Edição 423 | 17 Junho 2013

O corpo como um lugar de luta, de transgressão e resistência

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Graziela Wolfart

Para Carolina Ribeiro, ao retratar hipergêneros, os filmes pornográficos mainstream acabam criando estereótipos que reforçam costumes e ideais na mente das pessoas e extrapolam a pornografia, reforçando uma sociedade também machista e sexista

Ao ser questionada sobre a relação entre tecnologia e cinema e sua contribuição para a construção da feminilidade contemporânea, a mestranda em Sociologia Carolina Ribeiro considera que “as tecnologias representam e são representadas. Elas promovem um duplo processo de arquétipos da feminilidade: ela é construída pela sociedade, mas também a constrói, trabalhando com as reflexões mais fechadas do que acontece no âmbito social, pois, ao mesmo tempo em que tecnologia coloca a possibilidade de aproximar os personagens da vida com as imagens da tela, ela tem limite de tempo e de recursos que muitas vezes achata a vida real a simples e supérfluas imagens do que queremos ou podemos ser enquanto mulheres e homens, refletindo tal poder nos comportamentos e muitas vezes nas escolhas de gênero”. 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, ela fala sobre sua pesquisa com filmes pornográficos, em especial a pornografia feminista, que busca retratar um sexo a partir de uma visão feminista de diretoras ou produtoras mulheres, trazendo outras vozes para indústria pornográfica. “A proposta é fazer um ‘bom pornô’, que tira a ideia do sexo como o exclusivamente para o olhar e apreciação masculina”, explica. E conclui: “assim como no cinema, as revistas femininas achatam as complexidades humanas representando as imagens das mulheres como homogêneas, quando, na verdade, seres humanos são uma amplitude de desejos, identidades, formações e subjetividades”. 

Carolina Ribeiro Pátaro é mestranda do Programa de Sociologia da Universidade Federal do Paraná – UFPR. Possui licenciatura e bacharelado em Ciências Sociais pela UNESP Araraquara. 

Confira a entrevista. 

IHU On-Line – Em que sentido a relação entre tecnologia e cinema implica na construção da feminilidade contemporânea?

Carolina Ribeiro – A tecnologia é parte fundante do cinema. Destaco dois momentos especiais de revolução por parte do cinema e dos filmes que marcaram o mundo visual: o advento do videocassete e a internet. Foi a partir dos videocassetes que a relação entre os espectadores e os filmes se tornou próxima, íntima, e com muito mais opções para se alugar ou comprar. Já a internet populariza, de forma legal e ilegal, os mais diversos tipos de filmes (cults, pornográficos, mainstream, etc.). A partir da tecnologia da internet se torna possível acessar de sua casa, a qualquer momento, qualquer tipo de imagem que se deseja, seja ela pirata ou paga. Esses dois momentos também popularizam tipos do feminino, estereótipos e arquétipos de qual tipo de mulher ou mulheres eram boas (ou não) para serem filmadas. A popularização dos filmes promoveu também a popularização de arquétipos. Tal forma está diretamente ligada à evolução das tecnologias e a facilidade de acesso a elas. 

Arquéticos de feminilidade: femme fatale

Destaco, então, quatro arquétipos de feminilidade que estão exacerbados no cinema, assim como podem ser vistos na mídia em geral: a femme fatale, a histérica ou a bruxa, a rainha do lar e a mocinha em perigo. Esses tipos são construções do que é e de como é “ser mulher”. O primeiro arquétipo é a femme fatale ou “loira burra”, que não necessariamente é loira, mas usualmente é retratada como burra; aquela vulgarmente conhecida como uma mulher com peitos, mas sem cérebro, a coelhinha da Playboy, a coadjuvante em filmes de ação. A femme fatale é aquela que usou tecnologias para melhorar o corpo, como silicones, cirurgias plásticas, usa roupas curtas, justas, sensuais e sensualizadas. As técnicas de filmagem favorecem seus atributos físicos. É a mulher relacionada à “puta”, algumas vezes destruidora de lares, outras a desejada, desejada sexualmente pelos homens e motivos de inveja de outras mulheres, que gostariam de ser iguais a ela. 

A histérica ou a bruxa

A histérica ou a bruxa, embora não seja sempre a mesma pessoa, pois a bruxa muitas vezes é relacionada à feiura e a histérica pode usufruir da beleza, têm coisas em comum: completo descontrole emocional. São relacionadas com a súcubo, aquela que suga a masculinidade dos homens com a sua loucura ou a extrema depressão, aquelas que coloquialmente se diz que “vai ficar para titia”. Ela pode ser a viúva que ainda anda de preto por todos os lugares chorando e sofrendo a morte do marido, ou a jovem frígida, ou a velha virgem com milhares de gatos. 

