Edição 421 | 04 Junho 2013

A disputatio de Santo Tomás de Aquino: uma síntese dupla

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Márcia Junges

Obra do Aquinate continua atual porque os problemas que corrige são atemporais, assegura o tradutor Luiz Astorga. Técnica de discussão aristotélica tem origem na maiêutica de Sócrates e suscitou diversas polêmicas e escândalos

AQUINO, Santo Tomás de. Questões disputadas sobre a alma (São Paulo: É Realizações, 2013)

“A disputatio, e em particular a empreendida por Santo Tomás, que me parece elevá-la a seu cume, resulta de uma perfeita adaptação e depuração da técnica de discussão aristotélica, que por sua vez se origina na maiêutica socrática”, pontua Luiz Astorga na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Tradutor dessa obra para a língua portuguesa, Astorga menciona que “é difícil encontrar nesta obra uma questão que não tenha sido causa ou efeito de debates acalorados, fossem filosóficos, fossem teológicos”. Ele acrescenta que a doutrina metafísica de Santo Tomás é uma síntese em duplo sentido: “é tanto uma mescla de diversas doutrinas, em especial a de Aristóteles e a de Platão (a deste sobretudo por intermédio de Proclo, do De causis, do Pseudo-Dionísio Areopagita e de Boécio) quanto, ademais, é sua superação”.

Bacharel em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, Luiz Augusto Astorga iniciou seu ofício atual como autodidata. Tradutor e estudioso da obra de Santo Tomás de Aquino, concluiu Pós-Graduação em Filosofia pela Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro e obteve Mestrado summa cum laude em Filosofia pela PUC de Santiago do Chile, onde atualmente conclui doutorado. Foi bolsista da Comisión Nacional de Investigación Científica y Tecnológica de Chile (CONICYT), assim como de sua própria universidade.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais foram os principais desafios e as peculiaridades em se traduzir as Questões disputadas sobre a alma, de Santo Tomás de Aquino? 

Luiz Astorga – Creio que o primeiro desafio que se impõe a quem traduz a escolástica  é não perder de vista o contexto de uma obra e seus pressupostos. É verdade que isso se aplica à tradução de toda e qualquer filosofia, mas a escolástica primava pelo respeito redobrado de seus praticantes ao estado de uma questão, a tal ponto que vários argumentos apresentados de modo anônimo numa discussão podiam facilmente remeter-se aos autores ou escolas que os promoviam. Sendo este um trabalho de Santo Tomás, agrega-se também a peculiaridade de que raramente o Doutor Comum esgotava num único tratado suas explicações de um tema: embora os argumentos que movia pudessem se repetir ao longo de distintas obras, sempre garimpamos acréscimos enriquecedores em suas várias iterações. Por isso, cada assunto tratado pelo Aquinate tem o potencial de criar um contexto por si mesmo, que se soma ao do próprio debate com seus oponentes.

Em segundo lugar, é evidente que a responsabilidade de traduzir as Questões disputadas sobre a alma já constitui por si mesma um desafio. Trata-se de um texto que concentra distinções filosóficas muito sutis, que por sua vez têm profundas e imediatas consequências para a antropologia, a teoria do conhecimento, a moral, e também para a adequada manifestação da conveniência entre a natureza humana e a escatologia cristã revelada.

Por fim, creio que tradução de Santo Tomás exige buscar um equilíbrio entre o desejo de desenvolver a riqueza de suas explicações e a obrigação de respeitar a impressionante simplicidade com que ele as dá. Portanto, visto que é inevitável a adaptação de seu discurso aos hábitos e fórmulas de nossa língua (mais do que apenas à sintaxe), recorremos às notas onde quer que um afastamento do texto se fizesse conveniente. Estas se somam às notas explicativas, que por sua vez compõem com as demais referências um total de quase quinhentas.

IHU On-Line – Como pode ser compreendido o método escolástico da disputatio?

