Edição 422 | 10 Junho 2013

As sutilezas do sagrado e do secular na literatura moderna

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Márcia Junges

Tomando em consideração a obra de Eugene Webb, não se deve opor “sagrado” a “secular” como costumeiramente se faz entre “sagrado” e “profano”, alerta Hugo Langone. Cada autor responde ao seu modo aos movimentos de dessacralização que vivenciamos

“O polo transcendental do sagrado é o responsável pela sensação de assombro e terror ante a divindade; ele gera o sentimento de que há algo poderoso e majestoso ali, algo cuja plenitude engendra fascínio, algo do qual somos completamente diferentes e diante do qual nos sentimos indignos, iníquos”, assinala Hugo Langone na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line sobre a obra de Eugene Webb intitulada A pomba escura. O sagrado e o secular na era moderna (São Paulo: É Realizações, 2013), por ele traduzida. Langone afirma que não se podem generalizar as transformações verificadas no mundo moderno e na literatura: “Webb faz questão de enfatizar que cada um responde de maneira diferente aos movimentos de dessacralização que vivenciamos, e desse modo a resposta de um Ibsen será diferente da resposta de um Eliot ou de um Auden”.

Hugo Langone é graduado em Letras Português e Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre e doutorando em Teoria Literária pela mesma instituição, com uma tese que examina a relação de Santo Agostinho com a literatura clássica. É ainda tradutor literário, tendo vertido ao português autores como Bernard Lonergan, São João da Cruz (no prelo) e Marshall McLuhan, entre outros.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as ideias fundamentais de A pomba escura: o sagrado e o
secular na literatura moderna?

Hugo Langone – Em primeiro lugar, parece-me fundamental atentar a que, para Webb, o sagrado, além de abarcar conceitos e articulações lógicas, é sobretudo uma experiência – e uma experiência universal, manifestada de acordo com certos padrões comuns. Essa ideia, claro, é a ele fornecida pela religião comparada, em especial por autores como Rudolf Otto  e Mircea Eliade , aos quais ele recorre explicitamente. E, uma vez que o sagrado é também experiência, é possível vermos até mesmo uma linguagem “conceitualmente ateísta expressar (...) uma forte noção de reverência por uma dimensão sagrada do ser”. A análise de Nietzsche, no terceiro capítulo do livro, é particularmente esclarecedora nesse aspecto.

Pois bem, Webb, logo nas primeiras páginas da obra, recorda que o sagrado será apreendido como algo ao mesmo tempo imanente e transcendental; são esses os dois polos entre os quais se dará a experiência sacra. O polo transcendental do sagrado é o responsável pela sensação de assombro e terror ante a divindade; ele gera o sentimento de que há algo poderoso e majestoso ali, algo cuja plenitude engendra fascínio, algo do qual somos completamente diferentes e diante do qual nos sentimos indignos, iníquos.

Ao mesmo tempo, a revelação do sagrado se dará por intermédio de algum elemento de nosso mundo, um “veículo” secular. Ele transcende o que é finito, mas só se revela nele, que passa, por sua vez, a ser algo mais. Tal é o polo imanente do sagrado. E, toda vez que a tensão entre os polos se desequilibra, a experiência do sagrado também se altera: quando o polo imanente se intensifica, retira da experiência o assombro e o terror causado pelo transcendental, prendendo-nos ao secular e lançando-nos à dessacralização; quando é o plano transcendental a alcançar proeminência, a divindade se afasta do mundo e torna-se um deus otiosus, distante do universo. A dessacralização também ocorre, mas realiza outro movimento.

Ressacralizar o secular

Tudo isso, repito, é tomado por Webb dos pensadores que lhe servem de fundamento. Não é original. O que ele fará é aplicar essas chaves de leitura a autores modernos, vivos numa época em que o sentimento do sagrado oscila enormemente, chegando mesmo ao que ele diz ser uma “dessacralização radical”. A pomba escura tomará alguns autores de enorme importância do período moderno para mapear, também nas palavras de Webb, “as possibilidades dessas circunstâncias”: como novos conceitos são experimentados, como as imagens tradicionais do sagrado são modificadas para ressacralizar o secular, como a tradição ortodoxa do Ocidente se adapta a um mundo secularizado, etc.

