Edição 423 | 17 Junho 2013

A recíproca relação entre tecnologia e sociedade

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Graziela Wolfart

“Hoje muitas mulheres já não têm mais como objetivo da sua vida a maternidade. Elas já encontraram outras formas de realização pessoal”, pondera Marília Gomes de Carvalho

Ao pensar na questão das transformações sociais nas duas últimas décadas, a pesquisadora Marília Gomes de Carvalho coloca as mulheres como um dos elementos centrais da chamada “revolução das mulheres”. “É claro que isso se deu até em função de novas tecnologias”, explica, na entrevista que concedeu por telefone para a IHU On-Line. Para Marília, a dependência feminina que as mulheres tinham em relação aos homens (marido, pai, irmão) é algo que hoje não existe mais. “Essa autonomia muda muito as relações sociais, principalmente as relações de gênero. É claro que isso tem relação com a tecnologia. Os meios de transporte, por exemplo, são cada vez mais eficazes. Basta pensarmos no automóvel. Perceba a diferença na vida de uma mulher que tem um automóvel, que dirige seu próprio veículo, que vai aonde quiser, com a rapidez que não iria nunca se estivesse dependendo que alguém a levasse”.

Marília Gomes de Carvalho possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná, mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Está aposentada como professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, onde exerce a categoria de docente/pesquisadora voluntária do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia. Atua na área de dimensões socioculturais da tecnologia. É pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Relações de Gênero e Tecnologia – Getec do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia – PPGTE da Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quando pensamos na relação entre tecnologia e sociedade, quais poderiam ser mencionadas como as principais implicações sociais do desenvolvimento tecnológico?

Marília Gomes de Carvalho – Tecnologia e sociedade têm uma relação recíproca. Ao mesmo tempo em que a tecnologia transforma as relações sociais, por sua vez as próprias relações sociais criam necessidades de novas tecnologias. Dentro dessa visão, poderíamos pensar em diversas áreas de transformações sociais associadas à tecnologia. Por exemplo, na área da medicina existem tecnologias que estão atendendo às necessidades sociais, mas também transformando as relações sociais. Temos nessa área toda a questão das tecnologias reprodutivas, que tratam da reprodução assistida, da fecundação in vitro, dos embriões produzidos fora do corpo, e que estão atendendo às necessidades das pessoas que não têm filhos. Ao mesmo tempo, há mudanças e diferenças de relacionamento nas famílias. A família hoje está cada vez menor em relação ao número de filhos. Mas ainda existe uma necessidade grande de tê-los. E quando isso não acontece, recorre-se a essas tecnologias para que solucione seus problemas. Toda essa área da reprodução acaba modificada, nesse caso. 

Outra questão é a da longevidade. A vida humana hoje está cada vez mais prolongada. Temos uma população de idosos que está aí graças à tecnologia. Essa população têm necessidades sociais específicas e, com elas, surgem várias formas de atendimento, desde entretenimento para idosos até a questão do atendimento à saúde, da convivência dessas pessoas, que antigamente ficavam isoladas. 

Outro exemplo é a vida urbana, que hoje está bem mais acentuada do que a vida rural. Até pouco tempo, a maior parte da população vivia no campo. Hoje ela está concentrada em cidades grandes, e a população cada vez mais acumulada no mesmo espaço. Naturalmente, a vida social é diferente, porque enquanto a população é mais rarefeita as pessoas se procuram umas às outras para práticas de solidariedade em função da própria situação de isolamento. Na vida urbana, existe uma grande concentração na qual as pessoas não podem ficar interferindo na vida umas das outras, o que seria o caos. Surge um individualismo exacerbado para que cada um cuide da sua vida. E assim mudam as relações sociais. Ao mesmo tempo em que há todo um aparato tecnológico garantindo essa concentração urbana de uma maneira relativamente “em paz”.

Cito também o exemplo da cultura do consumo, que igualmente é um resultado do desenvolvimento tecnológico. Ao mesmo tempo, as pessoas querem novos produtos, e aí surge um consumismo acentuado, porque a vida humana hoje, principalmente nas grandes cidades, gira em torno do consumo. O shopping center nas grandes cidades é um dos elementos fundamentais. As pessoas vão ao shopping para comprar produtos que rapidamente são considerados ultrapassados. Depois de um ano de uso ninguém mais quer seu telefone celular, seu computador, e descarta para comprar outro novo. As crianças já crescem assim, com essa preocupação em comprar. Essa exigência de consumo faz com que se produzam novos produtos e novas tecnologias.

Mais um exemplo é a ideia da transitoriedade na vida social. Se antigamente adquiríamos produtos “para toda a vida” as relações eram vistas da mesma forma. Existe um conflito frequente hoje entre os valores sociais (que seriam a maior durabilidade das relações, dos produtos) e os valores pós-modernos (que se caracterizam por esse imediatismo e essa transitoriedade).

IHU On-Line – Quais as principais transformações sociais resultantes da Revolução Industrial que mais se acentuaram nas duas últimas décadas, principalmente envolvendo o universo feminino?