Luiz Astorga – A disputatio, e em particular a empreendida por Santo Tomás, que me parece elevá-la a seu cume, resulta de uma perfeita adaptação e depuração da técnica de discussão aristotélica, que por sua vez se origina na maiêutica socrática. Creio que se trata do método mais eficaz já desenvolvido para resolver uma quaestio, um tema disputado. Tomemos por modelo a maneira tomista de tratar a disputatio. Ela se inicia pela apresentação do problema de que se vai tratar, o que é feito, de modo geral, em termos breves e precisos: “investiga-se se a alma é o mesmo que suas potências”, por exemplo. “E parece que sim.” (Note-se que quase sempre, na disputatio tomista, se se diz SIM nessa apresentação, é porque a posição defendida será NÃO, e vice-versa, embora haja nisto matizes.) Segue-se então a apresentação de argumentos pelos quais, no caso de nosso exemplo, se deveria dizer que “sim”. Normalmente temos, em seguida, alguns argumentos contrários aos anteriores, que já quase sempre antecipam a resposta que será dada. Passa-se então à referida solução central (o corpus) do problema. Por fim, dá-se réplica a cada um dos argumentos antes movidos. É um método muito propício para erradicar confusões, tergiversações e desvios do gênero.

Dedicação à verdade

Ocasionalmente, pode ser difícil reter na memória os argumentos que se confrontarão com as réplicas, especialmente após a passagem pelo corpus. Por isso sempre sugiro que, numa disputatio, se leia primeiro o título e o “sim” ou “não”; depois, que se salte ao corpus; só então, havendo-se já entendido a explicação central, que se alterne um argumento e sua réplica, sucessivamente.

Um detalhe: Santo Tomás era tão dedicado à verdade, que era muito comum que sua versão dos argumentos de seus adversários fosse mais clara e bem desenvolvida que as deles próprios. Onde pudesse haver razão nas afirmações de seu oponente, lá ele estaria para expô-la do melhor modo possível. Em nossa disputatio, há ocorrências disso.

IHU On-Line – Que temas desta disputa filosófica suscitaram polêmicas e escândalos?

Luiz Astorga – Não seria um exagero dizer que a sua vasta maioria o fez. Nas duas primeiras questões, por exemplo, se defende que a noção da alma como forma do corpo não exclui postulá-la como algo subsistente por si. Recebem-se objeções de viés predominantemente platônico, mas habilmente respaldadas por passagens de Aristóteles . A problemática imagem da alma como “um marinheiro num navio” deveria ser refutada sem sacrificar-se sua sobrevivência após o inevitável naufrágio da carne. Foi ponto de árduo debate esta harmonia entre a correta concepção do indivíduo humano – com corpo e alma – e a incorruptibilidade desta alma. Ademais, a própria moral se veria necessariamente mutilada se o ser humano se extinguisse de todo: o pecado, que em sua instância mais fundamental é cometido contra uma Pessoa de dignidade infinita, não poderia receber castigo proporcional durante uma existência finita.

Já a terceira questão é um exemplo perfeito de polêmica que chegou a escândalo. Não foi à toa que seu tema, a unidade do intelecto possível, deu nome ao opúsculo mais veemente que escreveria Santo Tomás, cuja mansidão era uma segunda natureza quase invencível. Parece-me que poucas posições filosóficas do medievo foram tão estranhas ao senso comum quanto a ideia de que o intelecto em que se assentam as formas das coisas que conhecemos seria um só para todos nós, e creio que ela só foi postulada por Averróis  devido à sua profunda sinceridade filosófica, posta diante de um problema aristotélico aparentemente insolúvel, no qual se confrontavam Alexandre de Afrodísia  e Temístio . Há hoje certa tendência a dizer que Averróis não haveria postulado tal posição, mas ela não me parece possuir fundamento suficiente; creio que Santo Tomás estava correto ao identificá-la naquele grande comentador. A oposição que fez aos averroístas latinos valeu-lhe insultos, revoltas de alunos, boicotes e até interrupções de suas aulas.

Questões como a décima quinta, por sua vez, têm consequências teológicas diretas, pois a capacidade da alma para compreender fora do corpo é condição fundamental para o julgamento de uma pessoa por suas próprias ações. É difícil encontrar nesta obra uma questão que não tenha sido causa ou efeito de debates acalorados, fossem filosóficos, fossem teológicos.

IHU On-Line – Em que consistem a riqueza e atualidade da gnosiologia e da metafísica do Aquinate?