A rainha do lar e a mocinha em perigo

A rainha do lar é a “mulher ideal”, retratada nos comerciais de margarina, que está feliz em seu papel de esposa e mãe, faz seus “deveres femininos” com perfeição, lava, passa e está sempre “atrás de seu marido”. Por fim, a mocinha em perigo é aquela que está aguardando o seu homem macho salvador. São as princesas dos contos de fadas, como a Branca de Neve aguardando o beijo do seu príncipe. Nas mais diversas formas, ela é a sonhadora, aquela de beleza estonteante, mas que jamais se dá para qualquer um, pois ela espera o “homem ideal”.

Mulher independente

Nos últimos anos, vimos também, com o aumento das mulheres trabalhadoras, a diminuição dos casamentos e a maternidade como opcional, o surgimento de um novo arquétipo nas mídias. Esse também se tornou possível pela facilidade de acesso das mulheres às tecnologias fílmicas e como espectadoras. Esse novo arquétipo é o da mulher independente, ela é marcada por trabalhar, ter uma vida sexual ativa, ser desenvolta, ou seja, “uma mulher do século XXI”. Como marco principal temos a série Sex and The City , que mostra os arquétipos das mulheres modernas, fissuradas na beleza do corpo, nas compras e também na sua liberdade. Elas procuram o “amor” das mais variadas formas, mas são todas mulheres de uma nova era. Elas podem ir e vir e se divertir com muito mais liberdade.

Algumas vezes essa imagem de mulher emancipada depois da primeira vista se torna um retorno aos quatro arquétipos anteriormente descritos, passando a imagem de que “no fundo nada mudou”. Mas nem sempre tal retorno acontece. Algumas vezes a mulher emancipada é mesmo retratada como emancipada.

Resumindo essas visões, ressalto o que disse John Berger: “os homens atuam e as mulheres aparecem. Os homens olham as mulheres. As mulheres veem-se sendo olhadas. Isso determina não só a maioria das relações entre homens e mulheres, mas ainda a relação das mulheres entre elas. O fiscal que existe dentro da mulher é masculino: a fiscalizada, feminino. Desse modo, ela vira um objeto – e mais particularmente um objeto da visão: um panorama.” (BERGER, Modos de ver, 1999).

Assim as tecnologias representam e são representadas. Elas promovem um duplo processo de arquétipos da feminilidade: ela é construída pela sociedade, mas também a constrói, trabalhando com as reflexões mais fechadas do que acontece no âmbito social, pois, ao mesmo tempo em que tecnologia coloca a possibilidade de aproximar os personagens da vida com as imagens da tela, ela tem limite de tempo e de recursos que muitas vezes achata a vida real a simples e supérfluas imagens do que queremos ou podemos ser enquanto mulheres e homens, refletindo tal poder nos comportamentos e muitas vezes nas escolhas de gênero.

IHU On-Line – A partir de sua pesquisa com o cinema pornográfico, que imagem do feminino aparece nesse tipo de filme?

Carolina Ribeiro – Se falarmos de um cinema pornográfico convencional, ou dominante, ou mainstream, que resumindo brevemente são os filmes pornográficos feitos por grandes ou pequenas produtoras que têm foco no sexo penetrativo heteronormativo no intuito da venda com lucro, podemos dizer que esses filmes são notadamente conhecidos especialmente pelo estereótipo de beleza propagado: mulheres loiras, morenas ou ruivas, com seios grandes siliconados, nenhuma gordura na região abdominal, completamente depiladas, com unhas longas e bem pintadas, sem celulites ou estrias e raramente tatuadas. Também faz parte desse estereótipo as lingeries belas e saltos altos (que se mantêm durante o ato sexual). A encenação sexual possui um roteiro base: sexo oral feito da mulher no homem, penetração vaginal normalmente com a mulher por cima ou com as pernas bem abertas, sexo anal e a ejaculação, que muitas vezes acontece fora do corpo da atriz, muito comumente em seu rosto ou em sua boca. Essa mulher é a hiperfêmea, que tem seus atributos de feminilidade ressaltados e está sempre disposta para o sexo a qualquer momento, em qualquer lugar, ela é a mulher que geme e grita para demonstrar seu prazer. Ela é a estrela do filme, mas o protagonista é o falo masculino. Outros tipos de mulheres, como mulheres gordas, mulheres negras (que aparecem em alguns filmes mainstream, mas de forma mais pontual), travestis, entre outros possíveis corpos femininos, aparecem em filmes específicos que tem a proposta de retratar tais corpos como “diferenciados”. 

