplats - A religião civil é um meio de conciliar uma necessidade individual e social de crença com a preservação da unidade do Estado.

 

IHU On-Line - Como podemos compreender a coabitação de um Estado que pretende ser laico, como o brasileiro, com a expressão política dos representantes evangélicos no Congresso Nacional?

Véronique Champeil-Desplats - Tudo depende do modo como se concebe o princípio de laicidade. Este não proíbe, nem mesmo na França, a formação de partidos políticos com base religiosa. O problema, depois, é observar como se comportam esses partidos políticos quando seus representantes têm acesso a funções políticas. São então os comportamentos desses representantes e as medidas que eles propõem que podem ser contestados jurídica e politicamente quanto ao fundamento do princípio de laicidade. 

 

IHU On-Line - A partir do contexto de laicização e de comunitarismo, como podemos compreender o papel das universidades ditas comunitárias? 

Véronique Champeil-Desplats - As universidades comunitárias são instituições de educação e difusão de valores religiosos. Elas reforçam o comunitarismo, não a laicização.

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