Luiz Astorga – Quanto a esta pergunta, recomendo expressamente o prólogo da obra, que considero leitura muito recompensadora. Após a suposta “morte” da metafísica clássica – talvez o maior flagrante delito do enterro de um vivente –, cada vez mais as ciências particulares se viram afastadas do eixo unitivo que as articula e hierarquiza. De lá para cá, tem crescido de modo assustador o número de praticantes das ciências que se veem a procurar soluções para perguntas fora do âmbito de seu ofício, ou a negar peremptoriamente a existência de realidades sobre as quais não versa sua especialidade, ou ainda a “refutar” certas noções e fundamentos que, em verdade, são pressupostos de sua própria ciência. Isso não é de se admirar, uma vez estando soterrada a ciência que atendia a essas questões. Ademais, a esta dificuldade adiciona-se outra, de caráter oportunista. Esse terreno de desordem epistemológica é favorável à invasão de ideologias, que parasitam a autoridade dos experimentos científicos, mas que, uma vez expostas em sua fragilidade, se refugiam imediatamente no relativismo. Por exemplo, a tendência atual a identificar o pensamento e a sensação certamente se enquadra nessa categoria, embora vários cientistas que hoje a adotam como pressuposto não sejam eles mesmos ideólogos. Fazem-no diante de certa unanimidade que, sem apresentar credenciais, fez da comunidade científica o seu hospedeiro. E claro está que esta identificação indireta entre homem e animal tem como efeito calculado a negação da moral. Estas e outras modas de pensamento, porém, raramente constituem novidade: são muitas vezes a reciclagem de desvios metafísicos extremamente antigos, cuja abundância é proporcional ao desconhecimento das – ou desinteresse pelas – discussões que os iluminam. Portanto, creio que este livro é vivamente atual em sua importância. Sem contradição alguma, trata-se de uma obra atual porque os problemas que corrige são atemporais.

IHU On-Line – Por que problemas relativos à angelologia são também enfrentados e resolvidos nessa obra?

Luiz Astorga – Porque a completa compreensão de algo passa inevitavelmente por sua distinção daquilo que ele não é. Portanto, não basta diferenciar a alma humana daquela dos animais, mas cabe também mostrar que, embora imaterial e subsistente, ela não é por isso uma “substância separada” em sentido pleno, que é como designamos a natureza angélica. Se o homem é o horizonte entre o sensível e o inteligível, é também o ponto médio entre o bruto e o anjo. A alma é coprincípio da essência humana, não uma essência completa por si mesma, suficiente para as operações que lhe competem realizar. Ela é substância incompleta sem o corpo, e sua condição natural é a da união com ele. Ao contrário, o que entendemos por anjo é uma essência à qual não cabe a união com o corpo: ela é pura forma, e é completa desse modo.

Natureza angélica

Não nos deve surpreender a presença dos anjos numa obra filosófica, pois para Tomás os anjos não são um âmbito de estudo exclusivo da Sagrada Doutrina. Pode ser filosófico o estudo sobre como um ente desprovido de matéria realizaria suas operações volitivas e intelectivas, e sobre quais outras características poderíamos deduzir da definição que lhe demos. O Tratado das Substâncias Separadas é exemplo disso: quase todos os capítulos desta obra (infelizmente inacabada) mostram, sem recorrer à autoridade das Escrituras, como se deduzem certas características de sua condição imaterial; mostram, também, que postular uma dimensão imaterial intermediária entre Deus e o homem era a regra entre os sábios pagãos, não a exceção. É claro que Tomás leva sempre em conta o dado revelado, e que o que este nos diz sobre a natureza angélica está suposto em seu discurso; não obstante, até aproximadamente o antepenúltimo capítulo, seus argumentos se baseiam quase que exclusivamente na razão natural (mesmo aqueles com que se defende a existência destas criaturas). Apenas nos últimos capítulos começava a despontar sua perfeita complementação teológica, que era a finalidade da obra, pois neles teria lugar a explicação de atributos que só podemos afirmar pela luz da Revelação. 

IHU On-Line – Em que sentido Santo Tomás de Aquino realiza uma fusão na perspectiva filosófico-teológica da sabedoria platônica e aristotélica?