Marília Gomes de Carvalho – Ao pensar na questão das transformações sociais nas duas últimas décadas, coloco as mulheres como um dos elementos centrais da chamada “revolução das mulheres”. É claro que isso se deu até em função de novas tecnologias. Há autores, como o sociólogo francês Alain Touraine , que defendem que hoje a grande revolução é a revolução das mulheres. Porque elas trouxeram grandes transformações sociais juntamente com as mudanças no papel feminino. Falando de maneira geral, a mulher hoje já não se limita ao trabalho da maternidade e do ambiente doméstico. Isso tudo trouxe grandes implicações no mercado de trabalho. Com isso, as mulheres se desenvolveram na vida profissional, sendo que as tecnologias permitem que elas possam fazer o trabalho em casa, por meio do computador, da internet, e que elas possam se comunicar mais rapidamente, caso saiam de casa, com a sua família através da telefonia celular, a todo momento. Isso vem oferecendo às mulheres uma certa autonomia financeira, o que resulta em uma autonomia de modo geral, que elas nunca tiveram antes. Aquela dependência feminina que as mulheres tinham em relação aos homens (marido, pai, irmão) é algo que hoje não existe mais. Essa autonomia muda muito as relações sociais, principalmente as relações de gênero. É claro que isso tem relação com a tecnologia. Os meios de transporte, por exemplo, são cada vez mais eficazes. Basta pensarmos no automóvel. Perceba a diferença na vida de uma mulher que tem um automóvel, que dirige seu próprio veículo, que vai aonde quiser, com a rapidez que não iria nunca se estivesse dependendo que alguém a levasse. 

Outra mudança dentro do âmbito da feminilidade é a questão da maternidade. Hoje muitas mulheres já não têm mais como objetivo da sua vida a maternidade. Elas já encontraram outras formas de realização pessoal.

IHU On-Line – Que desafios se colocam à concepção do termo feminilidade e como a revolução tecnológica contribui para as transformações nesse conceito?

Marília Gomes de Carvalho – A primeira coisa que vem à minha cabeça é o desafio de tentar definir feminilidade. O que é ser mulher? Com todas essas mudanças que relatei na vida das mulheres, o que é ser feminina? O que posso dizer é que não podemos falar em feminilidade no singular. Há várias feminilidades, várias maneiras hoje de ser mulher. A feminilidade são características que definem o que é ser uma mulher. Não podemos esquecer que, graças ao movimento feminista, hoje se questionam muitas características das mulheres que antigamente eram tidas como “naturais”, essenciais, próprias das mulheres. E não necessariamente são. Por exemplo, o movimento feminista questiona a subalternidade das mulheres. Ou seja, será que seria uma característica feminina ser submissa, subalterna, dependente? Não existe hoje a possibilidade de as mulheres tomarem na sua mão o seu destino, a construção da sua vida? Outra questão do movimento feminista, colocando sob a crítica a questão da feminilidade, são as relações de poder e de gênero. As relações de poder entre homens e mulheres estão em grande transformação e colocando em xeque as relações de poder previamente estabelecidas. Nem sempre hoje as mulheres são subordinadas aos homens. Elas têm condições de serem totalmente independentes. E questionam também esse poder masculino, porque a referência da construção da nossa sociedade foi sempre com o homem. De certa forma, nos leva a pensar no nosso mito de origem, da costela de Adão, que cria uma maneira de pensar de que as mulheres estariam “sob as asas” dos homens. Outro questionamento do movimento feminista é a divisão sexual do trabalho, tanto no trabalho doméstico, quanto na vida profissional. Temos hoje profissões que jamais as mulheres assumiriam antigamente, como pilotar um avião, ou envolvendo o trabalho na área da mecânica, da mineração. É uma maneira de ser feminina também. Ela pode ser uma engenheira mecânica sendo mulher, sem se transformar em um homem. Essa questão da feminilidade associada às transformações tecnológicas tem muita relação com a transformação da mulher. 

Gostaria de ilustrar esse elemento da diversidade, das várias formas de ser mulher. Se pensarmos na pluralidade de feminilidades, perceberemos que temos alguns sinais que são extremamente diversos do que é ser feminina: a mulher submissa, a mulher carinhosa, a mulher caprichosa, a mulher dengosa, a mulher chique, a mulher maquiada, a mulher sensual, a mulher piriguete, a mulher comportada, a mulher guerreira. A diversidade é a característica dos nossos dias.

IHU On-Line – Como se constituem atualmente os processos de feminização e masculinização? Como se estabelecem as relações sociais de gênero e suas interfaces com outras relações sociais, especialmente as de poder?

Marília Gomes de Carvalho – A construção do masculino e do feminino são construções sociais – com base, naturalmente, nas diferenças biológicas, que não podemos negar. Em primeiro lugar, gostaria de lembrar a pluralidade. Em nossa sociedade não existe uma única forma de construção das mulheres. Isso está relacionado com todo o processo de socialização e formação. E a escolaridade tem grande influência nessa construção da feminização.

Em relação à educação tecnológica, é importante acentuar a importância de ter no currículo dos cursos da área tecnológica uma perspectiva crítica da sociedade em que vivemos. As pessoas que estudam cursos da área da tecnologia possuem uma noção de determinismo tecnológico, de que é a tecnologia que vai determinar como será a vida, como as pessoas vão produzir e o que irão produzir. A pergunta é: produzir para que, para quem? Quais as consequências sociais da atuação na área tecnológica? O que está acontecendo com o meio ambiente, com as pessoas? Todos têm acesso a essas descobertas? Por que algumas têm acesso e outras não? 

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