Edição 425 | 01 Julho 2013

A linguagem dos documentos da Igreja: microarenas de lutas

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Por Graziela Wolfart

Segundo Valdemir Miotello, a linguagem é o lugar onde os sentidos se dão, se constituem, de modo que “os documentos do Vaticano II apresentam a Igreja, como ela se coloca na relação de concordância e de embate com o mundo contemporâneo”

“Para se compreender a Igreja, sua missão, seu projeto, é preciso que se olhe para seus documentos. Lá está definida com qual sociedade a igreja dialoga; com quais sujeitos ela se relaciona; como ela estabelece as hierarquias, como ela assume as culturas, os mitos, os comportamentos; lá se define como ela pretende dialogar com as liturgias, os sacramentos, os ritos; está definido em seus documentos quem é o povo de Deus e quem não é; quem é cristão e quem não é; quem vive a redenção e quem vive sem ela. Nenhuma palavra é neutra; todas são ideologizadas”. A afirmação é do professor e pesquisador Valdemir Miotello, da Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. Na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, ele explica que “as palavras oficiais da Igreja a definem; e revelam os pontos de diálogo com as palavras que não são oficiais; palavras que vêm do povo; do mundo secular. Dentro das palavras pronunciadas em seus documentos estão a palavra da Igreja e as palavras outras, que são refutadas, negadas, proscritas. É muito importante se entender essa dimensão da linguagem para se poder conversar sobre o Concílio como um evento dialógico”.

Valdemir Miotello possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, mestrado e doutorado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas. É professor da Universidade Federal de São Carlos, lotado no Departamento de Letras. É líder do Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGe/UFSCar, que esta semana promove o evento “O Concílio Vaticano II como evento dialógico”, no qual ministrará a palestra “O olhar dialógico sobre o discurso religioso”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em linhas gerais, qual o foco da abordagem que o senhor trará ao falar sobre o tema “O olhar dialógico sobre o discurso religioso”?

Valdemir Miotello – O discurso religioso está presente em todos os campos da vida humana. É um discurso onipresente, forte, hegemônico em vários campos, e poderíamos compreendê-lo com um discurso dogmático, autoritário, emanado e difundido como uma voz monológica, unidirecional, alienante, sem concretude, aliciadora. Mas também podemos analisar o discurso religioso como um discurso com muitas vozes, indicando muitas opções, encarando a diversidade, aceitando o jogo da alteridade, em vez de apenas os esforços para a construção e manutenção da identidade. Identidade da Igreja e identidade do mundo. De alguma forma essa identidade tem que se abrir para os jogos de alteridade. É necessária a superação da Identidade, para principiarmos tempos de alteridade. O Concílio pode ser visto como uma possibilidade de alteridade, de se colocar na relação com o outro. E não de apenas definir a si mesmo. É então que a dialogia se dá. Mesmo sem a autorização do Eu. Sempre é o Outro o ponto de partida. E a Dialogia se dá “apesar do eu”. O que significa que essa abertura se dá não porque eu dou o tom, ou permito, mas porque me ponho na escuta do outro. O discurso religioso deve se abrir ao outro, colocar-se na escuta. E não se colocar como um discurso autoritário, o que normalmente se dá. Os outros discursos precisam ser ouvidos. O mundo fala. E não é subalterno à Igreja. E finalmente pensar as memórias de futuro que tanto a Igreja quanto a sociedade se colocam. Ouvir o futuro. Colocar-se na escuta do porvir.

IHU On-Line – Qual a riqueza dos documentos do Concílio Vaticano II para os estudos da filosofia da linguagem?

Valdemir Miotello – A filosofia da linguagem, de base bakhtiniana, compreende a linguagem como o lugar da interação entre dois ou mais sujeitos. A linguagem é o ponto de encontro; é o lugar onde a dialogia se torna concreta. E a linguagem é também constituidora do homem e do seu meio. Assim, ao olhar para a linguagem como se pondo na mediação, pode-se compreender o homem e seu meio. A linguagem é o lugar onde os sentidos se dão, se constituem. E também é o lugar mais sensível para se perceber qualquer pequena mudança que se dá no mundo. Assim, os documentos do Vaticano II apresentam a Igreja, como ela se coloca na relação de concordância e de embate com o mundo contemporâneo. Para se compreender a Igreja, sua missão, seu projeto, é preciso que se olhe para seus documentos. Lá está definido com qual sociedade a igreja dialoga, com quais sujeitos ela se relaciona, como ela estabelece as hierarquias, como ela assume as culturas, os mitos, os comportamentos; lá se define como ela pretende dialogar com as liturgias, os sacramentos, os ritos; está definido em seus documentos quem é o povo de Deus e quem não é; quem é cristão e quem não é; quem vive a redenção e quem vive sem ela. Nenhuma palavra é neutra; todas são ideologizadas. As palavras oficiais da Igreja a definem; e revelam os pontos de diálogo com as palavras que não são oficiais; palavras que vêm do povo; do mundo secular. Dentro das palavras pronunciadas em seus documentos estão a palavra da Igreja e as palavras outras, que são refutadas, negadas, proscritas. É muito importante se entender essa dimensão da linguagem para se poder conversar sobre o Concílio como um evento dialógico.

IHU On-Line – O que pode ser dito sobre a relação entre linguagem e ideologia a partir dos textos dos documentos do Vaticano II?

Valdemir Miotello – Não há linguagem sem ideologia. Nenhuma palavra é desvestida de seu preço, seu valor, pois que todas as palavras são usadas por todas as pessoas e, portanto, são encharcadas de interesses, de apreciação social. Os grupos dominantes, e nesse caso a própria Igreja, pretende sempre que sua palavra seja limpa, neutra, asséptica, e nesse caso que seja a única verdade, emanada diretamente de Deus, ou de seus representantes infalíveis aqui na terra. Essa palavra, anunciada como dogmática, não resiste à menor análise, pois toda ela é também uma palavra social posta na luta de interesses, enunciada a partir de um lugar social, dentro de um horizonte bem definido. Impossível extrair a ideologia de dentro de qualquer palavra posta em enunciação. As palavras autoritárias pretendem apagar a ideologia, para se converterem em verdade única; e para que seus enunciadores sejam colocados acima das disputas que se dão nos meios sociais. Mas é apenas pretensão. A existência da linguagem apenas se dá no meio social. E ao olharmos para os documentos da Igreja, qualquer documento, de qualquer igreja, este é o caráter que sua linguagem carrega: reflete e refrata; coloca-se no jogo ideológico; carrega-se de valores sem disputa; enuncia sentidos contraditórios; transformam-se em microarenas de lutas.

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