IHU On-Line – Como conceituar a ideologia “pornô feminista”?

Carolina Ribeiro – Como ideal, a pornografia feminista busca retratar um sexo a partir de uma visão feminista de diretoras ou produtoras mulheres, trazendo outras vozes para indústria pornográfica. A proposta é fazer um “bom pornô”, que tira a ideia do sexo como o exclusivamente para o olhar e apreciação masculina. O Prêmio de Pornô Feminista diz que para um filme ser feminista precisa de três fatores: 1) ter mulheres e/ou pessoas tradicionalmente marginalizadas envolvidas na direção, produção e/ou concepção da obra; 2) o trabalho deve retratar o prazer genuíno, agência e desejo de todos os artistas, especialmente mulheres e as pessoas tradicionalmente marginalizadas; e 3) o trabalho deve expandir os limites da representação sexual no filme, desafiar estereótipos e apresentar uma visão que define o conteúdo, além da pornografia mainstream. Além disso, ressalto que a pornografia feminista é um campo imenso e muito amplo. Um primeiro movimento feminista de cinema pornô surgiu com Candida Royalle, em 1984. Então, embora o movimento esteja se popularizando agora, a ideia não é nova e um tipo de pornografia para mulheres já existe desde a década de 1980.

IHU On-Line – Quais as características do corpo feminino e masculino nessa nova modalidade de filme pornô? 

Carolina Ribeiro – A diversidade de corpos é uma das principais características de todos os filmes pornôs feministas: são biomulheres, bio-homens, transmulheres, trans-homens, corpos queer de forma ampliada. Você pode encontrar o corpo que desejar dentro da pornografia feminista e da diversidade de diretores. Falando mais especificamente da diretora que estou pesquisando, Erika Lust, que diz que retrata corpos de pessoas “reais”, na análise dos filmes percebi que, embora os corpos sejam bem mais múltiplos que em um pornô mainstream, a diretora retrata a maioria de corpos brancos, magros, alguns com tatuagens ou piercings, mas a maioria dentro do que se coloca como “normal” para mulheres e homens. Destaco que os homens são, na maioria, com corpos sarados e bem torneados, dando pouca margem de pluralidade aos corpos de homens, o que é um dado interessante e diferenciado de filmes pornôs mainstream, que muitas vezes não se preocupam com os corpos masculinos.

IHU On-Line – O que faz parte de uma nova forma de abordar a sexualidade para as mulheres do século XXI? 

Carolina Ribeiro – Estamos vendo um novo e importante movimento nos últimos anos, intitulado no Brasil de “Marcha das Vadias”, um movimento político e social que traz bandeiras importantes, como “meu corpo, minhas regras”. Considero que esse é um momento paradigmático de levante político sobre a sexualidade, levantes contra estupros, a favor do aborto, a favor de cada pessoa vestir e sair de casa como quiser. Esse é um momento importante aos debates da sexualidade e um movimento que marca um novo levante de rua que acontece em diversas partes do mundo. Essa é uma das formas de abordar a sexualidade. 

Outra abordagem importante a ser destacada é a das teorias queer, propondo que nossos corpos, desejos, sexos e identidades são construídos socialmente e que cada um é livre para escolher o que quiser fazer com seu corpo; é escancarar a sexualidade como política, de fazer do corpo um lugar de luta e um lugar de transgressão e resistência; é a ideia de desarticular o que parece tão naturalizado, e dizer que corpos, sexualidades e desejos não são automaticamente ou naturalmente conectados e binários, mas que todos são construídos socialmente, sendo assim, podem ser desconstruídos. Considero o movimento queer um dos mais paradigmáticos, tanto social, política e teoricamente das últimas décadas.

IHU On-Line – Quais são os padrões impostos pelos filmes pornográficos até então vistos e dominantes no ramo? 

Carolina Ribeiro – Antes de qualquer coisa, vale ressaltar que estamos falando de filmes que são prescritivos, ou seja, feitos a partir de um olhar que impõe de forma unilateral uma visão de mundo e sexualidade. A pornografia mainstream é prescritiva a partir de um olhar masculino e muitas vezes machista e sexista. Os padrões colocados nos filmes pornográficos mainstream surgem, então, a partir desse olhar. Tanto os homens quanto as mulheres são retratados como potentes máquinas de sexo, com suas características, seja feminina seja masculina, extremamente exacerbadas. Os homens são máquinas viris de sexo, com pênis sempre eretos e desejosos a todos os momentos. As mulheres são fêmeas liberais que gostam de sexo penetrativo e mantêm seus cabelos, corpos e lingeries intactamente no local, mesmo com uma relação sexual “animalesca”. Mas vale lembrar que os filmes pornográficos mainstream são filmados e todas as cenas são feitas de forma a valorizar a penetração, o centro do filme é o falo, ele é o protagonista, e o corpo feminino a estrela, então são essas duas partes que as câmeras vão focar. As cenas de sexo com pernas muito abertas vão valorizar a cenas penetrativas, o rosto, as feições não são partes da grande maioria desses filmes. Ao retratar esses hipergêneros, os filmes pornográficos mainstream acabam criando esses estereótipos que reforçam costumes e ideais na mente das pessoas e extrapolam a pornografia, reforçando uma sociedade também machista e sexista.