IHU On-Line – Quais foram os principais desafios na tradução desse livro?

Hugo Langone – O autor em si não trouxe grandes dificuldades. E esse é um dos grandes méritos do Eugene Webb na obra: seu texto é claro, seus pressupostos teóricos são bem articulados. Ainda que a análise de cada autor seja longa, sabemos, à luz desses pressupostos, qual é o cerne daquilo que ele deseja comunicar. Talvez a principal dificuldade na tradução de A pomba escura tenha sido a mesma que enfrenta todo aquele que se põe a traduzir textos de crítica literária: verter para o português textos – em especial poemas – de grandes autores, com suas características particulares, seus ritmos, métricas. Nessa tradução, pude me valer de algumas traduções já consagradas, mas ainda havia uma ou outra coisa inédita. Lembro-me de modo especial de alguns versos de Yeats  e Auden ...

IHU On-Line – Como o sagrado e o secular se apresentam e se imbricam na literatura moderna?

Hugo Langone – Se nos atermos a Webb, não poderemos opor o “sagrado” ao “secular” do mesmo modo como opomos o “sagrado” ao “profano”. “Secular” não é o “profano”, diz ele; precisamos compreendê-lo de modo mais direto: trata-se da vida temporal – a vida no século –, e esta pode ser vivida como sagrada ou não. É no “secular” que o sagrado pode se transformar, se intensificar, se reduzir, alcançar novo “veículo”.
São transformações assim que verificamos no mundo moderno e sua literatura. Não é possível, porém, generalizar: Webb faz questão de enfatizar que cada um responde de maneira diferente aos movimentos de dessacralização que vivenciamos, e desse modo a resposta de um Ibsen será diferente da resposta de um Eliot  ou de um Auden. Alguns, como Yeats, Rilke , Joyce  e Mann , procuram ressacralizar o secular; e, se Eliot e Auden tentam recuperar, em meio a escombros, nossa tradição religiosa, outros a criticam e experimentam novos conceitos.

IHU On-Line – Quais são as transformações fundamentais pelas quais passa o sagrado no pensamento moderno?

Hugo Langone – O segundo capítulo de A pomba escura mapeia a tradição do sagrado no mundo ocidental: partindo da religião hebraica e do javeísmo, fonte de nossa visão da deidade criadora e transcendental, ele percorre o Novo Testamento, os Concílios da Igreja primitiva, Santo Agostinho , Joaquim de Fiore , Nicolau de Cusa  e Giordano Bruno , momento em que se desencadeia um retrocesso geral do polo transcendente do sagrado. Esse retrocesso, lemos, se tornará evidente no romantismo e em sua ideia do cosmos como organismo quase divino. É sempre à luz dessa tradição que Webb analisará as transformações do sagrado no pensamento moderno: é a tradição que será transformada, recebendo novos contornos. Assim, por exemplo, ele identificará a secularização da ideia das Três Idades da História, formulada por Joaquim de Fiore, em Fichte , Schelling , Hegel , Comte  e Marx , chegando ainda a Nietzsche. Mais uma vez, porém, seria preciso tratar cada autor separadamente, pois o que há de genérico nesse caso é a secularização, e não os detalhes do processo.

IHU On-Line – Quais são os movimentos do sagrado apontados por Eugene Webb nas obras de Ibsen, Beckett, Joyce, Mann e Eliot?

Hugo Langone – A análise de Ibsen  e Beckett  é feita num capítulo em que são analisados também Nietzsche e Wallace Stevens. O que fundamenta a união desses autores me parece ser a hipótese de que há em cada qual uma transformação da teoria das Três Idades de Joaquim de Fiore. No Imperador e Galileu, por exemplo, Ibsen esboça a possibilidade (não satisfeita) de uma terceira era em que estariam em harmonia o controle do cristianismo e a liberdade do paganismo, a carne e o espírito. Hedda Gabler, outra peça do autor sobre a qual Webb se debruça, corrobora a impossibilidade de um tal reino: Hedda, a protagonista, deseja um mundo em que a trivialidade dos ciclos de renovação da vida sejam transcendidos, mas é frustrada a todo momento; a vida, embora sempre se renove, é trivial e dessacralizada, não impõe o fascínio de algo transcendente. Beckett, por sua vez, leva essa dessacralização a um grau de radicalidade ainda maior. Deus, como nos mostra Godot, é o deus otiosus de que tratamos na primeira pergunta, deixando o homem livre no tempo – um tempo que, por não ter Deus em vista, é cíclico e angustiante. De todo modo, é preciso sublinhar que nem Beckett escapa ao sagrado: sua tentativa de atravessar, como recorda Webb, “a tela mítica das condutas e crenças tradicionais” é de certa forma elevada a essa condição.