Luiz Astorga – A doutrina metafísica de Santo Tomás, sempre subjacente e mais ou menos explícita nas obras de sua Sacra Teologia (porque em verdade ele é antes de tudo um teólogo sacro, mais que um filósofo sistemático), é uma síntese, em seu duplo sentido: é tanto uma mescla de diversas doutrinas, em especial a de Aristóteles e a de Platão (a deste sobretudo por intermédio de Proclo , do De causis, do Pseudo-Dionísio Areopagita  e de Boécio ) quanto, ademais, é sua superação. Sobre a base em boa parte integral da filosofia aristotélica, o Aquinate remata seu edifício metafísico com a doutrina da participação platônica, que lhe serve de cúpula. Diria que, com respeito à doutrina aristotélica, ele a leva a suas últimas consequências (a consequências a que o mesmo Aristóteles não pôde chegar), nas quais ela se encontra com a doutrina da participação platônica, conforme acolhida por Tomás. Assim o faz na Suma contra os Gentios, por exemplo. E, curiosamente, naquele mesmo Tratado das Substâncias Separadas, por pouco não diz o Aquinate que não há diferença essencial entre Platão e Aristóteles: é que, do alto de seu pensamento mais maduro, ele pode vê-los do ângulo de sua própria síntese: a acabada doutrina do ser, e da distinção real entre o ser e a essência.

IHU On-Line – Qual é a relevância e a atualidade da discussão do Aquinate sobre a duplicidade da substância humana, entre material e espiritual?

Luiz Astorga – Pode dizer-se que, com respeito a uma doutrina metafísica, relevância e atualidade são quase o mesmo, ainda que vistas de ângulos distintos; como disse, as soluções metafísicas são sempre atemporais, pois versam sobre o que há de mais fundamental na realidade. Pois bem, a insistência de Santo Tomás em que é parte da essência humana ser composto de corpo e alma como dois coprincípios dá resposta não só a certa tendência sempre latente no próprio cristianismo a um hiperespiritualismo de tonalidade platônica (ou antes neoplatônica), mas também à sua retomada já fora do âmbito da Escolástica, com Descartes , Malebranche  e outros. Mas por outro lado também dá resposta a um, digamos, “hipercorporalismo” que o materialismo moderno traz consigo (na esteira do pré-socratismo, do estoicismo, etc.): e também responde a isto porque, se de fato o homem é um composto essencial de corpo e alma, também é verdade que o corpo se ordena também essencialmente à alma. E isto em quatro sentidos. Em primeiro lugar, como em todos os animais, a alma humana é a enteléquia da geração, e o princípio organizador e ordenador do corpo. Em segundo lugar, a alma humana é intelectual, e portanto a ordem do corpo a ela é de classe particular, distinta da que se dá nos demais animais. Em terceiro lugar, por intelectual, a alma humana é incorruptível e portanto imortal: ela sobrevive à morte do corpo, diferentemente do que se dá com os brutos, cuja alma é inseparável da matéria. E em quarto lugar, por fim, falando agora em termos de Sacra Teologia, a alma humana (e com ela o composto humano) está ordenada a Deus como ao fim último.

IHU On-Line – Por que Questões disputadas sobre a alma é considerada uma obra prima?

Luiz Astorga – Já apontamos o leitor para a excelência de seu conteúdo, para sua atualidade, e para o caráter crucial das questões filosóficas que nela se encontram coligidas, sobre as quais se articularam polêmicas numerosas. Creio que seja também relevante o fato de ser uma disputatio, que a meu ver é o modo mais cristalino de se defender ou refutar qualquer posição. Mas há um aspecto realmente belo da escolástica que se sobressai em Tomás (e o faz certamente nesta obra), que é o modo quase arquitetônico pelo qual uma exposição se constrói sobre a solidez da anterior. Aqui, as primeiras questões tratam de estabelecer o que é a alma e a faculdade que nela a faz propriamente humana. As seguintes (sétima e oitava) tratam de situar a alma em sua posição própria na hierarquia da criação. Passa-se então à explicação de como a alma, enquanto ato do corpo, o organiza e lhe dá capacidades e operações. As últimas questões, inauguradas pelo argumento que estabelece sua imortalidade, tratam daquilo que lhe compete após sua separação do corpo, seja em sua disposição para o juízo de seus atos, seja no que lhe pode caber como consequência desse juízo. Naturalmente, há outras qualidades que ainda se poderiam ressaltar, mas creio que o próprio leitor apreciará a oportunidade de identificá-las em primeira mão.

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Confira a edição da revista IHU On-Line sobre a filosofia escolástica.

* Edição 342, de 06-09-2010, Escolastica. Uma filosofia em dialogo com a modernidade, disponível em http://bit.ly/11mcjbi

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