IHU On-Line – Podemos afirmar que esse tipo de filme promove a violência de gênero, em especial contra mulheres? 

Carolina Ribeiro – Não há uma relação direta. São muitos fatores e a pornografia não é uma única responsável pela violência contra as mulheres, nem mesmo violência sexual. Tal visão vem das feministas antipornografia, que lutavam por eliminar o que elas chamavam de um “mal da sociedade”. Contudo, concordo com a pesquisadora Maria Filomena Gregori quando ela lembra que a questão principal é pensar por que cabe ao corpo feminilizado, seja um corpo biologicamente mulher ou homem, o papel de violado, ou seja, por que a pornografia convencional coloca sempre o corpo com atributos femininos retratado como aquele que é o passivo, o imoral, o sujo e o corpo do macho com atributos masculinos como o penetrador, ativo e viril. A pornografia é mais um dispositivo tecnomasturbatório que visa excitação.

IHU On-Line – Que conceito de feminino e de feminilidade emerge das páginas das revistas femininas?

Carolina Ribeiro – Revistas femininas são muitas. Podemos começar a pensar na revista Casa e Jardim e sua busca de domesticidade do feminino, a mulher do lar, decoradora, inspirada pela sua vida dentro do ambiente doméstico. Podemos falar também das revistas como Capricho ou Atrevida para jovens mulheres, que ensinam como se relacionar com homens, como lidar com a suposta inveja de outras mulheres, como se vestir para ser desejada e para atrair os olhares. As revistas como Claudia e Nova, nas que me deterei aqui, constroem uma visão de mulher a partir dos estereótipos mais normativos na sociedade. Assim como as outras revistas anteriormente citadas, têm o objetivo de vender; quanto mais venda, maior o lucro, sendo assim um produto de uma indústria cultural de massa capitalista. Tais revistas trabalham com um ideal de mulher. Embora consideradas “moderna”, trazem diversas reiterações da feminilidade, trabalhando sempre temáticas muito similares, como beleza (com a ideia de como cuidar dos cabelos, da pele, as dietas do momento) ou trazem formas de “como conquistar um homem” ou então “como manter um homem”, roupas e acessórios que estão na moda, dicas para se dar bem no trabalho e, algumas vezes, como educar os filhos ou como ser uma mãe presente e uma profissional de sucesso. Assim, já podemos ver um padrão de para quem essas revistas são feitas, para mulheres heterossexuais, adultas, com um padrão de vida médio a alto, que querem constituir uma família. 

A revista Claudia foi caracterizada por Juliana do Prado, em sua dissertação de mestrado, como a revista para mulheres casadas e com filhos, enquanto a Nova é a revista com propostas sexuais mais ousadas. Essas identidades são projetadas e projetam um tipo de mulher, ou mulheres: casada com filhos, ousada e expansiva sexualmente, adolescente encanada e preocupada, enfim, assim como na pornografia, que é um produto da indústria cultural tão próxima de outros produtos como o cinema e as revistas, o duplo movimento de representar e ser representado também acontece aqui. Mas assim como no cinema, as revistas achatam as complexidades humanas representando as imagens das mulheres como homogêneas, quando, na verdade, seres humanos são uma amplitude de desejos, identidades, formações e subjetividades. Não há nada escondido, não há um desejo feminino ou masculino único a ser revelado, não existe resposta correta, mas sim posicionamentos múltiplos de vida e o que cada individuo deseja ou não ser. Essas revistas, embora achatem as identidades, estão longe de captar alguma “essência” da identidade feminina, porque na verdade essas identidades não passam de construções sociais que estão sempre se moldando e sendo moldadas por aparatos de saber e poder. O maior problema que aponto para essas buscas de identidade única, ou de um desejo unificado do que as mulheres querem, é que ignoramos as diferenças e invisibilizamos as outras vozes. Pensando num mundo de ideais, o ideal seria que a variedade e a pluralidade fossem valorizadas, e não a busca por achar o cerne da feminilidade ou da masculinidade supostamente escondidos.

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