Joyce, por sua vez, também está na busca de uma Terceira Idade secularizada, mas aqui vemos, desde o início, também a transformação de outra teoria da tradição sacra do Ocidente: a coincidentia oppositorum de Nicolau de Cusa. Joyce trabalha com os opostos, com a união de valores espirituais e carnais, de espírito e pecado. Seguindo uma linha semelhante, Mann cria um mundo em que os vestígios da tradição religiosa estão “ou completamente secularizados, ou espiritualmente moribundos”, e para recuperá-lo busca um “terceiro humanismo”, uma “mistura da tradição do humanismo secular com a reverência da religião cristã e sua consciência da realidade do pecado”.

Deus sive natura

Eliot, ao lado de Auden, surge ao final do livro como figura que procura se realinhar à ortodoxia religiosa nessas novas circunstâncias. Se os autores anteriores de alguma forma flertavam com o deus sive natura, com uma divindade imanente ao mundo, ele recupera o polo transcendente do sagrado. Eliot faz o contraponto: recoloca Deus em seu devido lugar, recupera o sentimento do pecado, a majestade e perfeição divina, sua existência infinda. Tudo isso, porém, são apenas linhas gerais. Webb analisa cada nome com grande cautela, seus exemplos são numerosíssimos. Penso que só o exame que ele faz dê conta de todas as nuances.

IHU On-Line – Como podemos compreender o esforço de tais escritores em exprimir o sagrado nas linhas de suas obras?

Hugo Langone – Essa é uma pergunta difícil, uma vez que, como vimos, cada autor seguirá um caminho próprio, com objetivos diferentes (da tentativa de negação à revitalização do sagrado). No entanto, talvez seja possível contornar sua pergunta e esboçar uma resposta ao porquê de o sagrado se insinuar até mesmo no movimento de dessacralização verificado no período moderno. Para isso, reproduzo o veredito de Mircea Eliade que o próprio Webb reproduz antes de começar a tratar de Nietzsche: “uma existência assim profana jamais é encontrada em seu estado puro. Independentemente do grau de secularização do mundo, o homem que optou pela vida profana jamais consegue afastar por completo o seu comportamento religioso. (...) até mesmo a existência mais dessacralizada preserva traços de uma valorização religiosa do mundo.”

IHU On-Line – E no caso de Santo Agostinho, como se dá a assimilação da literatura clássica em suas obras?

Hugo Langone – Esse é um tema que me é particularmente caro, e talvez me seja impossível dar uma resposta definitiva. O que acontece com Santo Agostinho é algo comum entre os Padres da Igreja: ele vem de uma formação clássica (na qual tivera grande destaque) e, quando converso, precisa lidar com uma cultura da qual não tem como fugir. As menções a Virgílio , por exemplo, são abundantes em toda a sua bibliografia, do Contra academicos à Civitate Dei; são, também, diferentes: algumas são tomadas como portadoras de verdades, ao passo que outras são duramente censuradas. Eis outro exemplo dessa complexidade: logo após sua conversão, Santo Agostinho tem em mente um projeto ascético fundamentado nas artes liberais, ou seja, na formação clássica. Quando lemos De Doctrina Christiana, porém, a importância dessa educação clássica já está completamente adaptada ao estudo das Escrituras e à comunicação das verdades cristãs. Ela sequer é necessária – com efeito, Agostinho chega mesmo a afirmar que a literatura é superficial. Ao mesmo tempo, as imagens virgilianas permeiam as Confessiones, obra do mesmo período. Há verdades na literatura clássica, admite ele; mas será preciso recorrer a ela quando se tem as Escrituras? Para compreender as Escrituras, contudo, alguns elementos da formação clássica se fazem necessários. O tema, enfim, vai longe.

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